São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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ENTREVISTA DA 2ª

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

Para antropóloga, "falta postura" da União, que adia decisões e contribui para arrastar conflitos

"Costura política do governo pode rifar direitos indígenas"

FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO

"Sobra costura e falta postura" na política indigenista do governo Lula. O excesso de zelo na articulação política pode, diz Manuela Carneiro da Cunha, "rifar os direitos indígenas".
A antropóloga -que teve papel importante na formulação dos direitos indígenas na Constituição de 88- faz a análise no pós-massacre de 29 garimpeiros em Rondônia e no calor do imbróglio em torno da homologação da reserva Raposa/Serra do Sol (Roraima).
No primeiro caso, a professora aposentada da USP, hoje na Universidade de Chicago, aponta omissão. Menciona que o governo estava informado sobre a tensão na área. "O nó do debate é a ausência ou fraqueza do Estado."
Sobre a indefinição da reserva indígena em Roraima -o governo já adiou pelo menos duas vezes a decisão-, ela diz que a demora do governo em decidir "só arrasta e reacende conflitos".
Ela defende um modelo que compense financeiramente os povos indígenas por preservarem suas áreas e que a regulamentação dos garimpos seja discutida no âmbito da legislação indígena hoje no Congresso Nacional.
A seguir, trechos da entrevista concedida por e-mail.

Folha - Os cintas-largas devem passar por uma investigação comum? A legislação de hoje é suficiente para tratar o problema?
Manuela Carneiro da Cunha -
É claro que todos, tanto índios como não-índios, devem passar por investigação normal, para apurar fatos e responsabilidades nas horríveis mortes dos garimpeiros em Rondônia. A Justiça é uma só para os pequenos e os grandes, para indivíduos e pessoas jurídicas, para quem fez, para quem impeliu e para quem se omitiu. Como diz o samba de Candeia, "cego é quem só vê até onde a vista alcança": apurar fatos e responsabilidades significa, entre outras coisas, colocar os acontecimentos no seu contexto histórico e estrutural.
O que está acontecendo nessa área de Rondônia? Entendo que há intenso contrabando de diamantes. Desde a descoberta deles, em 1999, os conflitos não cessaram. Por duas vezes (em junho e em novembro de 2003), são enviados relatórios oficiais alarmantes às autoridades. Quais foram as medidas tomadas? Como se está combatendo o contrabando?

Folha - Os garimpeiros dizem que os índios são "aculturados". Um cinta-larga falou que as mortes são parte do "modo" de resolver as diferenças. Quem pode avaliar as declarações? O que nelas, dos dois lados, pode haver de oportunismo?
Cunha -
Quem tem condições de avaliar são antropólogos familiarizados com esse grupo indígena. Creio que o Estado tem todos os instrumentos para fazer uma avaliação responsável: o problema no Brasil, como sabemos, não é a lei, e sim sua implementação.

Folha - Os direitos indígenas sofrem risco? O que fazer para que o debate fique menos turvo?
Cunha -
Ficará menos turvo quando se voltar a atenção para o que me parece ser o nó do problema. Essa matança não é uma questão somente de índios contra garimpeiros: isso é a ponta do iceberg. O nó do debate é a ausência ou fraqueza do Estado na Amazônia, diante dos enormes interesses. Nesse caso, ainda por cima, interesses ilegais do contrabando de diamantes. Por que o garimpo, que ficou fechado por seis meses em 2003, não continuou fechado?

Folha - A senhora relatou que a suposta índole violenta dos ianomâmis "justificou" ações contra eles nos anos 80. Com a chacina, isso pode ocorrer com os cintas-largas e outros grupos?
Cunha -
Sim. Há alguns dias recebi um e-mail da Coordenação da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas denunciando seqüestro e tortura de um cinta-larga e incêndio criminoso da casa de outro cinta-larga em Espigão d'Oeste. Dizia que índios zorós, suruís e apurinãs, por serem índios, estavam sendo ameaçados de morte por garimpeiros. Pedia a intervenção do Exército na reserva Roosevelt, para garantir a proteção física dos indígenas e da terra, até que se regulamente no Estatuto dos Povos Indígenas o uso dos recursos naturais das terras indígenas em benefício dos povos indígenas.

