São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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ELIO GASPARI

A baixa marquetagem do PFL

O PT está comendo o pão que Asmodeu amassou por conta da administração de Marta Suplicy em São Paulo e do escândalo de suas ligações perigosas com o jogo do bicho no Rio Grande do Sul. São coisas da vida de quem passa de estilingue a vidraça. A debilidade petista tem um lado positivo. Permite a análise do comportamento de seus adversários quando passam de vidraça a estilingue. No caso do PFL, deu-se um desastre.
O partido bragantino (visto que está no poder desde a chegada de d. João 6º ao Brasil) lançou o estilo marquetagem-baixaria. Num programa de televisão destinado ao eleitorado paulista, disse o seguinte:
"O PT é bom para criticar, mas não sabe governar".
"Xô, petelho. Larga do meu bolso, larga do meu pé".
Parodiando um slogan petista, arrematou: "Você pode não saber, mas você tem muita coisa é do PFL". É direito do cidadão achar que o PT não sabe governar, nem mesmo criticar. Há razões para se temer que a nação petista, uma vez no poder em Brasília, aumente a carga tributária nacional. Isso não elimina o fato de que hoje ela está em 32% do PIB, um recorde histórico, mas é o PFL quem está no governo, não o PT.
O que vale a pena é pensar na frase segundo a qual "você tem muita coisa" de PFL. Como diria o deputado Hildebrando Paschoal (do PFL), aquele que mandava serrar os desafetos, vamos por partes.
Três horas depois do programa ter ido ao ar, o prefeito pefelê do Rio de Janeiro, Cesar Maia, estava na casa de espetáculos Scala, recebendo uma homenagem da Liga Independente das Escolas de Samba. Ganhou uma placa de agradecimento e um abraço do seu presidente, Ailton Guimarães Jorge. Foram homenageados também os cidadãos Aniz Abraão David e Luiz Pacheco Drummond. Salvo Maia, todos bicheiros.
O presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen, é homem sério e dedica um solene horror à vulgaridade. É certo que jamais iria a uma solenidade dessas, mas resta saber o que permitiria aos seus marqueteiros se o governador Olívio Dutra tivesse feito coisa parecida.
Noves fora o jogo do bicho, a biografia do presidente da liga das escolas de samba mostra quão grande pode ser o risco de ter "muita coisa" do PFL. Cesar Maia rasgou seda louvando-lhe a competência. De fato, o bicheiro, conhecido pelo apelido de "capitão Guimarães", reorganizou a contravenção no eixo Rio-Vitória. (No Espírito Santo, ligando-se por amizade ao ex-bicheiro confesso José Carlos Gratz, presidente da Assembléia Legislativa do Estado e ilustre pefelista.)
Cesar Maia louvou-lhe a capacidade de arrecadar recursos para as escolas de samba e seu desfile. Reconheça-se que o capitão fez muito pelo Carnaval carioca, mas Maia é um admirador tardio do bicheiro. Em dezembro de 1969, quando Guimarães servia na 1ª Companhia da PE, no Rio, o general comandante da Vila Militar viu nele um oficial "espontâneo e dedicado, um voluntário permanente para tudo o que der e vier".
Guimarães tinha sido ferido a bala em combate, e o general sabia do que falava. Os depoimentos de três presos políticos que passaram pela 1ª Companhia da PE listam o capitão entre seus torturadores. Ele também é acusado de ter sido o professor da famosa aula de tortura que aparece no filme "O Estado de Sítio", do diretor Costa-Gavras. Ela aconteceu no dia 8 de outubro de 1969, mas há indícios convincentes de que Guimarães não estava na cena.
Dois anos depois, o dedicado capitão articulou uma quadrilha de roubo de cargas de contrabandistas. Tosou um caminhão com alguns milhares de calças Lee e centenas de caixas de uísque (House of Lords). Juntou sua tropa a um detetive que presidia a Scuderie Le Coq, braço visível do Esquadrão da Morte. Lotado no DOI-Codi, escapou de uma denúncia, mas acabou apanhado e preso, num arrastão que colheu perto de 30 pessoas. Em 1979, sustentando que as confissões foram obtidas por meio dos métodos que usavam contra os presos políticos, acabaram absolvidos. Guimarães transferiu-se para o jogo do bicho, no qual revolucionou as técnicas de gerência da contravenção y otras cositas más.
Ele pode não saber, mas, como diz a propaganda pefelista, "você tem muita coisa do PFL".
Os deuses da política gostam de pequenas molecagens. Fizeram uma coisa horrível com a marqueteria pefelê e o desembaraço de Cesar Maia. Os autores da baixaria acharam que poderiam chamar desgraciosamente os petistas de "petelhos". Valeram-se de uma expressão popularizada e provavelmente cunhada pelo jornalista Paulo Francis. Pois é: na noite de 13 de dezembro de 1968, quando foi baixado o AI-5, foi o capitão Guimarães quem prendeu Francis.

