São Paulo, quarta-feira, 09 de agosto de 2000


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ELIO GASPARI
Quem persegue FFHH não investiga EJ

Richard Rovere foi um dos maiores jornalistas políticos americanos. Escreveu uma coluna sobre a vida em Washington para a revista "The New Yorker" de 1948 a 1979, quando morreu. Foi grande pelo estilo, impondo-se um compromisso com a reflexão capaz de dar a um pequeno artigo o peso de um piano. Contava que lera "Moby Dick" pulando páginas e nunca terminara o "Don Quixote". Um jornalista capaz de escrever que "em última análise, não há última análise" merece atenção.
Boa parte deste artigo será ocupada pela transcrição de escritos de Rovere. Referem-se a um período da política americana e analisam um personagem particular. Ambos serão identificados mais adiante. Até lá, vai-se registrar a fala de Rovere, pelo que ela tem de atual para o clima que se está estabelecendo na política brasileira.
Ele criou a expressão "múltipla inverdade" (multiple untruth). Definiu-a assim:
"A "múltipla inverdade" não precisa ser uma grande falsidade. Pode ser uma sucessão de inverdades tenuamente conexas, ou uma única falsidade com muitas facetas. Em qualquer caso, o conjunto se compõe de tantas partes que uma pessoa interessada em compor um registro fiel descobrirá que é impossível manter na cabeça todos os elementos da falsidade. Alguém poderá selecionar umas poucas afirmações, provando-as falsas, mas, ao fazer isso, dará a impressão de que só aquelas que selecionou são falsas, enquanto as demais são verdadeiras. Outra grande vantagem da "múltipla inverdade" é que as afirmações provadamente falsas podem ser impunemente repetidas porque ninguém vai lembrar quais foram desmentidas e quais não foram".
Desde o depoimento de Eduardo Jorge Caldas Pereira na subcomissão do Senado, o governo de FFHH está sendo encurralado pela "múltipla inverdade". Há abundância de partes: o juiz Lalau, o ex-senador Luiz Estevão, a Incal, a promiscuidade do Planalto, o apartamento, as firmas, a parentela, os telefonemas, automóveis e votos. Nessa história há facetas verdadeiras. Luiz Estevão é pelo menos mentiroso. Lalau é ladrão. Há outras sem vestígio de comprovação. (Que Eduardo Jorge tenha se beneficiado dos desvios de Lalau, por exemplo).
O ex-secretário-geral da Presidência depôs durante sete horas e não deixou pergunta sem resposta. Provou que o senador Roberto Requião o acusava de uma falsidade ao dizer que fizera um negócio com o Banco do Brasil. Àquela hora essa informação estava honestamente desmentida. Feita a contradita, o senador não recuou. Disse-lhe que seu lugar era a penitenciária, "atrás das grades".
É o caso de voltar a Rovere. O personagem que ele analisou disse a um general, veterano da Segunda Guerra:
"O senhor desonra esse uniforme. (...) O senhor não tem condições para ser um oficial. O senhor é um ignorante."
Rovere analisou o comportamento do senador Joseph McCarthy e suas denúncias de infiltração comunista no governo americano. Apoiado por uma "coligação dos ofendidos", estimulou "um clima no qual o dissenso tornou-se uma circunstância suspeita, exigindo explicação ou justificativa".
Desde o depoimento de quinta-feira passada, é isso o que se está fazendo. Criou-se uma situação na qual não se separam mais as acusações que Eduardo Jorge provou falsas e aquelas que podem até ser verdadeiras (ainda que nenhuma tenha sido provada).
Rovere escreveu o seguinte a respeito de McCarthy: "Ele ultrajou o bom senso e sustentou que o bom senso era um ultraje". Pois parece ultrajante dizer que um telefonema de dois minutos não chega a ser uma conversação telefônica, como recomenda o bom senso.
Há diferenças entre as acusações que se fazem a Eduardo Jorge e as que fazia o senador americano. No caso do ex-secretário de FFHH, não há uma "sucessão de inverdades tenuamente conexas, ou uma única falsidade com muitas facetas". Há verdades e inverdades tenuamente desconexas. Ele apoiou Luiz Estevão muito antes do primeiro turno da eleição de 1998. Influiu no preenchimento de cargos nos fundos de pensão e orientou algumas de suas condutas. Alavancou empréstimos no BNDES. Disse aos senadores que fez isso na qualidade de coordenador da campanha de FFHH, e até hoje ninguém lhe perguntou o que uma coisa tinha a ver com a outra. São facetas verdadeiras da grande e sólida verdade do voluntarismo que existiu (e existe) no Palácio do Planalto. A falsidade de McCarthy estava no conjunto da obra e, sobretudo, no benefício que a multiplicidade lhe dava.
A multiplicidade das acusações feitas a Eduardo Jorge associou-se a uma tática de seus adversários na qual, em vez de fecharem o foco, abrem-no. Em vez se de provar a acusação de ontem, levanta-se uma nova. Desmentida uma (como a do Banco do Brasil) espera-se que ele vá para a penitenciária por conta da próxima.
O procurador Guilherme Schelb, que investiga Eduardo Jorge, disse o seguinte ao repórter Abnor Gondim:
"Esperamos contar com o apoio dos deputados para perseguir os corruptos que ocupam cargos na administração pública."
Erro. Voltando ao tempo de McCarthy, outro jornalista (Edward Murrow) acusou-o de ter cruzado "a linha fina que separa a investigação da perseguição". Os procuradores estão aí para investigar, não para esperar o apoio dos deputados para "perseguir" os corruptos. Já atravessaram essa linha faz tempo.
Eduardo Jorge e o governo precisam de mais investigação e de menos perseguição. Bem investigados, não haverá motivos para persegui-los.


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