São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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ELIO GASPARI

Critérios
São rígidos os critérios que os governantes aplicam para escolher seus ministros. Pelo menos é isso que eles pensam.
Quando Lula foi eleito, o futuro presidente do Banco Central devia superar dois vetos genéricos:
1) Não podia sair da incubadeira intelectual da PUC carioca, alma mater de Pedro Malan, Gustavo Franco e Armínio Fraga;
2) Não podia trabalhar em banco.
Na semana passada, convidaram o doutor Pedro Bodin, diretor do Banco Icatu, economista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Nos últimos dois anos o nome de Bodin caiu na roda da ekipekonômica duas vezes. Uma para ser presidente do BNDES. Outra, para presidir o Banco do Brasil

Boa notícia
O futuro ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, pretende colocar seu patrimônio financeiro num fundo de investimentos cego, como fazem os colaboradores diretos do presidente dos Estados Unidos. Enquanto eles ficam nos cargos, não sabem o que está acontecendo com seu dinheiro. Thomaz Bastos já consultou banqueiros para que desenhem a blindagem necessária para isolar seus interesses privados. Tomara que consiga, pois essa idéia vai completar 30 anos sem se tornar um hábito.
Em 1974, quando o professor Mário Henrique Simonsen assumiu o ministério da Fazenda, era dono de 10% do falecido Banco Bozano Simonsen. Dispôs-se a escriturar o valor dessas ações de forma que elas rendessem, no máximo, um pequeno juro real. Se rendessem menos, micava. Se rendessem mais, a diferença iria para um programa de alfabetização de adultos. Simonsen falava sério, mas a idéia atolou.

Briga de comadres
É sabido que os doutores José Dirceu e Antônio Palocci Filho estranham-se. Um manda aos jornalistas que perguntem ao outro se Armínio Fraga fica no BC (sabendo que não fica), e o outro mete-se numa conversa na qual acaba dizendo que Dirceu deve tomar Maracugina.
Chega-se a comparar a distância entre Palocci e Dirceu com aquela que separou os ministros Pedro Malan e José Serra no governo de FFHH. É pura injustiça. Por mais que os temperamentos e os fantasmas de Pedro Malan e José Serra fossem diversos e conflitantes, houve a separá-los uma questão de interesse público: o câmbio de R$ 1,20 para o dólar. Malan era a favor e Serra, contra.

Cheiro esperto
Sentiu-se o cheiro da Lufthansa na transação destinada a desossar a Varig, levando-lhe as linhas mais rentáveis. No lance, um aliado brasileiro.

A inútil reinvenção do poder

A nação petista deve pisar no freio. Tem muito craque e pouco time, muito atacado e pouco varejo, muita reforma e pouca rotina. São males típicos de governo que não começou. Lula já percebeu que formar ministério foi mais difícil do que parecia. Ainda padece do mal das secretarias, um subproduto da vontade de guardar todo o poder numa caixa e sair por aí levando-a debaixo do braço.
Trata-se de um distúrbio pelo qual o presidente supõe que, havendo um problema, ele se resolve com mais facilidade criando uma seja lá o que for diretamente ligada a ele. É uma ilusão, por diversos motivos.
Primeiro, porque depois da posse o presidente descobre que seu dia é menor do que pensava. Por exemplo, parece razoável que cada ministro disponha de uma hora semanal para seus despachos. Erro. Os ministros são 19. Se o presidente der uma hora a cada um, joga ao mar metade de uma carga semanal de 40 horas de trabalho. Nos últimos anos, houve ministros que passaram três meses sem despachar com o presidente.
Segundo, porque o acesso ao presidente não lhe consome apenas tempo. Consome poder. Lula pode ter-se dado conta disso ao ver que a nomeação de um Secretário Nacional de Segurança diretamente ligado a ele jogaria no seu colo um arrastão de bandidos cariocas. Como nem ele nem outro presidente sabem a fórmula da pomada capaz de acabar com arrastões, o secretário acabará tendo seu acesso à sala do trono restrito. Julgando-se desprestigiado, em vez de brigar com o presidente, irá para os corredores para blasfemar contra o chefe da Casa Civil. Seis meses depois de nomeado, essa será sua principal atividade.
Outra ilusão é a criação de ministérios. Anuncia-se a criação de um para as cidades. Não há no Brasil uma só alma capaz de achar que o problema das cidades é falta de ministério, assim como não há alma capaz de dizer o que é que o Ministério da Integração Nacional já integrou.
Um dia o Brasil terá a graça de ser presidido por uma pessoa que assumirá sua máquina sem tocá-la. Três meses depois, avaliando sua capacidade e suas necessidades, começará a mudar o que julgar necessário. No fundo, tudo funcionaria melhor se o presidente, ao tomar posse, não confundisse o início do seu mandato e das mudanças que tem na cabeça com o início da história nacional.