Vitória dos negros

Batido o martelo. FFHH quer criar um sistema de quotas para negros na prestação de serviços à administração federal. O Ministério da Reforma Agrária começou essa política, e o da Justiça foi atrás. Será criado um núcleo de discussão da idéia para torná-la legal e eficaz. Faria melhor se cortasse esse caminho de centenária inutilidade.
Se o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, ajudar a desatar o nó da falta de negros nas universidades públicas brasileiras, a choldra haverá de agradecer. Um de seus burocratas já chamou a idéia de "escalafobética".

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota. Ele acredita em tudo o que o mercado diz. Durante anos disseram-lhe que um peso argentino valia a mesma coisa que um dólar. Por conta disso e das maravilhas que a banca dizia do ministro Domingo Cavallo, tudo o que ele economizava guardava em dólares. Viveu certo de que um dia o peso seguraria a moeda americana. O idiota não entende por que outras pessoas fizeram diferente.

Cobrança

Há quatro bolas governistas no bingo da sucessão presidencial. São as seguintes, por ordem alfabética:
José Serra
Paulo Renato Souza
Roseana Sarney
Tasso Jereissati.
Raras são as pessoas que ainda não deram a sua opinião a respeito do projeto de reordenamento das relações trabalhistas patrocinado pelo governo. Ele foi aprovado na Câmara por 264 votos contra 213. Nenhum dos quatro disse uma mísera palavra a respeito do assunto.
De duas, uma: ou ainda não entenderam a matéria, ou, tendo-a entendido, acharam melhor ficar calados. Na primeira hipótese, deve-se duvidar da inteligência deles. Na segunda, eles duvidam da inteligência da patuléia.
Fica o registro de que todos os candidatos oposicionistas já se manifestaram contra a mudança. Chamam-se Ciro Gomes, Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva.
O projeto de estripamento da CLT só deverá ser votado pelo Senado em março do ano que vem. Até lá, os quatro cavaleiros do governismo terão algo a dizer.

Proeles

Conta de um curioso:
Quem depositou R$ 100 na poupança em julho de 1994, quando começou o Plano Real, tem hoje R$ 374. Pode comprar quatro pneus.
Quem devesse R$ 100 no cheque especial estaria devendo R$ 139.259. Dinheiro suficiente para comprar nove carros populares.

As muitas faces do homem sem rosto

Saiu um livraço. É "Tiradentes: o Corpo do Herói", da professora Maria Alice Milliet. Trata da representação da figura de Tiradentes na história nacional. Como não existe descrição física razoável do alferes, ele foi inventado e reinventado a partir das idéias alheias. Tem barba porque na prisão não teve barbeiro. O resto é fantasia. O livro ensina que, a cada virada histórica brasileira, inventa-se um novo Tiradentes.
Na origem, ele e a Inconfidência Mineira foram uma criação republicana. O historiador Evaldo Cabral de Mello já disse que a conjura foi coisa de uma "esquerda festiva" setecentista. Tiradentes não foi o único enforcado. O movimento em que se meteu ficou muito aquém das revoltas da Bahia e de Pernambuco. Todas as suas opiniões conhecidas cabem em dois parágrafos da obra de frei Caneca. Não foi à toa que Capistrano de Abreu deixou de mencioná-la na sua história do período colonial. "Dada a escala, não entrou porque não cabia", explicou.
O positivismo dos primeiros anos da República adorou-lhe a origem militar e deu-lhe um ar de Jesus Cristo. Aqui e ali seu olhar mostrava certa rebeldia ou, pelo menos, ardor. É o caso da figura quase impossível de ser vista no monumento de Ouro Preto, feito em 1894. Sua imagem oficial, decretada em 1966 pelo marechal Castello Branco, é a da estátua do Rio de Janeiro. Está mais para piedosa. É coisa de 1926. Nela conclui-se a transformação do insurreto em santo. Ficaram a barba e a bata, mas sumiu a corda.
A partir da serenidade que mostrou na hora de morrer, Tiradentes tornou-se uma figura apaziguadora. Fizeram isso com um sujeito enforcado, esquartejado e deixado ao relento. Sua casa foi salgada.
O livro da professora Milliet é uma aula de história e de como se pode olhar para uma pintura. Razoavelmente ilustrado, mostra as fontes de inspiração dos artistas.
Seu grande momento é o estudo do painel pintado por Cândido Portinari em 1948, e sua observação mais arguta está na comprovação de que a figura de Tiradentes vivo deixada por Portinari é a do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Portinari foi o único a colocar o povo na vida do inconfidente. Ele era filiado ao PCB e pela sua legenda candidatou-se à Câmara e ao Senado. Por causa disso foi proibido de entrar nos Estados Unidos.
O alferes resiste. É Tiradentes o nome da praça do Rio onde está a estátua de d. Pedro 1º, o neto da rainha doida que mandou enforcá-lo.

