São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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NO PLANALTO

Veja como você virou sócio de hospital "filantrópico"

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Já ouviu falar de Lael Varella? Não? Pois informe-se. Você é sócio dele num hospital de Muriaé (MG). Embora privado, foi erigido com o seu dinheiro. Coisa de R$ 19,7 milhões.
A verba escorreu por um dreno instalado no ministério de José Serra. Jorrou ora da pasta da Saúde (R$ 15,9 milhões), ora de dutos federais que fazem escala no governo mineiro (R$ 3,8 milhões).
Se você não é fanático pelo noticiário do Congresso, é natural que o nome de Lael Varella lhe soe pouco familiar. É um opaco deputado do pefelê mineiro, uma flor que viceja à sombra, um mandato sem rosto.
Amealhou fortuna. É o maior distribuidor Chevrolet de Belo Horizonte. Possui revendas Scania em Minas, Goiás, Espírito Santo e Brasília. É dono de rádios e de transportadora. Fazendeiro, cria gado e cavalos de raça.
Uma alma assim, tão empreendedora, não vem ao Congresso a passeio. Natural que não tardasse a farejar na comissão de Orçamento um portal de oportunidade$. Súbito, encantou-se pelo ramo hospitalar. Deu-se assim:
1) criou em 95 fundação que leva o nome de um filho morto no ano anterior: Cristiano Varella. É administrada por outros dois filhos do deputado, Misael e Luciano Varella. Embora não estivesse voltada para a área médica, beliscou R$ 3,8 milhões do SUS entre 97 e 98. Repassou-os o governo mineiro;
2) ainda em 98, firmou convênio com a pasta da Saúde: R$ 96 mil. A área técnica do ministério alertou: a fundação não era credenciada ao SUS. Mas o secretário-executivo da Saúde, Barjas Negri, autorizou a liberação -"por determinação do senhor ministro". Nota fiscal de abril de 99 registra a compra de "filmes de raio-X". Constatou-se em abril de 2001 que, passados dois anos, o material não fora entregue;
3) a bancada mineira no Congresso plantou no Orçamento de 99 despesa de R$ 9,5 milhões, para "construção, instalação e equipamento de hospital no Estado de Minas Gerais". Ofício subscrito por 50 congressistas mineiros pediu a José Serra que destinasse a gaita à fundação de Lael Varella. Construiria um hospital do câncer. A consultoria jurídica do ministério escreveu: é preciso comprovar "que a entidade é sem fins lucrativos e que atua gratuitamente no atendimento à saúde". No papel, a fundação não visa ao lucro. Mas, de novo, não restou comprovado que lidasse com medicina. Nenhum sinal de convênio com o SUS. Liberou-se a verba. O contrato traz o nome de Serra, mas foi firmado por Barjas Negri. Previa repasses em 12 parcelas, abreviadas para cinco remessas. A última saiu em 21 de outubro de 99. Dali a 13 dias, em 4 de setembro, Lael Varella modificou o estatuto de sua fundação, injetando um hospital no organograma da entidade;
4) emenda do deputado Elias Murad (PSDB-MG) destinou novos R$ 40 mil à fundação do colega mineiro. Os técnicos da Saúde se opuseram. Alegaram que a entidade ainda não figurava no Datasus. O parecer consta da folha 16 do processo. Ignorando-o, Barjas Negri tocou o gasto;
5) em 2000, novas emendas, algumas do próprio Lael Varella, presentearam a fundação com a soma de R$ 4,2 milhões. Registraram-se atrasos na compra de equipamentos. Cobrada, a entidade alegou que as aquisições estavam em curso. "Os recursos recebidos se encontram totalmente aplicados no mercado financeiro (...)." Prorrogaram-se datas de vigência de convênios. O último expira em fevereiro de 2002;
6) em contato com o maravilhoso mundo das verbas públicas, a contabilidade da fundação experimentou jucunda prosperidade. A escrituração de 95 registra resultado de mirrados R$ 9.000. Em 31 de dezembro de 2000, o saldo era de R$ 18,1 milhões. Em 96, anotaram-se ganhos de parcos R$ 328,98 com aplicações financeiras. Em 2000, o valor saltou para R$ 751 mil.
É o seguinte o resultado da farra: erigiu-se em Muriaé um vistoso hospital de tratamento do câncer. Abriu as portas faz sete meses. Com capacidade para 3.000 atendimentos diários, acolhe, por ora, algo como 50 doentes por dia.
Não está autorizado ainda a realizar procedimentos complexos. Não há oncologistas em seus quadros. Limita-se a triar pacientes, encaminhando-os a hospitais de Juiz de Fora. Só na última quarta-feira requereu registro no SUS. Não paga impostos. Prepara-se para pedir à Previdência atestado de filantropia. Ergue-se à volta do hospital um complexo que, depois de pronto, terá universidade, escola técnica, ginásio poliesportivo, auditório e lojas.
Lael Varella diz ter tirado do próprio bolso R$ 12 milhões. Marcelo Portilho, seu administrador, afirma que o hospital, embora não tenha realizado uma mísera sessão de radioterapia, é "referência internacional" no combate ao câncer. Barjas Negri calou-se. Repassou nota redigida meses atrás, quando o tema começou a atrair a curiosidade jornalística. Sustenta que seus procedimentos "foram normais".
Acolhendo voto do ministro Walton Alencar Rodrigues, o TCU condenou o uso de adubo à base de erva pública em horta privada. Lael Varella recorreu. Peregrinou por gabinetes do tribunal. Relator do recurso, o ministro Adylson Motta, um ex-deputado, disse que a obra é legal. Votaram com ele quatro ministros, todos ex-parlamentares: Ubiratan Aguiar, Iram Saraiva, Valmir Campelo e Guilherme Palmeira. A posição de Walton foi derrotada por cinco votos a três.
Aliviado, Lael Varella planeja nova incursão pelo Orçamento. Quer mais R$ 5 milhões para o seu hospital. Há de levar. A austeridade do tucanato é seletiva. E o TCU não está aí para estragar a festa de ninguém. Nada de perguntas, gente.


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