São Paulo, segunda-feira, 09 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

Sócio-consultor da MCM critica câmaras setoriais e defende autonomia total para o BC

Governo terá de elevar juros, diz Senna

GUILHERME BARROS
EDITOR DO PAINEL S.A.

O economista José Júlio Senna, 56, sócio-diretor da MCM Consultores Associados e um dos nomes que chegaram a ser cotados para presidir o Banco Central do novo governo, acha que será inevitável um novo aumento de juros no apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso para conter a inflação. Ele aposta numa subida dos juros básicos dos atuais 22% ao ano para até 25%.
Doutor em economia pela Johns Hopkins University (EUA), Senna é professor licenciado da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas. Ex-diretor do Banco Central (1985), Senna também defende a total autonomia operacional do BC para o próximo governo. Ele acha que o presidente do BC do governo petista deve gozar da mesma autonomia ao atual presidente, Armínio Fraga.
"Se os agentes econômicos perceberem que a autonomia operacional existe, mas que é precária, ou seja, inferior a 100%, ficará muito difícil para o Banco Central inibir os ajustes espontâneos de preços e os repasses de aumentos de custos", afirma o economista.
Até o dia da entrevista, concedida na quarta-feira passada, no Rio de Janeiro, em seu escritório, Senna não tinha sido convidado pelo PT para ocupar a presidência do Banco Central, apesar de seu nome frequentar a lista do partido como um dos mais cotados para ocupar o cargo. Sobre esse assunto, ele preferiu não falar.
 
Folha -O PT não está demorando muito a escolher o presidente do Banco Central?
José Júlio Senna -
O mercado tem demonstrado otimismo com o que tem dito Antônio Palocci. Ele tem demonstrado capacidade excelente de administrar os conflitos. No campo fiscal, os sinais emitidos por ele também são muito bons. É preciso, no entanto, uma definição no tocante ao arcabouço da política monetária. Nesse caso, a qualidade das pessoas envolvidas é apenas um dos aspectos, certamente necessário para que se mantenha o processo inflacionário sob controle, mas não suficiente. É importante também que se conheçam bem as restrições que poderão existir para a condução de uma política monetária independente.
Há pouco tempo, em entrevista concedida à Folha, Palocci disse que a independência do Banco Central não era assunto para agora, mas reconhecia que a autonomia operacional era extremamente importante, num certo nível. Tal reconhecimento é de grande relevância, mas é preciso ir além, assegurando-se plena autonomia operacional para o BC.

Folha - O atual Banco Central também não é independente.
Senna -
O Banco Central sob Armínio Fraga não é formalmente independente, já que não existe um mandato fixo para a diretoria, mas ele dispõe de um grau de autonomia operacional de 100%. O sistema de metas de inflação ainda engatinha no Brasil, e os objetivos de política têm sido estabelecidos pelo Poder Executivo. No futuro, talvez faça sentido que as metas sejam ditadas pelo Congresso, que estaria expressando os desejos da sociedade como um todo, como acontece em outros países.
De qualquer modo, Armínio Fraga tem plena liberdade para administrar os instrumentos monetários, com o objetivo de cumprir as metas que lhe são impostas. Na situação atual, é muito importante que os agentes econômicos tenham a convicção de que a autoridade monetária agirá livremente e com total vigor no sentido de procurar inibir uma ação remarcadora de preços. Se os agentes econômicos perceberem que a autonomia operacional existe, mas que é precária, ou seja, inferior a 100%, ficará muito difícil para o Banco Central inibir os ajustes espontâneos de preços e os repasses de aumentos de custos.

Folha - O senhor considera que o novo governo deva mudar o sistema de metas de inflação?
Senna -
É extremamente importante reconhecer que a meta ficou irrealista demais. Banco Central algum mira o topo de uma banda de inflação. O alvo costuma ser o ponto central. O ponto central da inflação para o ano que vem é de 4%. Com margem, vai para 6,5%, mas o que se tem de mirar é 4%. A inflação observada já está em 11%. Não faz sentido o Banco Central continuar sustentando que seu objetivo é 4%: ninguém vai acreditar. O pé na realidade é um ingrediente fundamental.

