São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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CASO MALUF

Sílvio Marques, que apura caso do ex-prefeito na área cível, diz que prisão não interrompeu investigações

Promotor investiga novas contas de Maluf

LILIAN CHRISTOFOLETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

O promotor de Justiça da Cidadania Sílvio Antônio Marques, 39, primeiro a relacionar a suposta origem ilícita do dinheiro creditado no exterior a Paulo Maluf, 74, diz que a investigação não parou com a prisão do ex-prefeito.
"Temos a informação de duas novas offshores [empresas em que os sócios não são identificados] e acreditamos na existência de outras contas bancárias ainda não rastreadas no exterior", afirmou Marques, que estima em pelo menos US$ 225 milhões o volume de dinheiro bloqueado dos Maluf no exterior.
Marques afirmou que entrou na investigação após reportagem da Folha publicada em junho de 2001 ter revelado que autoridades do paraíso fiscal da ilha de Jersey, no canal da Mancha, comunicaram ao Brasil que haviam bloqueado cerca de US$ 200 milhões lá depositados em nome de Maluf e de seus familiares.
Desde então, foram identificadas contas na Suíça, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França e no paraíso fiscal de Luxemburgo.
Na Promotoria da Cidadania do Ministério Público do Estado de São Paulo, Marques cuida da investigação na área cível. A implicação penal era de responsabilidade do procurador Pedro Barbosa Neto, que, após ser promovido, foi substituído por Rodrigo de Grandis. Os dois fazem parte do Ministério Público Federal.
Leia abaixo entrevista concedida na última quarta-feira.

Folha - Como começou a investigação sobre as supostas contas de Maluf no exterior?
Sílvio Antônio Marques -
Tudo começou após a reportagem da Folha sobre contas do ex-prefeito Paulo Maluf na ilha de Jersey. Até então, só o Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado], órgão do Ministério Público, sabia e, por uma questão estratégica, mantinha a informação sob sigilo. A reportagem abriu a investigação na Promotoria da Cidadania.

Folha - E depois, qual foi o próximo passo?
Marques -
No comunicado enviado por Jersey ao Brasil, havia a informação de transferência de valores de Genebra [Suíça] para Jersey em nome de "Paolo Maluf". Nós começamos, então, a tentar obter mais dados. No começo, enfrentamos muitos problemas. No Brasil, três órgãos estavam no caso: na área cível, a Cidadania, na criminal, o Gaeco e a Procuradoria da República. Isso causou problemas na relação internacional. Esse conflito de competência foi dirimido pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), que, em outubro de 2001, decidiu que a apuração criminal deveria ficar com a Procuradoria.

Folha - A discussão sobre competência atrapalhou a investigação?
Marques -
Atrapalhou, mas, nessa época, ainda não tínhamos indícios suficientes para pedir qualquer quebra de sigilo internacional. Os elementos principais da investigação passaram a existir a partir do dia 22 de janeiro de 2002.

Folha - O que ocorreu neste dia?
Marques -
Neste dia, eu e o promotor José Carlos Blat ouvimos pela primeira vez Joel Guedes Fernandes, ex-caixa da construtora Mendes Júnior. Foi quando ele, ao falar do superfaturamento na construção da avenida Água Espraiada, disse que seus dedos doíam de tanto distribuir notas de dólares em caixas de bombons ou de whisky. Depois, no dia 27 de fevereiro de 2002, por meio de Joel, ouvimos Simeão Damasceno de Oliveira, ex-diretor financeiro da construtora. No depoimento, Simeão envolveu diretamente o ex-prefeito no superfaturamento.

Folha - E como chegaram ao Joel? Marques - Foi de uma forma casual. A mulher de um dos promotores encontrou, em um clube de São Paulo, uma amiga advogada que lhe contou sobre um advogado que havia sido contratado por Joel e por Simeão, que sabiam de irregularidades na obra. Procuramos o advogado. No começo, Joel estava com muito medo de falar. Mas foi com o depoimento de Joel, de Simeão, da ex-primeira-dama Nicéa Pitta [ex-mulher de Celso Pitta], que nós conseguimos reunir um material probatório e pedir a quebra do sigilo internacional.

