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São Paulo, terça-feira, 09 de setembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

O que a Bahia tem

Só na aparência situam-se em extremos opostos os protestos que, a começar da segunda-feira passada, paralisaram ininterruptamente grande parte de Salvador e, de outra parte, a atitude cautelosa dos governantes baianos e dos comandos locais do Exército e da Marinha, que chegaram à impensável interrupção do desfile da Independência "por falta absoluta de segurança", sob o assédio iminente dos manifestantes.
Outra aparência enganosa do episódio é a de que reflita algo próprio de Salvador.
O fato de que estudantes tenham iniciado e se posto à frente dos protestos, contra aumento das passagens de ônibus de R$ 1,30 para R$ 1,50, não significa que toda a semana de manifestações paralisantes seja obra do movimento estudantil, como o noticiário comum faria crer. É muito duvidoso que apenas R$ 0,20 de aumento levassem a tanto, ainda mais depois que o prefeito Antonio Imbassahy propôs compensações mais do que satisfatórias para os estudantes, e as manifestações de massa não cessaram.
Fotos e vídeos, por mais parcimonioso que tenha sido o seu uso na mídia em geral e TV em particular, exibem nas paralisações do trânsito urbano uma vasta massa cujas características não se confunde com a de estudantes, cujo presença não era, também, menos identificável. Em muitos dos cenários que foram exibidos, a maioria representava, sem dúvida, a parte da população que faz da bela Salvador uma das cidades com maior concentração de pobreza, desemprego ou subemprego e, claro, um dos pólos de injustiça social mais clamorosos. Até pelo convívio direto, como no Rio senão ainda mais, da pujança e da carência.
Mas, nas condições gerais, Salvador não é caso único. Não é só desta cidade que fala o seu arcebispo e presidente da CNBB, d. Geraldo Majella, que "uma panela de pressão está prestes a explodir", o que "os conflitos sociais registrados ultimamente demonstram". Conflitos que estão muito além das ruas de Salvador, estão no meio rural, estão na criminalidade urbana, na crescente interferência de desordeiros de todos os graus na vida das cidades.
As relações entre CNBB e governo Lula estão ásperas, para não dizer mais. Só a polícia e os médicos do serviço público, suponho, conhecem tão bem a realidade dos marginalizados quanto os religiosos voltados para questões sociais. Daí a acusação, nas palavras de d. Aloísio Lorscheider, arcebispo de Aparecida, à "falta de políticas geradoras de trabalho e renda e de promoção da vida". A inquietação da CNBB aumenta por reflexo. E o governo tem preferido ouvir mal e reagir pior.
Quando da eleição de Franco Montoro, Leonel Brizola e Tancredo Neves para os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, no ocaso, mas ainda em vida do regime militar, pesadas agitações se multiplicaram em diferentes cidades, criando uma situação que já escapava ao controle dos governadores. Constatou-se, depois, que eram criadas por uns poucos agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações) e outros ramais da linha dura. Eram suficientes, com um simples ato de desordem em praça pública, para fazer explodir a insatisfação acumulada pela população desfavorecida, com os anos de agravamento socioeconômico.
Sem a figura dos agentes provocadores, mas com insatisfação popular semelhante, Salvador faz lembrar o passado e adverte para o futuro. Ou para o presente, mesmo. Pelo que tem de comum com a vida e o sentimento da população pelo país afora.
E adverte ainda porque, lá, autoridades do governo e comandos militares vêm demonstrando (pelo menos até a hora em que escrevo) maturidade e compreensão incomuns com o problema, evitando que suas atitudes se transformem em pólvora. Se os acontecimentos não servirem para mais nada, que sirvam ao menos para a possibilidade, também rara, de saudar a atitude do poder civil e do comando militar. De Salvador e do Estado.


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