São Paulo, sexta, 10 de julho de 1998

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CORONELISMO TUCANO

Prefeito de Acaraú é assassinado após denunciar pressões de parentes para desviar verbas públicas

Disputa política acaba em morte no Ceará

Evilásio Bezerra/O Povo/Diário Gabriel/O Povo
Barcos na barra do Acaraú, litoral do Ceará.


MARIO VITOR SANTOS
enviado especial a Fortaleza

O promotor Alcides Jorge Evangelista Ferreira, da 4ª Vara do Júri de Fortaleza, denunciou ontem três pessoas como responsáveis pela autoria do mais momentoso crime da história política recente do Ceará.
Em 8 de maio passado, uma sexta-feira, foi assassinado João Jaime Ferreira Gomes Filho, o Joãozinho, prefeito de Acaraú, cidade litorânea de 50 mil habitantes, a 252 km a noroeste de Fortaleza.
O caso, de acordo com a polícia, revive todos os estereótipos criados em torno da política no Nordeste, com recurso à pistolagem, desvio de verbas públicas, suborno e disputa de morte entre ramos rivais de uma mesma família.
De acordo com o inquérito policial, os acusados de ordenar o crime são primos da vítima e irmãos entre si: o deputado federal Aníbal Ferreira Gomes, o deputado estadual Manoel Duca da Silveira Neto ("Duquinha") e o próprio vice-prefeito de Acaraú, Amadeu Ferreira Gomes Filho ("Amadeuzinho"), todos do PSDB.
Apenas o vice-prefeito -cuja prisão preventiva também foi solicitada- e os dois supostos autores diretos do crime foram denunciados ontem.
O promotor decidiu enviar cópias do inquérito policial ao Tribunal de Justiça do Ceará e ao Supremo Tribunal Federal, instâncias adequadas para encaminhar pedidos de abertura de processos contra os dois deputados.

Tiro
Joãozinho, de 53 anos, foi morto por volta das 18h, no escritório de representação política da Prefeitura de Acaraú em Fortaleza, no bairro de Aldeota, com um tiro abaixo do olho, de bala calibre 38, disparada a um metro de distância. A bala atravessou o crânio. O prefeito teve morte instantânea.
Três pessoas testemunharam o crime: a empregada doméstica Maria Santana dos Santos Oliveira, que trabalhava no escritório, seu filho de 11 anos e sua filha de 5.
Joãozinho deixou uma fita de vídeo gravada em 1992 em que relata que era alvo de pressões e ameaças de morte.
Nela, anuncia que, se viesse a ser assassinado, os responsáveis seriam os seus primos Aníbal, Duquinha e Amadeuzinho.
Além da fita, Joãozinho deixou uma pasta, entregue à polícia, com documentos que comprovariam supostas irregularidades na gestão do atual deputado federal Aníbal Ferreira Gomes ao tempo de sua administração à frente da Prefeitura de Acaraú, concluída em 1992.
A Justiça já decretou a prisão dos dois suspeitos de executar diretamente o crime, Francisco de Assis Mendes Barbosa ("Pantico") e André de Castro Neves Feitosa. Ambos estão foragidos.
Pantico, indiciado por assalto a malotes da Caixa Econômica Federal na cidade de Canindé (CE), é, segundo o delegado, cabo eleitoral dos deputados Manoel Duca da Silveira e Aníbal Ferreira Gomes. Ele foi reconhecido por foto pela testemunha Maria Santana dos Santos Oliveira, mantida sob proteção policial.
Três dias depois do crime, o vice assumiu a prefeitura, logo pediu licença e depois renunciou.
De acordo com o delegado Wilder Brito Sobreira, o motivo imediato do crime foi a recusa do prefeito em ceder a pressões para efetuar modificações no projeto de dragagem do porto de Acaraú, uma obra de R$ 3 milhões, a ser executada pela Bandeirantes Dragagem Ltda, do Rio.
A empresa disputou sozinha a licitação para a execução da obra. A outra concorrente desistiu no dia da abertura das propostas. A verba foi incluída no Orçamento da União em 1997 por intermediação do deputado Ferreira Gomes.
O projeto de dragagem do rio Acaraú previa a retirada da areia que se acumulava na região da foz do rio e seu despejo quatro milhas mar adentro. As modificações, que, segundo o delegado Wilder Brito, eram exigidas pelos primos de Joãozinho, abrangiam a retirada da areia e sua recolocação a poucos metros de distância, na margem do rio. O trabalho ficaria mais simples, barato e, pelo que pensava o prefeito, ineficaz.
Dizia ele que em pouco tempo a areia retirada seria carregada pelas marés de volta à calha do rio, dificultando novamente a passagem dos barcos de pesca, principal atividade econômica de Acaraú.
O prefeito, de acordo com seu filho João Magno, também secretário de Finanças do município, procurava protelar a decisão. Pediu pareceres do Ministério dos Transportes e do governo do Ceará. Tinha apenas uma palavra para definir as pressões para modificar o projeto: picaretagem.
Ainda pelo depoimento de João Magno, seu pai recebera uma proposta de R$ 300 mil para iniciar a obra, a título de gratificação pessoal. Ele teria comentado que 30% dessa verba era para ser distribuída "para escalões superiores do Ministério dos Transportes". O prefeito não aceitou a proposta, segundo depoimento de seu filho.