Folha - A Suíça devolveu três vezes este mesmo pedido. Por quê?
Marques -
Primeiro a Suíça queria saber o motivo de dois Ministérios Públicos investigarem o caso. Explicamos que um era cível, outro, criminal. Por conta disso, unificamos o pedido. Depois, a Suíça pediu mais dados probatórios. Enviamos. Pediu novamente. Enviamos, então, novas informações, cópias de depoimentos. Demonstramos claramente que houve desvio de dinheiro da avenida Água Espraiada. Nesta fase, foram enviadas mais de mil cópias de documentos à Suíça.

Folha - Como é este suposto esquema identificado?
Marques -
Exatamente como Joel e Simeão haviam falado. A Prefeitura de São Paulo pagava a Mendes Júnior e a [empreiteira] OAS pela obra da avenida Água Espraiada. Uma boa parte deste pagamento, cerca de 40%, tinha como destino a compra de notas fiscais frias. Do total de notas frias, 90% retornava para as construtoras. Esse dinheiro era convertido em dólares. Parte era paga aqui no Brasil. Outra parte, encaminhada ao exterior por meio de doleiros. A investigação demonstrou que o ex-prefeito recebeu propina até o final de 1998 [Maluf administrou São Paulo entre 1993 e 1996. Foi sucedido por Pitta, 1997 e 2000].

Folha - Quando a Suíça aceitou liberar os documentos?
Marques -
Em junho de 2003, o juiz de instrução Claude-François Wenger em Genebra liberou a documentação para o Brasil. O ex-prefeito recorreu da decisão, por meio de seus advogados. Em outubro de 2003, o tribunal cantonal rejeitou o recurso do Maluf. Eles recorreram novamente ao Tribunal Federal de Justiça da Suíça, instância máxima, e perderam novamente. Em janeiro de 2004, os documentos foram liberados.

Folha - O Brasil teve acesso a todos as contas atribuídas a Maluf?
Marques -
Faltaram alguns papéis. Nós já pedimos à Suíça o material completo. Com os documentos que recebemos, no entanto, finalmente ficou provada a existência de recursos do ex-prefeito no exterior.

Folha - Mas as contas não estavam no nome dele. Isto dificulta na Justiça?
Marques -
Não. Isto só demonstra uma tentativa do ex-prefeito de dissimular essa movimentação de dólares no exterior. O fato de a conta não estar no nome dele ainda depõe contra o próprio investigado. Afinal, quem movimentou dinheiro no exterior de forma lícita não precisa se esconder atrás de fundações em Liechtenstein [principado europeu] ou de offshores em paraísos fiscais.

Folha - Como o sr. avalia o fato de o ex-prefeito sempre ter negado possuir contas no exterior?
Marques -
O fato de ele ser beneficiário de contas na Suíça não surte nenhum efeito favorável a ele no sentido de não ter contas no exterior. De fato, Maluf não possui contas em nome próprio, mas ele e familiares são beneficiários dessas fundações que têm contas. Isso demonstra apenas que ele tentou, por meio de vários bancos, esconder esse dinheiro.

Folha - Quantas contas são creditadas aos Maluf no exterior?
Marques -
É difícil precisar um número, porque uma conta pode ter dezenas de subcontas. Estamos rastreando contas bancárias na Suíça, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na ilha de Jersey, na França e em Luxemburgo -esta última está no nome da mulher dele, Sylvia Maluf.

Folha - Pode haver contas em outros países ainda?
Marques -
Sim, é possível. Ainda não sabemos o destino de uma boa parte do dinheiro e, para descobrir isso, dependemos da colaboração de outros países. Provavelmente encontraremos novas informações quando chegarem os documentos que esperamos. Há informações de dinheiro bloqueado na Suíça, na França, em Jersey e em Luxemburgo. Mas algumas movimentações não foram rastreadas.

Folha - Quanto tem em dinheiro hoje dos Maluf no exterior?
Marques -
Foi publicada na imprensa que, na Suíça, foi constatada uma movimentação de US$ 446 milhões. Não podemos afirmar categoricamente que a quantidade de dinheiro era essa. Há muitas movimentações. Num dia, o dinheiro entra na conta. No outro dia, sai. Três dias depois, o mesmo dinheiro volta. US$ 446 milhões era a movimentação. A gente estima, no entanto, que hoje deva existir pelo menos US$ 225 milhões entre dinheiro e bens. Fundos do Deutsche Morgan Grenfell de Jersey compraram debêntures da Eucatex [empresa dos Maluf], depois convertidas em ações, no valor de US$ 89,3 milhões. Há indícios de que esse dinheiro é oriundo de contas em Jersey que beneficiam Maluf.

