São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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ENTREVISTA

Para Denis Lerrer Rosenfield, partido precisa enfrentar sua divisão interna para definir caminho que vai seguir

Filósofo aponta falta de coerência no PT

DA REPORTAGEM LOCAL

O PT é um partido que trouxe uma contribuição fundamental ao cenário político brasileiro, com a bandeira da ética, mas que hoje peca por falta de coerência ao não fazer uma revisão programática.
A opinião é do filósofo gaúcho Denis Lerrer Rosenfield, 51, que está lançando seu primeiro livro fora do reino estritamente filosófico. "PT na Encruzilhada: Social-Democracia, Demagogia ou Revolução?", (Editora Leitura XXI) é uma coletânea de ensaios publicados em jornais.
Em sua análise, o filósofo defende que o PT precisa enfrentar a sua divisão interna para delinear o caminho que o partido vai seguir, especialmente agora que tem forte possibilidade de conquistar o governo federal.
Gaúcho, Rosenfield acompanha de perto a experiência do PT-RS -que comanda a Prefeitura de Porto Alegre há 14 anos e o governo estadual há quatro-, da qual é um crítico feroz. No livro, acusa o Fórum Social Mundial de saudosista e o Orçamento Participativo de totalitário. Abaixo, trechos da entrevista que concedeu por telefone de sua casa em Porto Alegre. (ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA)

 

Folha - O sr. identifica três forças (o reformismo característico da social-democracia, a demagogia e a corrente revolucionária) dentro do PT. Até onde se sabe, a última está confinada a grupos minoritários do partido, e a segunda é parte constitutiva da política, ou não? Como o sr. chegou a essa síntese para descrever o partido?
Denis Lerrer Rosenfield -
No livro "O PT" (Publifolha, 2001), André Singer assinala que um terço do PT pertence a correntes revolucionárias, então não são minoritárias. De acordo com a minha análise, a parte propriamente reformista seria um terço do PT. No Rio Grande do Sul, a parte revolucionária é a predominante. É um exemplo muito ilustrativo do que pode acontecer no país amanhã se essa corrente chegar ao poder nacionalmente. Todas as lideranças expressivas do PT nacional, Lula, José Dirceu [presidente do PT], fazem reiterados elogios à experiência do Rio Grande do Sul.
Estou de acordo que a demagogia faz parte de todos os partidos. A tradição partidária brasileira infelizmente utiliza demais a demagogia. Mas tem um tipo de demagogia que é feito para ocultar determinado projeto. No caso do PT, há um terço revolucionário e um terço que é sinceramente reformista, com figuras expressivas na direção nacional, como José Genoino, em São Paulo, Cristóvão Buarque, no Distrito Federal. Essa facção reformista do PT poderia até ter afinidade numa eventual aliança com o PSDB. Na prática, é uma social-democracia, como a alemã que galgou o poder no pós-guerra. O um terço que chamo de demagógico é o que oscila entre um e outro e que, lá pelas tantas, vai usar um vocabulário de tipo revolucionário, mas não tem uma prática revolucionária.

Folha - O sr. afirma que está ocorrendo um enfraquecimento da autoridade estatal e um dos motivos seria um enfraquecimento dos partidos políticos. Por quê? Como o sr. vê o surgimento e a consolidação do PT na história política do país?
Rosenfield -
Eu acho que o PT teve uma contribuição fundamental do ponto de vista da formação da opinião pública brasileira. Teve também uma contribuição decisiva do ponto de vista do fortalecimento da democracia brasileira, na medida em que veio a estabelecer critérios que não eram muito considerados por outros partidos, como o caso da ética. A única crítica mais rigorosa que eu faço é pedir coerência do partido.
Se você pega a questão das propinas em Santo André, o PT demorou a investigar. O PT sempre procura ocultar ou retardar ou atribuir coisas aos adversários. Vejamos, no Rio Grande do Sul, a CPI da Segurança Pública, que mostrou a vinculação do jogo do bicho com alas revolucionárias do PT e uma contribuição decisiva do ponto de vista do financiamento da campanha do governador do Estado. O PT fez de tudo para que essa CPI não ocorresse. Isso é contrário a tudo que o PT vinha pregando nacionalmente.
O PT teve uma contribuição fundamental ao dizer que a ética na política é fundamental do ponto de vista de uma sociedade democrática. Mas agora o critério se tornou suprapartidário. Acho que a coerência é fundamental do ponto de vista da ética na política. O PT precisa passar por uma efetiva revisão dos seus princípios. Por exemplo, se hoje considera que sua posição é reformista, por que não dizer?