Rastreamento
O inquérito do delegado Wilder Brito afirma que, no dia do crime, o prefeito dirigiu-se a Fortaleza a pedido do vice-prefeito Amadeuzinho para o escritório de representação da prefeitura, onde seria examinado um projeto de piscicultura.
Além do depoimento do filho do prefeito e da fita que a vítima gravara, o delegado Brito afirma que rastreou dezenas de ligações entre o vice-prefeito Amadeuzinho e Pantico, um dos suspeitos do assassinato.
A polícia não gravou as ligações, apenas levantou, a posteriori, o autor, o destinatário e o tempo de duração dos telefonemas.
Diz o delegado: "As conversações entre Amadeu e o pistoleiro Pantico se iniciaram a partir de março de 1998, exatamente quando a vítima não aceitou as mudanças no projeto do porto da barra de Acaraú. E esses contatos foram se amiudando na proporção em que a vítima, João Jaime Filho, protelava e dificultava a ordem de serviço de execução da obra de dragagem. No início, eram demorados, chegando a mais de dois minutos. No dia que antecedeu o crime, os tempos dos diálogos entre Amadeu e Pantico chegaram a até quatro minutos. No dia do crime, Amadeu e o pistoleiro tinham diálogos rápidos, como se falassem em códigos cifrados e com ordens já previamente estabelecidas". Em seguida, Amadeu se comunicava com os irmãos.
Houve, segundo o rastreamento, um contato entre Amadeuzinho e Pantico às 17h42, uma conversação de apenas nove décimos de minuto.
De acordo com o delegado, ao chegar ao escritório Joãozinho disse à empregada que deixasse o portão de fora aberto. Teria dito: "O Amadeuzinho está para chegar". Enquanto aguardava a reunião, dois homens chegaram ao escritório numa moto branca.
Quando a empregada atendeu a porta, André rendeu-a. Pantico alvejou o prefeito. Segundo o inquérito, deu dois tiros, um errou o alvo. Na correria da fuga, Pantico esbarrou no menino de 11 anos, derrubando-o.
Cerca de 20 minutos depois das 18h, e ainda antes de Amadeuzinho chegar ao escritório, é Pantico quem liga rapidamente para o vice-prefeito.
Amadeuzinho apareceu no escritório algum tempo depois do crime, segundo o delegado, porque gastou cerca de 30 minutos num percurso de no máximo 10, segundo a cronometragem feita pela perícia policial.
O governador cearense Tasso Jereissati compareceu ao enterro com seu chefe de gabinete, João Jaime Marinho, sobrinho do prefeito morto e seu sucessor político em Acaraú. Na noite do crime, a viúva e os filhos da vítima proibiram a presença dos três primos no sepultamento.



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