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ENTREVISTA DA 2ª
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
Para antropóloga, "falta postura" da União, que adia decisões e contribui para arrastar conflitos
"Costura política do governo pode rifar direitos indígenas"
FLÁVIA MARREIRO
DA REDAÇÃO
"Sobra costura e falta postura"
na política indigenista do governo
Lula. O excesso de zelo na articulação política pode, diz Manuela
Carneiro da Cunha, "rifar os direitos indígenas".
A antropóloga -que teve papel
importante na formulação dos direitos indígenas na Constituição
de 88- faz a análise no pós-massacre de 29 garimpeiros em Rondônia e no calor do imbróglio em
torno da homologação da reserva
Raposa/Serra do Sol (Roraima).
No primeiro caso, a professora
aposentada da USP, hoje na Universidade de Chicago, aponta
omissão. Menciona que o governo estava informado sobre a tensão na área. "O nó do debate é a
ausência ou fraqueza do Estado."
Sobre a indefinição da reserva
indígena em Roraima -o governo já adiou pelo menos duas vezes
a decisão-, ela diz que a demora
do governo em decidir "só arrasta
e reacende conflitos".
Ela defende um modelo que
compense financeiramente os povos indígenas por preservarem
suas áreas e que a regulamentação
dos garimpos seja discutida no
âmbito da legislação indígena hoje no Congresso Nacional.
A seguir, trechos da entrevista
concedida por e-mail.
Folha - Os cintas-largas devem
passar por uma investigação comum? A legislação de hoje é suficiente para tratar o problema?
Manuela Carneiro da Cunha - É
claro que todos, tanto índios como não-índios, devem passar por
investigação normal, para apurar
fatos e responsabilidades nas horríveis mortes dos garimpeiros em
Rondônia. A Justiça é uma só para
os pequenos e os grandes, para indivíduos e pessoas jurídicas, para
quem fez, para quem impeliu e
para quem se omitiu. Como diz o
samba de Candeia, "cego é quem
só vê até onde a vista alcança":
apurar fatos e responsabilidades
significa, entre outras coisas, colocar os acontecimentos no seu
contexto histórico e estrutural.
O que está acontecendo nessa
área de Rondônia? Entendo que
há intenso contrabando de diamantes. Desde a descoberta deles,
em 1999, os conflitos não cessaram. Por duas vezes (em junho e
em novembro de 2003), são enviados relatórios oficiais alarmantes às autoridades. Quais foram as
medidas tomadas? Como se está
combatendo o contrabando?
Folha - Os garimpeiros dizem que
os índios são "aculturados". Um
cinta-larga falou que as mortes são
parte do "modo" de resolver as diferenças. Quem pode avaliar as declarações? O que nelas, dos dois lados, pode haver de oportunismo?
Cunha - Quem tem condições de
avaliar são antropólogos familiarizados com esse grupo indígena.
Creio que o Estado tem todos os
instrumentos para fazer uma avaliação responsável: o problema no
Brasil, como sabemos, não é a lei,
e sim sua implementação.
Folha - Os direitos indígenas sofrem risco? O que fazer para que o
debate fique menos turvo?
Cunha - Ficará menos turvo
quando se voltar a atenção para o
que me parece ser o nó do problema. Essa matança não é uma
questão somente de índios contra
garimpeiros: isso é a ponta do iceberg. O nó do debate é a ausência
ou fraqueza do Estado na Amazônia, diante dos enormes interesses. Nesse caso, ainda por cima,
interesses ilegais do contrabando
de diamantes. Por que o garimpo,
que ficou fechado por seis meses
em 2003, não continuou fechado?
Folha - A senhora relatou que a
suposta índole violenta dos ianomâmis "justificou" ações contra
eles nos anos 80. Com a chacina, isso pode ocorrer com os cintas-largas e outros grupos?
Cunha - Sim. Há alguns dias recebi um e-mail da Coordenação
da União das Nações e Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste
do Mato Grosso e Sul do Amazonas denunciando seqüestro e tortura de um cinta-larga e incêndio
criminoso da casa de outro cinta-larga em Espigão d'Oeste. Dizia
que índios zorós, suruís e apurinãs, por serem índios, estavam
sendo ameaçados de morte por
garimpeiros. Pedia a intervenção
do Exército na reserva Roosevelt,
para garantir a proteção física dos
indígenas e da terra, até que se regulamente no Estatuto dos Povos
Indígenas o uso dos recursos naturais das terras indígenas em benefício dos povos indígenas.