Folha - Mas a mudança de meta não poderá arranhar a credibilidade do sistema de metas?
Senna -
Não se muda uma meta de inflação, como outros parâmetros de política econômica, impunemente. Custo vai ter. Agora o custo pode ser maior ou menor. Depende do que vem junto. Uma maneira de mudar a meta de inflação de forma incorreta seria afirmar que, em razão da revisão dos números, abre-se espaço para o crescimento econômico. Seria um grande equívoco. A curtíssimo prazo, é até possível conseguir um pouco mais de crescimento à custa de mais inflação, mas, definitivamente, a teoria e a experiência internacional mostram que esses ganhos jamais serão permanentes. E a sociedade sabe disso.
Agora, se a mudança for feita, e ao mesmo tempo for explicado que tal alteração objetiva apenas tornar a meta mais realista, por causa dos inúmeros choques que se abateram sobre a economia brasileira nos últimos tempos, possivelmente não se perderá a credibilidade. O custo da mudança será bem modesto.

Folha - Não tem um componente de medo de congelamento ou de tabelamento nessa alta de preços?
Senna -
Se o empresário começar a desconfiar que o Banco Central não será suficientemente austero, ele irá fazer as remarcações de preços. Se houver a expectativa de uma atitude vigorosa por parte do Banco Central, creio que isso pode compensar, em muito, o medo de que movimentos do tipo "pacto social" acabem interferindo na formação dos preços da economia. Agora, se porventura não se firmar a convicção de que o Banco Central do futuro governo perseguirá com firmeza o controle da inflação e, ao mesmo tempo, tomar corpo o medo de mecanismos como o das câmaras setoriais, nesse caso, a coisa fica mais complicada. Dificilmente um empresário dirige-se a uma negociação em câmara setorial, revelando, de início, seu preço mínimo. Ele vai tentar começar com uma margem superior àquela que aceitaria. Aliás, uma das coisas mais importantes que devem ser feitas é anunciar que essa história de câmaras setoriais irá para o fundo da gaveta. Se anunciarem isso, será dada uma bela contribuição para o controle da inflação.

Folha - O sr. acha que a negociação de preços por meio de câmaras setoriais não surtirá efeito no combate à inflação?
Senna -
A possibilidade de introdução desse mecanismo constitui um elemento a mais de insegurança. Esse assunto me assusta. No mundo inteiro, o combate à inflação é feito com instrumentos de política monetária. Diga-se de passagem, a política monetária tem se mostrado extremamente eficaz no mundo. A inflação na região desenvolvida do planeta está em torno de 2% ao ano, absolutamente imperceptível. O fato concreto é que evoluiu muito o grau de conhecimento sobre a forma ideal de se controlar o ritmo de crescimento dos preços em geral. Complementos heterodoxos só atrapalhariam.

Folha - Nas últimas semanas, os números divulgados de inflação mostraram-se bem ruins. Muitos analistas falam em bolha inflacionária. O sr. concorda com essa interpretação?
Senna -
Não, não concordo. O termo "bolha" dá a impressão de um fenômeno que está prestes a ser revertido e, principalmente, de algo que nada tem a ver com os chamados fundamentos macroeconômicos. Primeiro, não estamos perto do fim do processo. Segundo, o fenômeno parece perfeitamente explicável com base numa análise macroeconômica.

Folha - Como se explica, então, a aceleração recente da inflação?
Senna -
O processo atual pode ser decomposto em quatro grandes etapas. Na primeira, tivemos os choques que afetaram a economia brasileira, dentre os quais o relacionado com a taxa de câmbio, que foi inegavelmente o mais relevante. Na verdade, ele vem do ano passado e tem sido o principal fator por trás do não-cumprimento das metas de inflação, tanto em 2001 quanto agora. A segunda fase é a da piora das expectativas, fenômeno este que tem mais a ver com que o público espera acerca da condução das políticas monetária e fiscal do próximo governo do que propriamente com o que já aconteceu.

Folha - Qual seria a terceira fase?
Senna -
A terceira etapa acontece quando o crescimento dos preços de bens e serviços que nada têm a ver com os choques começa a se acelerar. A julgar pelos números relativos à inflação de novembro, acabamos de ingressar nessa fase. A variável chave aqui é o comportamento dos preços dos chamados "non-tradeables" [bens e serviços não-comercializáveis internacionalmente", que nada têm a ver com a taxa de câmbio.

