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LANTERNA NA POPA
Repetindo o óbvio
ROBERTO CAMPOS
Aceito o risco de parecer repetitivo. Diante das grandes questões que preocupam mais no
nosso país, a originalidade do
articulista fica em segundo lugar. Estamos atravessando dias
pesados, um ambiente de insatisfações e sombras. Os mais jovens sentem-se angustiados
diante das incertezas do futuro,
da ameaça de desemprego, de
falta de horizontes. Os mais velhos tentam lembrar-se daqueles
períodos em que o Brasil não
atravessava um estado de crise
permanente. Salvo alguns breves anos do começo do Plano
Real, parte da era Kubitschek e o
otimismo do "milagre econômico" do fim dos anos 60 -que, no
entanto, foi tisnado pela situação política de exceção- todo o
resto de nossa História contemporânea é um confuso mosaico
de problemas e condições institucionais instáveis.
Não chegamos felizmente ao
extremo dos gulags, campos de
extermínio, "limpezas étnicas" e
coisas que tais. Nossos chamados "anos de chumbo", comparados às experiências de outras
nações (e certamente aos "anos
de aço" dos regimes comunistas), pareceriam antes de papel
de cigarro metalizado. Se afundamos numa situação crítica injustificável, é por nossa própria
culpa, por falta coletiva de bom
senso e de responsabilidade.
O público exprime sua perplexidade naquela conhecida anedota de como Deus, tendo presenteado nossa geografia com
uma abundância de vantagens
materiais, colocou no Brasil, como contrapeso, um "povinho
ruim". Essa autodepreciação está errada. O trabalhador brasileiro, ainda que subinstruído, é
diligente e flexível, como as empresas estrangeiras são as primeiras a reconhecer. Os engenheiros e gerentes especializados
têm em alguns casos nível bastante alto. Somos a 8ª economia
do mundo e temos conseguido
adaptar-nos a mudanças tecnológicas complexas. Falta-nos reduzir os excessivos contrastes em
matéria de educação, informação e saúde -demanda social
justa, mas não um impedimento
real ao nosso desenvolvimento
tecnológico ou industrial.
A verdade é que nosso grave
subdesenvolvimento não é só
econômico ou tecnológico. É político. Somos um gigante preso
por caguinchas dentro de estruturas disfuncionais. A máquina
político-administrativa que rege
hoje nossos destinos é uma fábrica de absurdas distorções cumulativas. O regime presidencialista e o voto puramente proporcional, cada um dos quais, já
de si, dificilmente funcionam
bem, transformam-se, quando
combinados, numa crise quase
ininterrupta. O presidencialismo americano, que nos serviu
de modelo, é conjugado ao voto
distrital, e a federação é autêntica, porque foram os Estados que
a criaram, enquanto que no
Brasil estes resultaram do desfazimento do império unitário.
Não é que os políticos só pensem em si ou sejam "corruptos"
de nascença. Essa é uma visão
popular deformada. A maioria é
dedicada e séria. Mas o deputado, o senador, o prefeito, o governador e, obviamente, o presidente têm de ser eleitos, ponto de
partida do qual não há escapatória. Nas eleições proporcionais
de hoje, os deputados são obrigados a catar votos por todo o
Estado, garimpando aqui e ali
-um processo caro e tremendamente incerto, porque eleitor em
geral não sabe como discriminar
entre dezenas de representantes
eleitos. Como é que o eleitor médio vai se lembrar de quem propôs medidas ou leis, para poder
avaliar quem merece o seu voto?
Um americano ou um inglês pode falar no "seu" deputado: sabe
exatamente quem ele elegeu e
tem como cobrar respostas ao
representante do "seu" distrito.
O alemão, com um sistema misto, tem o "seu" deputado distrital e também o da lista do seu
partido. E, como o regime é parlamentarista, pode cobrar de
ambos.
No Brasil, cobrar o quê, de
quem? Mal acaba de ser eleito
por um partido, o deputado ou
senador se sente à vontade para
mudar de partido. Não existe
sanção. A eleição presidencial
então é sempre um trauma violento, agravado pela percepção
de que o vencedor passará a
controlar a máquina pública, os
mecanismos de dar ou negar favores. Gerir a coisa pública é, entre nós, um contínuo varejo. Dá
para estranhar que, desde o início da República, raros tenham
sido os governos que não se envolveram em conflitos com o
Congresso, com riscos de descontinuidade institucional? Contra
um sistema tão ruim, tanto faz
se os políticos são santos ou bandidos. Num ônibus sem freios, o
perigo de desastre é o mesmo para todos.
Há perto de três séculos e meio,
Colbert, o famoso ministro protecionista da França monárquica, assim se lamentava na Carta
de Luis 14 aos funcionários e ao
povo de Marselha (26 de agosto
de 1764): "Como desde a morte
de Henry 4º temos tido só exemplos de carências e necessidades,
precisamos determinar como
aconteceu que, durante tão longo tempo, não tenhamos tido,
senão abundância, pelo menos
uma renda toleravelmente satisfatória...". Colbert põe a culpa
no sistema fiscal e afirma que
piores do que os muitos corruptos foram aqueles altos funcionários "cuja incompetência prejudicou mais o Estado e o povo
do que os roubos pessoais".
Entre os vícios da burocracia
fiscal da época, Colbert lista os
seguintes: "Consumir com despesas correntes as receitas ordinárias e extraordinárias dos
dois próximos anos..." e "negligenciar as receitas gerais ordinárias afazendadas, dedicando-se ativamente à busca de fontes
de renda extraordinárias...".
Colbert se revelou um reformista e desenvolvimentista
"avant la lettre". Mas a França
já estava politicamente entalada, e ele não conseguiu realizar
sua "reforma fiscal".
O mundo está cansado de esperar pelas "reformas" brasileiras. E de ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito,
exceto em regiões desérticas da
África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma fatalidade. É um
acidente histórico de povos que
preferem externalizar a culpa ao
invés de fabricar seu próprio
destino.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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