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LIVRO/RESENHA
"Diretas-Já" conta como o regime militar ruiu nas ruas
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O Boeing-737 decolou de São
Paulo para Brasília às 7h do dia 23
de abril de 1984. Entre seus 110
passageiros, dois deputados
-João Herrmann Netto (PMDB-SP) e Beth Mendes (PT-SP). Reconhecidos, foram convidados com
entusiasmo a falar sobre a emenda Dante de Oliveira, que instituiria eleições diretas para a Presidência da República e seria votada dois dias depois.
Herrmann fez rápido discurso
pelo sistema de som do avião.
Passou a palavra a Beth Mendes.
Que entoou as primeiras estrofes
do Hino Nacional. Passageiros e
tripulantes a acompanharam, e
tudo terminou em aplausos.
O comício a 10 mil metros de altura foi um tanto inusitado, mas
se enquadrava no clima generalizado de mobilização e emoção
que o Brasil então atravessava.
O episódio é lembrado por Domingos Leonelli, 58, e Dante de
Oliveira, 52, em "Diretas-Já: 15
Meses que Abalaram a Ditadura",
que procura dar a versão bastante
completa daquilo que os autores
qualificam, com muita propriedade, de "o maior movimento de
massas do século 20 no Brasil".
Na madrugada de 26 de abril de
1984 a votação terminou com 298
a favor, 65 contra e três abstenções. Faltaram 22 votos para que a
emenda fosse para o Senado.
Mas a campanha, ao menos nas
ruas, recolocou a democracia na
agenda nacional. O regime militar
não sobreviveria, em janeiro, à escolha do novo presidente pelo
Colégio Eleitoral.
Os dois autores, peemedebistas
quando da votação, não são mais
deputados. Dante de Oliveira foi
em seguida ministro da Reforma
Agrária e governador de Mato
Grosso. Sem mandato, está hoje
no PSDB. Domingos Leonelli é
presidente do PSB baiano.
A ênfase que eles dão é centrada
no PMDB e na maneira pela qual
o partido operou a partir do Congresso. O papel do PT é no livro
francamente coadjuvante, o que
com certeza melindrará as lideranças daquele partido.
Oliveira e Leonelli não erram ao
colocar em primeiro plano a figura de Ulysses Guimarães (1916-1992), então presidente nacional
do PMDB. Relatam as dificuldades de Ulysses dentro de sua sigla,
onde governadores eleitos em
1982 hesitavam em entrar em atrito com o governo federal.
Um deles, o amazonense Gilberto Mestrinho, o demonstrou
com o autoboicote do comício pelas diretas em Manaus, em 18 de
fevereiro de 1984. Quatro dias depois o mesmo governador poria
20 mil pessoas nas ruas para recepcionar o presidente João Batista Figueiredo (1979-1985).
Assim, as Diretas-Já não foram
um processo linear, ao qual a oposição e segmentos da sociedade
civil aderiram como se fossem
passageiros que tomavam seus
assentos nas sucessivas paradas
de uma viagem cívica.
Muitos dos que dela participaram tinham projetos pessoais. O
caso mais singular foi o de Tancredo Neves. O livro traz confidências do então governador de
Minas, para quem a emenda Dante de Oliveira não tinha fôlego político para ser aprovada.
Ele intuía, no entanto, que só a
presença maciça do povo nas ruas
fraturaria o establishment oficial
e, por extensão, seu partido no
Congresso, na época majoritário.
Isso permitiu que, no momento
seguinte, Tancredo derrotasse
Paulo Maluf e se elegesse presidente pelo pleito indireto, com os
votos da oposição (menos os do
PT), somados aos de uma dissidência do PDS, o atual PFL.
Outro mérito do livro está em
dissecar as intenções que entravam em conflito nos momentos
em que a campanha atingia uma
de suas encruzilhadas.
Um exemplo. O governador de
São Paulo, Franco Montoro
(PMDB), foi de certo modo imobilizado pelo sucesso do comício
de 25 de janeiro de 1984 na praça
da Sé. Acreditava que era grande o
risco de não atrair novamente
uma multidão equivalente. Ele
quis "esfriar" a campanha.
Chegou a não enviar representante ao comitê que discutia um
novo ato público, desta vez no
Anhangabaú, finalmente realizado a 16 de abril.
Um outro exemplo está no permanente jogo de xadrez entre
Ulysses e Tancredo. Eram ambos
candidatos à Presidência.
Abril de 1984. Tancredo, no dia
21 em Ouro Preto, aconselha a
oposição a não aceitar "confrontos desiguais e funestos". No dia
23, daria entrevista na qual dizia
aceitar negociar com o governo,
desde que mandatado pelo
PMDB. Ele se preparava para o
"day after" e sinalizava entendimentos com o grupo palaciano
moderado do chefe da Casa Civil,
Leitão de Abreu.
Oliveira e Leonelli demonstram
que no fundo coexistiram duas
campanhas pelas Diretas-Já. A
primeira, nas ruas. A segunda,
nos chamados bastidores em que
as segundas intenções prevaleciam num jogo de simulações.
Diretas-Já: 15 Meses que
Abalaram a Ditadura
Autores: Dante de Oliveira e Domingos
Leonelli
Lançamento: Record (em São Paulo, no
próximo dia 19)
Quanto: R$ 68,90 (643 págs.)
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