No rastro de Lula, made in Brazil
Duas boas novidades produzidas por Lula correm o risco de passar despercebidas. Primeiro, o uso do jato Legacy, da Embraer, para ir à Argentina, ao Chile e aos Estados Unidos. Com 12 poltronas (e mais uma, o que dá uma soma de menção desaconselhável), é menor que o Boeing habitual, mas é brasileiro. Obriga a uma escala para chegar a Washington, e daí? Divulga a produção nacional e economiza dólares.
Outra novidade foi a fabricação, por uma indústria de Franca (SP) dos sapatos que ele e sua mulher, Marisa, calçarão na posse. Faria muito bem à indústria nacional do vestuário se o presidente e seus principais colaboradores, todos ocupantes de cargos públicos, usassem roupas nacionais, inclusive as gravatas, como parece acontecer com Lula. (Nos Estados Unidos, o candidato a presidente George McGovern viu sua candidatura começar a naufragar depois de visitar uma fábrica de sapatos calçando um mocassim italiano.)
Feito isso, faltaria só servir vinho nacional no Alvorada.

Uma instrutiva viagem de ônibus
Num país onde autoridades e técnicos estão dispostos a fazer de tudo para melhorar a vida de quem usa transportes públicos, menos andar de ônibus, é um prazer anunciar o livro "Jornadas Urbanas", da professora Janice Caiafa. Ele trata de "exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro". A professora anda de ônibus (linha Glória-Leblon), foi assaltada (dançou em R$ 20, mas ficou com o relógio) e conversou com toda a linha de trabalhadores do negócio.
Mostrou que, numa cidade onde 47 empresas com 7.250 ônibus transportam 85 milhões de passageiros por mês, o serviço é feito sob regras selvagens. São selvagens para motoristas, que não podem ir ao banheiro depois que chegam ao ponto final. Ou para os trocadores, que são obrigados a reembolsar os patrões se são assaltados quando têm na gavetinha mais do que a quantia permitida pela empresa. (Ao atingir o limite, deveriam botar o dinheiro no cofre, mas já houve caso de trocador assassinado por estar sem dinheiro na gaveta.) A selvageria chega ao passageiro com as loucas corridas, com o motor dianteiro quente e barulhento e com a má vontade dos motoristas para com os idosos que entram pela porta da frente.
Ler o trabalho é como andar de ônibus, salvo pelo conforto do estilo da autora. Passa-se por alguns solavancos com a frequência das citações de "O Capital", mas se percebe o que há por trás do $i$tema de transportes públicos privados do Rio de Janeiro. Sua descrição da manipulação das linhas rentáveis e do desembaraço com que o espaço público foi duplamente privatizado (por quem o comprou e por quem o vendeu) eletrizam como uma boa fechada na rua Barata Ribeiro.
Agora que o companheiro Lula vai andar de Rols Royce, seria bom que seu futuro ministro dos Transportes lesse o trabalho da professora Caiafa. Poderá aprender muita coisa. Como dizia um pano colocado no vidro atrás do banco da direção:
"O volante de um ônibus
é o troféu de um herói
sem valor".