Folha - O governo diz estudar regulamentação do garimpo em área indígena. Como a sra. avalia?
Cunha -
Não existe maior maldição para índios do que ouro e, agora, diamantes. Davi Yanomami dizia que a fumaça do ouro (escondido na terra por uma divindade) matava os índios. E sabia do que estava falando. Os cintas-largas, contatados há apenas uns 35 anos, já passaram por quase todos os tipos de ganância e seus desastres: ganância pela borracha natural, pela madeira nobre e, de cinco anos para cá, diamantes. O garimpo e a mineração exploram recursos não-renováveis. Em parte por isso, na Constituinte de 1988, a Coordenação Nacional dos Geólogos se opunha à mineração em área indígena e propunha tratar as terras como reserva mineral. Mas há outras considerações: em áreas indígenas, essas atividades deixam, em geral, um rastro de mortes, prostituição, doenças, alcoolismo, corrupção. Deixam um mar de lama, no sentido literal e no figurado. Existem exemplos de garimpo em pequena escala, feito por índios. Uma regulamentação cuidadosa que atente preventivamente às dimensões de saúde, de ambiente e de ordem social pode ser considerada. Mas por que não discutir no âmbito da legislação sobre sociedades indígenas, empacada no Congresso?

Folha - A maioria dos conflitos tem como pano de fundo a sobrevivência dos índios. Foco no selo "Amazônia sustentável" é a chave?
Cunha -
Sim, mas é necessário também que se ampliem as fontes de recursos para as populações tradicionais em geral. É preciso, para usar a linguagem dos economistas, internalizar os custos e benefícios ambientais. Ou seja, remunerar os benefícios e levar os malefícios em consideração quando se computarem os custos. Na prática, é o seguinte: se a insistência é gerar recursos para essas populações dentro do mercado que existe agora, o incentivo é para praticar atividades com custos ambientais (por exemplo, criação de gado) que não são computados. Se se remunerarem não só os produtos, mas os benefícios ambientais que trazem e os malefícios que deixam de trazer, ou seja, os custos de oportunidade, a equação fica bem diferente. De certa forma, é isso que o selo verde faz: usa o mercado disposto a pagar mais por atividades sustentáveis. O país poderia fazer mais que o mercado: negociar internacionalmente serviços ambientais e remunerá-los internamente.

Folha - Outro ponto de tensão é a homologação da Raposa/Serra do Sol. Parte dos índios, fazendeiros e políticos defendem a homologação não-contínua (sem fazendas, estradas e cidades). O que a senhora acha deste modelo?
Cunha -
Esse é um problema antigo que se esperava que estivesse já resolvido por agora. No final de 2003, o presidente e o ministro da Justiça anunciaram para janeiro de 2004 a homologação em área contínua. Há anos os rizicultores vêm criando obstáculos: lembremos que o município de Uiramutã, um dos grandes empecilhos invocados, foi criado depois que a Funai havia concluído estudos de demarcação da área.

Folha - Como a sra. avalia a política indigenista do governo Lula?
Cunha -
Há muita tergiversação. Costura política demais pode acabar rifando os direitos dos índios. Multiplicam-se comitês de governo, mas não se decide e realiza, o que só arrasta e reacende conflitos. Diria que na política indigenista sobra costura e falta postura.

Folha - As ONGs tomaram o lugar do Funai e do Estado no trabalho com grupos indígenas. Há ações reconhecidas, mas também acusações. Há problema no modelo?
Cunha -
Devem investigar as ONGs sobre as quais pesam acusações e não lançar uma suspeição sobre as ONGs em geral. Quanto à Funai, não foram as ONGs que a esvaziaram: os serviços de saúde e de educação indígena saíram do âmbito da Funai e foram para a Funasa e para o MEC. No governo FHC, a experiência acumulada pelas ONGs sérias foi ampla e positivamente usada por meio de convênios. Agora, pelo menos na Funasa, a diretriz é de execução direta. Em um caso que conheço, o resultado foi desastroso: a Urihi, uma ONG que há anos prestava assistência de saúde aos ianomâmis, foi deixada de lado. São médicos, antropólogos que há décadas trabalham na área. Tudo é jogado fora.



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