Folha - Quantas offshores vocês relacionam a Maluf?
Marques -
A primeira foi a empresa Blue Diamond, depois substituída pela Red Ruby. Por meio de contas abertas em nome da offshore na Suíça, o dinheiro foi enviado para Jersey. Tem ainda a White Gold Foundation, que mandou dinheiro para Londres, em nome da Durant International. Uma empresa substituiu a outra. É uma forma de dificultar a investigação. Essas estavam em nome de Maluf. Há outras offshores em nome de familiares. Nós não descartamos ainda a utilização de outras duas offshores que apareceram durante as investigação e cujos nomes estamos mantendo em sigilo.

Folha - E quantos doleiros foram identificados?
Marques -
Pelo menos seis doleiros. Um deles é o Alberto Youssef, que disse que era doleiro de doleiro, ou seja, não sabia de onde vinha o dinheiro. Outro é Vivaldo Alves, o Birigüi, que contou ter movimentado US$ 161 milhões nos EUA a pedido de Flávio Maluf. Os demais nomes são mantidos em sigilo.

Folha - O sr. acredita ser possível provar tudo isso na Justiça?
Marques -
Não tenho dúvidas. A prova reunida até agora é cabal. Tudo indica que houve lavagem de dinheiro e movimentação de recursos ilícitos no exterior a mando do ex-prefeito e de familiares. Temos provas concretas e documentais. Um dos nossos objetivos agora é repatriar esses valores. A Promotoria da Cidadania já propôs uma ação em que pede a devolução de todo o dinheiro movimentado no exterior, estimado em US$ 446 milhões, e pede multa de três vezes esse valor. O total é de cerca de R$ 5 bilhões.

Folha - Esse valor é pagável?
Marques -
Dos 37 demandados, entre pessoas físicas e jurídicas, a Promotoria pediu o bloqueio de bens de 35. Ficaram de fora Otávio e Lina, filhos do ex-prefeito, que não tinham contas em nome deles. A indisponibilidade de bens foi decretada pela juíza da 4ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, Renata Coelho Okida. E todos os recursos impetrados contra a decisão da juíza foram negados pelo desembargador Roberto Soares Lima, da 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça.

Folha - Quanto tempo demanda uma eventual repatriação?
Marques -
O trânsito em julgado pode levar de dez a doze anos. Mas todos os bens estão bloqueados e esperamos que permaneçam assim até o julgamento final.

Folha - O fato de Maluf ter 74 anos altera este prazo? E se algum dos demandados morrer, o que acontece?
Marques -
O fato de Maluf ter mais de 70 anos só influencia na área criminal, não na cível. E, se algum dos demandados morrer, a responsabilidade recairá sobre seu espólio. A ação vai continuar.

Folha - Outras pessoas ainda são investigadas?
Marques -
Sim. Agora o alvo são construtoras, alguns doleiros, bancos que ajudaram na lavagem de dinheiro e outras pessoas. Teremos ainda um grande trabalho.

Folha - O sr. acha que a prisão do ex-prefeito é justa?
Marques -
É justa. As provas de que houve desvio de dinheiro público são realmente contundentes. E o ex-prefeito tentou, por todos os meios, esconder as contas bancárias no exterior e influir na produção das provas. Considerando esses fatos e a magnitude da lesão causada aos cofres públicos, entendo que a prisão do ex-prefeito foi uma medida justa.

Folha - O relacionamento com a Suíça foi marcado por desencontros. Recentemente, o Brasil foi proibido de usar papéis suíços em ação movida contra Maluf. O Brasil ainda está engatinhando quando o tema é cooperação internacional?
Marques -
Nem eu, nem o dr. Pedro Barbosa, nem o dr. Rodrigo de Grandis, ninguém tem experiência suficiente para não cometer equívocos. A gente vai aprendendo. No começo, não tínhamos uma coordenação. Depois, teve importância crucial a equipe montada pela secretária nacional de Justiça, Cláudia Chagas, com Antenor Madruga [do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional] e as procuradoras da Fazenda Nacional Wannine Lima e Raquel Palmeira. O caso do juiz Nicolau dos Santos Neto [acusado de desvio na construção do TRT paulista], por exemplo, foi importante para entendermos a legislação suíça. O do ex-prefeito Paulo Maluf foi importante para a elaboração de um acordo.

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