Cobras
Quando um funcionário público brasileiro tem no seu encalço a máquina da diplomacia americana, o ofidiário do Itamaraty deveria dispensar-se de atazaná-lo.
O embaixador José Maurício Bustani, defenestrado pelos americanos da secretaria geral da organização para a Proscrição de Armas Químicas, levou menos de 48 horas para saber dos maus comentários que seu colega Gelson Fonseca fez a seu respeito para ascendentes estrelas nacionais.
O Itamaraty não desagravou seu embaixador. Isso devia bastar.

Auditoria
Um veterano conhecedor das tesourarias de campanhas presidenciais estudou as prestações de contas de Lula (R$ 33,7 milhões) e de José Serra (R$ 34,4 milhões). Ficou com a impressão de que os dois candidatos confundiram as despesas totais das campanhas com aquilo que gastaram em seus programas de televisão.
Vendo as duas campanhas, o veterano tesoureiro acreditava que Lula e Serra tinham torrado pelo menos o dobro do que pensam ter gasto.

Entrevista

Ricardo Henriques
(42 anos, economista, autor de "Raça e Gênero no Sistema de Ensino - Limites das Políticas Universalistas", secretário de Desenvolvimento Humano do Estado do Rio de Janeiro)

- O que Lula deve fazer para andar com sua proposta de candidato de criação de cotas para negros nas universidades públicas brasileiras?
- Acelerar o debate. Discutindo, raspam-se os preconceitos. Esse assunto não era debatido. Agora o é, e aparecem idéias como a de que no Brasil é difícil saber quem é negro. O debate nos levará a perceber que só o entendimento da diversidade é que leva à igualdade. Imagina-se o Brasil como uma sociedade ideal. Seriamos cordiais, pacíficos e ordeiros. Miscigenamo-nos de forma que por cá não há preconceito de raça. Se o negro aparece e mostra a injustiça do sistema educacional, atrapalha esse ideal, incomoda, ofende. A saída fácil é dizer que os preconceitos não são de cor, mas de classe. Veja as curvas da escolaridade média de brancos e negros entre 1900 e 2000. São perfeitamente paralelas. Em 1900, o branco tinha 2,3 anos a mais de instrução que o negro. Em 2000, brancos e negros tinham mais escolaridade, mas a diferença continuava sendo de 2,3 anos. Isso é uma diferença de cor, não de classe. Mais importante: ela embute desigualdades que vêm do ensino fundamental.

- Quais são as desigualdades no ensino fundamental?
- Vejamos os números: 51% das crianças brasileiras de até seis anos são pobres. De cada 100 crianças brancas, 38 são pobres. Já no caso das negras, elas são 65%. No grupo dos 25% de brasileiros mais pobres, 30% das meninas brancas estavam no nível certo do ensino fundamental em 1992. Em 2001, essa percentagem passou para 55%. Estamos falando de meninas muito pobres e de uma situação de melhoria. Quando você vai para o desempenho das meninas negras nesse mesmo grupo de renda, passou-se de 18% para 38%. Mesmo aí, a diferença persistiu. Outro exemplo: no grupo das pessoas com melhor renda, 92% das meninas brancas estão matriculadas. A percentagem de meninas negras, nesse grupo, é de 82%. As diferenças entre brancos e negros não ocorrem só na riqueza. Elas persistem e até se agravam na pobreza. O que funciona aí é uma espécie de exclusão cotidiana.

- O que é isso?
- Coisa sutil. É a menina negra sendo chamada a trazer um copo de água e a branca sendo chamada ao quadro para fazer um exercício. É uma história da civilização sem negros e sem a noção de civilização negra. Rei negro, só em escola de samba. Voltamos ao ponto de partida e à questão das cotas nas universidades. Devemos discutir a questão racial brasileira entendendo que só há igualdade, assim como só há democracia, se há diferença, pluralidade. Faltam negros nas nossas universidades, porque a diferença de escolaridade entre brancos e negros se mantém há mais de um século. A forma mais sutil do discurso racista brasileiro é o silêncio, a transformação do negro em estorvo numa sociedade que, idealmente, não teria preconceito de raça.

Risco tucano
Se a banda afegã do PSDB, encarnada pelo deputado Jutahy Magalhães, insistir em armar uma oposição sangrenta contra o PT, o partido racha.



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