Folha - Mas o que leva o sr. a ver um enfraquecimento dos partidos?
Rosenfield -
Eu teria uma posição um pouco mais matizada em relação a isso agora. Acho que os partidos, por um lado, são fracos no Brasil, mas, por outro lado, de uma maneira ou de outra estão conseguindo se estruturar. A grande crítica que faço é que eles não têm uma linha programática clara. Não há nem uma direita clássica. Duvido que pelo menos 40% dos eleitores brasileiros não tenham afinidade com propostas políticas de direita. Isso se a distinção direita-esquerda ainda for válida. O partido que deveria se aproximar disso, o PFL, é um partido que tem uma configuração regional, cresceu e continua fortemente dependente das benesses do Estado, que é exatamente o contrário de uma direita clássica. Por outro lado temos o PSDB, que deveria ter uma proposta mais no sentido da social-democracia, mas oscila nas duas posições. O PT, que poderia se aproximar de uma posição social-democrata, tem também posições revolucionárias ou demagógicas. Não temos uma esquerda realmente renovada nem uma direita clássica.

Folha - Como o sr. vê a política de alianças do PT nessa eleição? E a aproximação de Lula com o ex-governador Orestes Quércia e com o ex-presidente José Sarney? Isso compromete o discurso pela ética, eterna bandeira do partido?
Rosenfield -
Como disse Clóvis Rossi em sua coluna na Folha, é a virgem no bordel -deixou de ser virgem. A partir do momento em que o PT se aproxima do PL, do Quércia, do Sarney, que procura aliança nessa área, não tem nada a criticar nos outros partidos. Nesse sentido, tornou-se um partido como qualquer outro, não obedecendo nenhum princípio programático. É claro que sempre tem o argumento utilitário, que é um argumento forte -a necessidade de alianças para vencer. Eu acho que as pessoas deveriam ter feito revisões conceituais, e não apenas alianças eleitoreiras. Isso vale para o PT, mas também para o Ciro e de uma certa maneira para o Serra. Não vale para o Garotinho porque ele não conseguiu fazer alianças. Se você pega o ideário do PPS do Ciro, no sentido do senador Roberto Freire, é uma proposta de centro-esquerda, mas lá pelas tantas ele está se aliando com o PFL, sem nenhum tipo de revisão conceitual. O próprio Freire reclamou e foi alijado num determinado momento. O que não posso aceitar do ponto de vista intelectual é que a pessoa mude de programa como muda de roupa. Isso diz respeito não apenas à coerência do partido, mas àquilo que a opinião pública pode esperar do partido amanhã.

Folha - O sr. coloca três opções para Lula, caso ele seja eleito presidente. Na verdade, ele teria apenas uma saída, a de romper com os revolucionários do partido. Isso ainda não ocorreu, mas decisões como a aliança PT-PL não deixam claro que foi esse o caminho escolhido?
Rosenfield -
Você teria de perguntar isso para um terço do partido. Um terço do partido por enquanto está silencioso, observando, mantendo uma posição de expectativa, procurando não prejudicar o processo eleitoral. Eles manifestam claramente sua inconformidade com os rumos que o PT está tomando, porém não entram publicamente na discussão porque poderia prejudicar o partido. Na eventualidade da eleição do Lula, esse um terço vai perguntar qual é a sua fatia do poder.

Folha - O sr. é extremamente crítico em relação ao PT gaúcho. Afirma que "slogans como "um outro mundo é possível" servem também para mascarar a incompetência política de governar, como no caso do Rio Grande do Sul". Dado que o partido governa Porto Alegre há 14 anos, podemos supor que a população não concorda com o sr.?
Rosenfield -
Quando o PT assumiu o poder em Porto Alegre, teve uma grande ajuda da Constituição, que foi a transferência de recursos para os municípios. Assumiu com o bolso cheio. Quando instituiu o Orçamento Participativo, as oposições não entendiam exatamente o que estava acontecendo. Então isso vingou. Nos dois primeiros mandatos, e, num certo sentido, no terceiro, o PT teve uma prática social-democrata. Com recursos, conseguiu fazer uma política socialmente distributiva, produziu muitos bons resultados. Nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o Orçamento Participativo evoluiu de uma postura mais anarquista para uma burocratizada, a administração está derivando para uma postura mais esquerdista.

Folha - O sr. se propôs a escrever um livro sobre o PT nacional, mas não menciona a administração petista no Acre, onde o governador, Jorge Viana, lidera as pesquisas, ou os governos de Mato Grosso do Sul, Amapá e do Rio. Por quê?
Rosenfield -
Você tem razão, mas eu gostaria de defender um ponto da minha posição. No livro, analiso muito o discurso do PT nacional. Recorro à experiência gaúcha por duas razões. Em primeiro lugar porque o Lula e outros dirigentes disseram que o Rio Grande do Sul é vitrine nacional, mas nunca disseram que o Zeca do PT é vitrine nacional. Estou me referindo ao discurso do partido. E o único lugar em que foi tentado um projeto revolucionário é o Rio Grande do Sul.

Folha - Isso é representativo de todas as administrações petistas?
Rosenfield -
Eu não disse que todas as administrações petistas são revolucionárias. Não estou tratando de municípios, estou tratando de Estados. Quando passamos da esfera estadual para a municipal, há duas coisas que são diferentes: o poder das polícias militar, civil e o Poder Judiciário estadual. Portanto, essa experiência mostra algo diferente. Quando você muda para a esfera federal, isso é muito mais complexo. Por isso que eu acho que um esclarecimento desse ponto de vista do PT é urgente e necessário.


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