Folha - O governo diz estudar regulamentação do garimpo em área
indígena. Como a sra. avalia?
Cunha - Não existe maior maldição para índios do que ouro e,
agora, diamantes. Davi Yanomami dizia que a fumaça do ouro
(escondido na terra por uma divindade) matava os índios. E sabia do que estava falando. Os cintas-largas, contatados há apenas
uns 35 anos, já passaram por quase todos os tipos de ganância e
seus desastres: ganância pela borracha natural, pela madeira nobre
e, de cinco anos para cá, diamantes. O garimpo e a mineração exploram recursos não-renováveis.
Em parte por isso, na Constituinte
de 1988, a Coordenação Nacional
dos Geólogos se opunha à mineração em área indígena e propunha tratar as terras como reserva
mineral. Mas há outras considerações: em áreas indígenas, essas
atividades deixam, em geral, um
rastro de mortes, prostituição,
doenças, alcoolismo, corrupção.
Deixam um mar de lama, no sentido literal e no figurado. Existem
exemplos de garimpo em pequena escala, feito por índios. Uma
regulamentação cuidadosa que
atente preventivamente às dimensões de saúde, de ambiente e
de ordem social pode ser considerada. Mas por que não discutir no
âmbito da legislação sobre sociedades indígenas, empacada no
Congresso?
Folha - A maioria dos conflitos
tem como pano de fundo a sobrevivência dos índios. Foco no selo
"Amazônia sustentável" é a chave?
Cunha - Sim, mas é necessário
também que se ampliem as fontes
de recursos para as populações
tradicionais em geral. É preciso,
para usar a linguagem dos economistas, internalizar os custos e benefícios ambientais. Ou seja, remunerar os benefícios e levar os
malefícios em consideração
quando se computarem os custos.
Na prática, é o seguinte: se a insistência é gerar recursos para essas
populações dentro do mercado
que existe agora, o incentivo é para praticar atividades com custos
ambientais (por exemplo, criação
de gado) que não são computados. Se se remunerarem não só os
produtos, mas os benefícios ambientais que trazem e os malefícios que deixam de trazer, ou seja,
os custos de oportunidade, a
equação fica bem diferente. De
certa forma, é isso que o selo verde faz: usa o mercado disposto a
pagar mais por atividades sustentáveis. O país poderia fazer mais
que o mercado: negociar internacionalmente serviços ambientais
e remunerá-los internamente.
Folha - Outro ponto de tensão é a
homologação da Raposa/Serra do
Sol. Parte dos índios, fazendeiros e
políticos defendem a homologação
não-contínua (sem fazendas, estradas e cidades). O que a senhora
acha deste modelo?
Cunha - Esse é um problema antigo que se esperava que estivesse
já resolvido por agora. No final de
2003, o presidente e o ministro da
Justiça anunciaram para janeiro
de 2004 a homologação em área
contínua. Há anos os rizicultores
vêm criando obstáculos: lembremos que o município de Uiramutã, um dos grandes empecilhos
invocados, foi criado depois que a
Funai havia concluído estudos de
demarcação da área.
Folha - Como a sra. avalia a política indigenista do governo Lula?
Cunha - Há muita tergiversação.
Costura política demais pode acabar rifando os direitos dos índios.
Multiplicam-se comitês de governo, mas não se decide e realiza, o
que só arrasta e reacende conflitos. Diria que na política indigenista sobra costura e falta postura.
Folha - As ONGs tomaram o lugar
do Funai e do Estado no trabalho
com grupos indígenas. Há ações reconhecidas, mas também acusações. Há problema no modelo?
Cunha - Devem investigar as
ONGs sobre as quais pesam acusações e não lançar uma suspeição sobre as ONGs em geral.
Quanto à Funai, não foram as
ONGs que a esvaziaram: os serviços de saúde e de educação indígena saíram do âmbito da Funai e
foram para a Funasa e para o
MEC. No governo FHC, a experiência acumulada pelas ONGs
sérias foi ampla e positivamente
usada por meio de convênios.
Agora, pelo menos na Funasa, a
diretriz é de execução direta. Em
um caso que conheço, o resultado
foi desastroso: a Urihi, uma ONG
que há anos prestava assistência
de saúde aos ianomâmis, foi deixada de lado. São médicos, antropólogos que há décadas trabalham na área. Tudo é jogado fora.
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