Folha - A quarta etapa seria a indexação?
Senna -
Certamente. Mas ainda estamos bem distantes dessa fase. Para ser franco, meu grau de preocupação com isso ainda é baixo. Afinal, os principais dirigentes do partido vencedor das eleições têm sido bastante enfáticos ao assinalar a importância de ficarmos longe disso. Inegavelmente, a tarefa de combater a inflação torna-se muito mais árdua quando se ingressa nessa fase. Mas é preciso administrar a situação com firmeza e rapidamente.

Folha - O sr. acha inevitável um novo aumento da taxa de juros?
Senna -
Sim. É exatamente isso. O fato relevante é o nosso ingresso na terceira fase. Ou seja, não apenas as expectativas de inflação pioraram significativamente nas últimas semanas, como já estamos diante da contaminação dos preços dos "non-tradeables". A resposta da taxa de juros tem de ser realmente firme. O aumento do juro precisa ser mais forte do que o da última reunião do Copom.

Folha - Mas faz faz sentido um choque de juros, no apagar das luzes do governo?
Senna -
Eu não sei se será um choque, apesar de ser um aumento significativo se os juros passarem de 22% para 24% ou 25%. Os atuais dirigentes do Banco Central são pessoas altamente responsáveis e sabem muito bem como fica difícil combater a inflação depois que ela se instala, com raízes profundas.

Folha - O sr. acha que, mesmo com o país em recessão, será necessário esse novo aumento de juros?
Senna -
Em qualquer lugar do mundo, os empresários estão sempre a fim de reajustar seus preços, seja espontaneamente, seja a título de repasse de aumento de custos. O que inibe os agentes econômicos a fazerem essas correções é exatamente a preocupação com o nível dos juros futuros.

Folha - O sr. acredita na volta do crédito externo, a partir de 2003?
Senna -
Eu acho que existe uma incompreensão acerca da natureza desse problema de desequilíbrio externo. Tal questão tem muito a ver com o ritmo de crescimento da economia de um país. O crescimento é o fator que viabiliza o pagamento de dívidas. Uma economia com dificuldades de crescer fatalmente encontrará barreiras à obtenção de crédito. E o Brasil tem apresentado um ritmo muito modesto de crescimento econômico. Nos últimos 20 anos, nossa taxa média de crescimento anual do PIB per capita foi de 0,5% ao ano. É uma taxa muito baixa. Ao mesmo tempo, o Brasil não parou de se endividar. O crescimento do endividamento foi significativo, principalmente no governo Fernando Henrique.

Folha - Com juros altos, não será mais difícil resgatar o crescimento?
Senna -
À medida que o governo encaminhe reformas estruturais importantes para o Congresso, e que isso seja bem aceito pelos parlamentares, começamos a abrir espaço para sinalizar concretamente que o Brasil retomará o crescimento mais adiante.

Folha - Quais as reformas mais importantes?
Senna -
Muitos acham que é a reforma tributária. Ela me parece absolutamente inviável se o objetivo continuar sendo o de reformar a estrutura de impostos mantendo-se constante a receita fiscal. Todos os segmentos envolvidos em qualquer negociação, em torno de uma mesa, esperam que a carga tributária deles caia. Mas é claro que só se pode reduzir a carga tributária se o gasto público estiver em queda. Por isso, eu não tenho dúvidas em apontar a reforma da Previdência como muito mais importante do que a reforma tributária. A reforma tributária só passará a ser viável se o gasto público se reduzir. Ninguém vai aceitar trocar os impostos de seis para meia dúzia. Não quero dizer que a reforma tributária não seja importante. É importantíssima. O aumento da carga tributária dos últimos anos representou um entrave brutal para o crescimento econômico. Na Ásia e na América Latina, a média da carga tributária é de 20% do PIB. O Brasil estará encerrando este ano com um peso tributário equivalente a 37% do PIB. Mas só dá para diminuir essa enorme carga se o gasto público estiver contido. Sem isso, o governo Lula estará fadado a engordar o número de anos de crescimento baixo da economia.



Texto Anterior: Amazônia: PF faz operação na fronteira com Colômbia
Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.