ENTREVISTA

Antoninho Trevisan
(52 anos, presidente da Trevisan Auditores e Consultores.)

- Há cerca de um ano, com a sua ajuda, o Conselho Federal de Contabilidade começou a mapear o comportamento das prefeituras diante da Lei de Responsabilidade Fiscal, que as obriga a não gastar com a folha de pagamento mais de 60% da arrecadação e a não dever mais de 1,7 vez o que recebem. Deu no quê?
Nós oferecemos aos prefeitos um programa de adesão. Eles mandariam os números de suas finanças e nós os analisaríamos. Aqueles que estivessem nos conformes receberiam um "Certificado de Gestão Responsável". Dos 5.568 prefeitos, 901 aderiram. Os gaúchos foram os mais interessados, com 28% de adesão. Entre os catarinenses foram 27% e entre os paulistas, 25%. A menor adesão veio do Amapá, com zero prefeitos. Depois, empatados, ficaram o Piauí e o Maranhão, com 4%. No universo das 901 prefeituras que abriram seus livros, 223 estão perfeitamente enquadradas. Outras 145 estão perto disso.
- Quais são as prefeituras que tiveram os melhores desempenhos?
Nós organizamos duas listas. Uma é a das cidades com mais de 50 mil habitantes. Deu o seguinte:
1º - Concórdia, SC;
2º - Tangará da Serra, MT;
3º - Sinop, MT;
4º - Araranguá, SC;
5º - Caçador, SC;
6º - Manaus, AM;
7º - Anápolis, GO;
8º - Itapecerica da Serra, SP.
É só. Não chegamos a dez. A maioria das capitais não aderiu à verificação. As três maiores prefeituras, São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, preferiram ficar de fora.
Entre as cidades com menos de 50 mil habitantes, o resultado é o seguinte:
1º - Vista Gaúcha, RS;
2º - Centenário, RS;
3º - Fernão, SP;
4º - Imigrante, RS;
5º - Altinópolis, SP;
6º - Cândido Rondon, PR;
7º - Bituruna, PR;
8º - Rio Bonito do Iguaçu, PR;
9º - Cotiporã, RS;
10º - Marcelino Ramos, RS.
Essas prefeituras devem menos do que podem, e a folha está abaixo de 60% da arrecadação.
- Esses parâmetros inviabilizam algumas prefeituras?
Não. O que está em questão é algo muito maior que a responsabilidade fiscal. É a espoliação do contribuinte, o desprezo pelo cidadão. Felizmente o jogo virou. O povo não tem mais medo do prefeito, e o prefeito começa a ter medo do povo. Vou lhe mostrar o caso de um pequeno município a 230 km de São Paulo. Chama-se Ribeirão Bonito, tem R$ 600 mil de receita mensal e neste ano seu déficit é de R$ 1,7 milhão. Sua prefeitura tem só uns poucos veículos, mas compra de um fornecedor de outra cidade 8.000 litros de gasolina por mês. Paga 13% mais caro. Na merenda escolar, a carne é rara. Ela é comprada também em outra cidade. O dono do açougue que a fornece comprou uma camionete Blazer, placa CBI 4500. A filha do prefeito circula na cidade com uma camionete Blazer placa CBI 4500. Quando o promotor Marcel Zanin Bombardi pediu ao prefeito os documentos dessas transações, ele não os entregou. Por ordem judicial, os papéis foram confiscados. Diante disso, o prefeito, do PMDB, pediu 35 dias de licença para tratamento de saúde. Agora estão pedindo uma Comissão de Investigação à Câmara Municipal, e o assunto será decidido nesta quinta-feira. Há dez dias, todo dia gente do povo estoura rojões para lembrar aos donos do lugar que não se esqueceram do caso. O povo começa a perceber que o dinheiro é dele.


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