São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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CRIME ORGANIZADO

Trabalhador ganha US$ 15 por dia para acabar com plantio de coca; famílias não recebem assistência

EUA vão à selva destruir plantações

Patrícia Santos/Folha Imagem
Homens trabalhando em destruição de área de plantação irregular de coca em Santa Lucía, no Peru


da enviada especial ao Peru

É meio-dia de 16 de dezembro quando o piloto norte-americano Derek Hayden decola com o avião de fabricação espanhola ""caza" 2-12, de propriedade do Departamento de Estado dos EUA, em Pucallpa, no Peru. A missão do piloto é transportar trabalhadores braçais -pagos pelos Estados Unidos a US$ 15 por dia- para destruir as plantações de coca na selva amazônica peruana.
Nos últimos quatro anos, foram destruídos 65 mil hectares de plantios de coca no Peru, reduzindo a produção do país a menos da metade dos 115 mil hectares que existiam em 1996. Mesmo assim, 30 mil pequenos agricultores ainda vivem do cultivo da planta, que ocupa 51 mil hectares.
O Peru é o segundo maior produtor mundial de coca e principal fornecedor de matéria-prima -a pasta-base de coca- para os laboratórios de refino da Colômbia.
Os norte-americanos participam diretamente do combate ao narcotráfico no Peru, por intermédio do NAS (Narcotics Affair Section, do Departamento de Estado dos EUA) e da DEA (Drugs Enforcement Administration, do Departamento de Justiça). A ação desses dois órgãos foi estabelecida por convênio entre os governos assinado em julho de 96, com vigência de quatro anos.
No aeroporto de Pucallpa (a 782 km por terra de Lima, na selva central), ficam seis helicópteros e dois aviões-radares ""morcego" cedidos pelo NAS, que abastece e faz a manutenção das aeronaves. Os ""morcegos" são usados em operações de rastreamento noturno na selva.
Projetado para transportar soldados, o ""caza" pilotado por Derek Hayden parte rumo à região do Alto Huallaga (principal zona produtora de coca do país) levando a bordo três funcionários do governo peruano e dois jornalistas da Folha. É a primeira vez que a imprensa tem acesso àquela área.
Após 50 minutos de vôo, ele aterrissa numa base da Polícia Nacional do Peru, no povoado de Santa Lucía, onde estão mais cinco helicópteros dos EUA.
Entre os três funcionários do governo que embarcaram no avião está o comandante Washington Rivero Valencia, oficial da Dinandro (Divisão Nacional Antidrogas, do Peru) em Pucallpa. No início da viagem, ele avisa que é proibido fotografar os aviões e o pessoal norte-americanos.
A base fica na margem do rio Huallaga, no Departamento (Estado) de San Martín. Segundo os policiais, ainda atuam na região algumas colunas remanescentes das organizações terroristas Sendero Luminoso e MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru).
Por causa da presença terrorista, Santa Lucía está há dez anos sob estado de emergência. É proibida qualquer manifestação política nas ruas e a polícia pode invadir as casas sem autorização judicial. Em Pucallpa (capital do Departamento de Ucayali), o estado de emergência foi suspenso em agosto do ano passado.
Planta sagrada da cultura inca, a coca é consumida há vários séculos pela população rural, que masca suas folhas e toma o chá produzido com elas. A tradição é respeitada pelo governo peruano e o plantio da coca, em si, não é considerado crime.
O cultivo da coca para o consumo tradicional é administrado por uma empresa estatal, a Enaco (Empresa Nacional da Coca), que credencia os agricultores autorizados e fixa a área de produção de cada um.
Todo agricultor credenciado para plantar coca recebe uma carteira de identificação emitida pela Enaco. O general Dennis Del Castillo Valdivia, chefe da Dinandro, diz que dos 30 mil agricultores que vivem do plantio de coca no país, apenas 3.000 têm autorização emitida pela Enaco.
O governo admite o plantio de 8 mil hectares de coca para atender o consumo tradicional, o que equivale a apenas um quinto da área total cultivada atualmente. O excedente de 43 mil hectares existente abastece o tráfico de cocaína. Esses plantios, que ficam no meio da selva, são identificados via satélite e atacados pelo projeto de erradicação.
