São Paulo, Sexta-feira, 10 de Setembro de 1999
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ARTIGO
Os EUA e a deposição de Goulart

LINCOLN GORDON
especial para a Folha

Nos últimos 30 anos uma polêmica contínua vem sendo travada entre jornalistas, estudiosos e ex-representantes públicos com relação ao papel preciso desempenhado pelos Estados Unidos no golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart, em 1964. Em junho, a biblioteca Lyndon Baines Johnson, de Austin, Texas, abriu para o público gravações de telefonemas que deverão resolver pelo menos parte da controvérsia.
Muitas das fitas em questão foram divulgadas em 1997 no livro editado por Michael Beachloss e intitulado "Taking Charge: the Johnson White House Tapes, 1963-64" (Assumindo o Controle -As Fitas da Casa Branca de Johnson, 1963-64). Na página 303 do livro o editor escreve: "A CIA avisou Johnson da iminência de um golpe de Estado, apoiado por ela, contra o governo do Brasil. O presidente diz a Reedy (o assessor de imprensa da Casa Branca) que, se o golpe ocorrer, ele terá que antecipar seu retorno a Washington". No seu extremamente interessante livro recente sobre o período da ditadura ("História Indiscreta da Ditadura e da Abertura"), Ronaldo Costa Couto cita essa afirmação como prova de que Johnson "soube antecipadamente do golpe militar de 31 de março de 1964" (Costa Couto, págs. 24 e 56). Isso simplesmente não é verdade.
Fiquei perplexo quando a conversa entre Johnson e Reedy foi divulgada, em 1997, porque naquela noite de segunda-feira, 30 de março, nós, na embaixada dos EUA no Rio, não sabíamos que a ação militar iria começar em Minas Gerais na manhã seguinte. Vínhamos enviando informes diários sobre a crise crescente, que ocupava os jornais e as conversas da época. No dia 30 de março eu estava em casa, assistindo na TV ao discurso do presidente Goulart no Clube do Automóvel. Por volta das 22h o secretário de Estado, Dean Rusk, telefonou para me perguntar se Goulart havia terminado seu discurso e se este endossava o motim ou apoiava a hierarquia e disciplina militar. Respondi que Jango ainda estava falando, mas que, até aquele momento, não dera qualquer indício de concessões à disciplina militar. Agora, com a divulgação da fita número WH6403.19 da biblioteca LBJ (disponível ao público por US$ 5,00), está claro que a ligação de Johnson a Reedy não foi inspirada pelo informe da CIA, e sim por um telefonema de Rusk, feito depois de sua conversa comigo. Envio anexada a transcrição integral daquele telefonema, no qual Rusk diz: "A crise vai chegar ao auge nos próximos um ou dois dias, talvez até mesmo de hoje para amanhã. A resistência a Goulart está crescendo como bola de neve, logo, a coisa pode estourar a qualquer momento. As Forças Armadas, os governadores -especialmente nos Estados mais povoados da costa leste- parecem estar montando uma resistência real ali". Não há referência alguma a qualquer informação privilegiada sobre um movimento militar no dia seguinte. Rusk prossegue, lendo para mim um longo rascunho de telegrama, que merece atenção pela ênfase que atribui à necessidade de legitimidade de qualquer movimento anti-Goulart que porventura viéssemos a apoiar. Esse telegrama nunca chegou a ser enviado, já que logo cedo no dia seguinte fomos informados do movimento militar desencadeado em Juiz de Fora.
O próximo ponto significativo na mesma fita é um telefonema de George Ball, então subsecretário de Estado, ao presidente Johnson, na tarde da terça-feira, 31 de março. Uma transcrição da íntegra desse telefonema também está incluída. Ball informa que se reuniu com Robert McNamara (secretário da Defesa), Maxwell Taylor (presidente do Estado-Maior Conjunto) e Andrew O'Meara (comandante do Comando Sul norte-americano, com quartel-general na zona do canal do Panamá). Naquela reunião foi tomada a decisão de enviar a força-tarefa naval ("Brother Sam") em rumo Sul, "mas sem qualquer compromisso" e reconhecendo que ela não poderia chegar ao Brasil antes de 10 de abril. Isso demonstra cabalmente que não houve nenhum planejamento militar coordenado com os elementos contrários a Goulart no establishment militar brasileiro. Também demonstra a falsidade da afirmação de Celso Furtado, citada por Costa Couto na página 51 de seu livro, segundo a qual havia um esquadrão americano ancorado ao largo do Espírito Santo. E refuta o comentário de Costa Couto (na página 57) de que o fato de a força-tarefa americana estar distante pode ser explicado pela "saída antes da hora" do general Mourão Filho.
Citando o estudo cuidadoso de Phyllis Parker publicado em 1977, Costa Couto (na página 26) resume o projeto "Brother Sam" como sendo "uma interferência direta e profunda do governo americano em assuntos internos do Brasil, sob os ventos da Guerra Fria". Entretanto, uma leitura cuidadosa do livro inteiro de Parker mostra que:
(a) A força-tarefa naval, conforme proposta originalmente por mim, não se destinava a uma intervenção militar direta. Seu propósito era ajudar na retirada dos estimados 40 mil civis norte-americanos que então se encontravam no Brasil e "mostrar a presença" norte-americana na eventualidade de uma situação de guerra civil, como incentivo psicológico ao lado de nossa preferência;
(b) O Departamento de Defesa decidiu, sem me consultar, ampliar o papel potencial da força-tarefa, incluindo substanciais suprimentos militares (Parker, pág. 101), embora não tropas, para o caso de uma possível intervenção direta;
(c) Os suprimentos militares (armas e munições) seriam entregues apenas se fossem satisfeitas as seguintes condições: "A formação de um governo que se considerasse como o governo do Brasil; o estabelecimento de alguma aparência de legitimidade; a conquista e o domínio de parte significativa do território brasileiro em nome de tal governo, e a solicitação de tal governo aos Estados Unidos e outras nações americanas de reconhecimento e assistência à manutenção do governo constitucional" (Parker, pág. 101).
Não houve planejamento conjunto com os golpistas nas Forças Armadas brasileiras. Eles não tinham conhecimento algum da força-tarefa "Brother Sam". Um plano de contingência do qual nenhum brasileiro foi informado, baseado numa hipótese de guerra civil que em nenhum momento chegou perto de se concretizar, não justifica a áspera condenação do senhor Costa Couto. É fato conhecido que vimos com bons olhos a deposição de Goulart. Mas não tivemos nenhuma participação em sua derrubada pela força militar.


Lincoln Gordon foi embaixador norte-americano no Brasil entre 1961 e 1966.
Tradução de Clara Allain


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