A destruição das plantações de coca faz parte do Corah (Projeto Especial de Controle e Redução dos Cultivos de Coca no Alto Huallaga). Ele está administrativamente subordinado ao Ministério do Interior do Peru, mas é mantido financeiramente pelo Departamento de Estado norte-americano, por meio do NAS.
O engenheiro Miguel Ramos, responsável pelo escritório do Corah em Pucallpa, diz que 400 homens estão trabalhando na erradicação dos plantios de coca na região, pagos pelo governo norte-americano.
Os trabalhadores são recrutados em municípios distantes das zonas produtoras. A mão-de-obra é buscada fora por questão de segurança e porque os agricultores se recusam a arrancar eles próprios a plantação.
Os trabalhadores são contratados por períodos de 15 dias e dormem no alojamento da polícia em Santa Lucía. A base é isolada por muros e por barricadas feitas com sacos de areia.
A erradicação dos plantios é feita em ataques periódicos. Ou seja, não há um trabalho contínuo na mesma região, o que também se deve à preocupação com a segurança.
Cada investida dura duas semanas. A quantidade de trabalhadores envolvida em cada operação depende da disponibilidade da Polícia Nacional do Peru, uma vez que as equipes trabalham acompanhadas de policiais fortemente armados.
Da base policial em Santa Lucía, os trabalhadores vão de helicópteros para as propriedades rurais. Cada vôo é acompanhado por outro helicóptero, que faz a segurança. Os aviões descem nas propriedades e os policiais cercam os locais de trabalho para manterem os agricultores afastados.
Os produtores resistem à destruição dos plantios e, frequentemente, atacam as equipes com pedras e paus. A revolta dos agricultores reflete o desespero diante da falta de alternativa de sobrevivência pois, em grande parte das áreas de erradicação, não há um programa de atendimento às famílias que perderam sua fonte de sustento.
Um helicóptero levou a equipe da Folha até a pequena propriedade de Celso Lima Jara, 40, onde um grupo de trabalhadores braçais destruía a plantação de coca.
Agricultor analfabeto, Jara vive com a mulher e cinco filhos em um casebre coberto de palha, sem luz elétrica nem móveis. Ele diz que comprou a propriedade em março deste ano, por US$ 500, e que deu toda a ""criação" (animais) que possuía em pagamento.
Enquanto sua plantação era arrancada pela raiz, Jara protestava e lamentava sua má-sorte. Disse que esperava obter duas colheitas por ano, cada uma com quatro arrobas (58,76 Kg) de folhas, que lhe renderiam perto de US$ 2.800 por ano.
Faustino Solano Ocaña, 38, vizinho de Celso Jara e igualmente pai de cinco filhos, diz que vive há cinco anos na região, onde produzia 15 arrobas (220 Kg) de folhas de coca por ano.
Questionado sobre o que iria fazer a partir de agora, ele respondeu com um tom de lamentação: ""Vou seguir trabalhando e viver como for possível. Não posso regressar para a minha terra, na serra, porque tenho criaturas (animais) aqui e aqui permanecerei de alguma maneira. Me dedicarei a buscar o que comer".
Vizinha de Jara e de Ocaña, a agricultora Julia Vieira Reynoso, 37, mostra o documento com autorização da Enaco para produzir 6 kg de folhas de coca em sua pequena propriedade, registrada com o nome de sítio Rei Davi, numa tentativa desesperada para convencer os soldados da Polícia Nacional do Peru a interromperem a destruição de seu plantio.
Além do documento da Enaco, Julio Reynoso exibe um contrato de compromisso de entrega de 2 arrobas (28,38 kg) de coca para a Frente de Defensa de la Hoja de Coca del Alto Huallaga (Frente de Defesa da Folha de Coca do Alto Huallaga), espécie de cooperativa dos agricultores, que comercializa o excedente de produção.
O chefe dos policiais que vigiavam a destruição da plantação, que não quis se identificar, afirmou que o documento da cooperativa comprova que a agricultora estava produzindo além de seu limite autorizado.
Questionada sobre quem comprava o excedente da produção -segundo a polícia, são os traficantes-, ela afirmou desconhecer os compradores.
Mãe de quatro filhos e também analfabeta, Julia Reynoso chorava ao ser afastada da reportagem pelos policiais. ""Não me deixaram uma plantinha sequer e, "ahorita", não tenho nada. Como vou alimentar meus filhos, se me levaram todas as "coquitas" que tinha?". (ELVIRA LOBATO)


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