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ARTIGO
Os EUA e a deposição de Goulart
LINCOLN GORDON
especial para a Folha
Nos últimos 30 anos uma polêmica contínua vem sendo travada
entre jornalistas, estudiosos e ex-representantes públicos com relação ao papel preciso desempenhado pelos Estados Unidos no
golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart, em 1964.
Em junho, a biblioteca Lyndon
Baines Johnson, de Austin, Texas,
abriu para o público gravações de
telefonemas que deverão resolver
pelo menos parte da controvérsia.
Muitas das fitas em questão foram divulgadas em 1997 no livro
editado por Michael Beachloss e
intitulado "Taking Charge: the
Johnson White House Tapes,
1963-64" (Assumindo o Controle
-As Fitas da Casa Branca de
Johnson, 1963-64). Na página 303
do livro o editor escreve: "A CIA
avisou Johnson da iminência de
um golpe de Estado, apoiado por
ela, contra o governo do Brasil. O
presidente diz a Reedy (o assessor
de imprensa da Casa Branca) que,
se o golpe ocorrer, ele terá que antecipar seu retorno a Washington". No seu extremamente interessante livro recente sobre o período da ditadura ("História Indiscreta da Ditadura e da Abertura"), Ronaldo Costa Couto cita essa afirmação como prova de que
Johnson "soube antecipadamente
do golpe militar de 31 de março de
1964" (Costa Couto, págs. 24 e 56).
Isso simplesmente não é verdade.
Fiquei perplexo quando a conversa entre Johnson e Reedy foi
divulgada, em 1997, porque naquela noite de segunda-feira, 30
de março, nós, na embaixada dos
EUA no Rio, não sabíamos que a
ação militar iria começar em Minas Gerais na manhã seguinte. Vínhamos enviando informes diários sobre a crise crescente, que
ocupava os jornais e as conversas
da época. No dia 30 de março eu
estava em casa, assistindo na TV
ao discurso do presidente Goulart
no Clube do Automóvel. Por volta
das 22h o secretário de Estado,
Dean Rusk, telefonou para me
perguntar se Goulart havia terminado seu discurso e se este endossava o motim ou apoiava a hierarquia e disciplina militar. Respondi que Jango ainda estava falando,
mas que, até aquele momento,
não dera qualquer indício de concessões à disciplina militar. Agora, com a divulgação da fita número WH6403.19 da biblioteca
LBJ (disponível ao público por
US$ 5,00), está claro que a ligação
de Johnson a Reedy não foi inspirada pelo informe da CIA, e sim
por um telefonema de Rusk, feito
depois de sua conversa comigo.
Envio anexada a transcrição integral daquele telefonema, no qual
Rusk diz: "A crise vai chegar ao
auge nos próximos um ou dois
dias, talvez até mesmo de hoje para amanhã. A resistência a Goulart está crescendo como bola de
neve, logo, a coisa pode estourar a
qualquer momento. As Forças
Armadas, os governadores -especialmente nos Estados mais povoados da costa leste- parecem
estar montando uma resistência
real ali". Não há referência alguma a qualquer informação privilegiada sobre um movimento militar no dia seguinte. Rusk prossegue, lendo para mim um longo
rascunho de telegrama, que merece atenção pela ênfase que atribui
à necessidade de legitimidade de
qualquer movimento anti-Goulart que porventura viéssemos a
apoiar. Esse telegrama nunca chegou a ser enviado, já que logo cedo no dia seguinte fomos informados do movimento militar desencadeado em Juiz de Fora.
O próximo ponto significativo
na mesma fita é um telefonema de
George Ball, então subsecretário
de Estado, ao presidente Johnson,
na tarde da terça-feira, 31 de março. Uma transcrição da íntegra
desse telefonema também está incluída. Ball informa que se reuniu
com Robert McNamara (secretário da Defesa), Maxwell Taylor
(presidente do Estado-Maior
Conjunto) e Andrew O'Meara
(comandante do Comando Sul
norte-americano, com quartel-general na zona do canal do Panamá). Naquela reunião foi tomada
a decisão de enviar a força-tarefa
naval ("Brother Sam") em rumo
Sul, "mas sem qualquer compromisso" e reconhecendo que ela
não poderia chegar ao Brasil antes
de 10 de abril. Isso demonstra cabalmente que não houve nenhum
planejamento militar coordenado
com os elementos contrários a
Goulart no establishment militar
brasileiro. Também demonstra a
falsidade da afirmação de Celso
Furtado, citada por Costa Couto
na página 51 de seu livro, segundo
a qual havia um esquadrão americano ancorado ao largo do Espírito Santo. E refuta o comentário de
Costa Couto (na página 57) de
que o fato de a força-tarefa americana estar distante pode ser explicado pela "saída antes da hora"
do general Mourão Filho.
Citando o estudo cuidadoso de
Phyllis Parker publicado em 1977,
Costa Couto (na página 26) resume o projeto "Brother Sam" como sendo "uma interferência direta e profunda do governo americano em assuntos internos do
Brasil, sob os ventos da Guerra
Fria". Entretanto, uma leitura cuidadosa do livro inteiro de Parker
mostra que:
(a) A força-tarefa naval, conforme proposta originalmente por
mim, não se destinava a uma intervenção militar direta. Seu propósito era ajudar na retirada dos
estimados 40 mil civis norte-americanos que então se encontravam
no Brasil e "mostrar a presença"
norte-americana na eventualidade de uma situação de guerra civil, como incentivo psicológico ao
lado de nossa preferência;
(b) O Departamento de Defesa
decidiu, sem me consultar, ampliar o papel potencial da força-tarefa, incluindo substanciais suprimentos militares (Parker, pág.
101), embora não tropas, para o
caso de uma possível intervenção
direta;
(c) Os suprimentos militares
(armas e munições) seriam entregues apenas se fossem satisfeitas
as seguintes condições: "A formação de um governo que se considerasse como o governo do Brasil;
o estabelecimento de alguma aparência de legitimidade; a conquista e o domínio de parte significativa do território brasileiro em nome de tal governo, e a solicitação
de tal governo aos Estados Unidos e outras nações americanas
de reconhecimento e assistência à
manutenção do governo constitucional" (Parker, pág. 101).
Não houve planejamento conjunto com os golpistas nas Forças
Armadas brasileiras. Eles não tinham conhecimento algum da
força-tarefa "Brother Sam". Um
plano de contingência do qual nenhum brasileiro foi informado,
baseado numa hipótese de guerra
civil que em nenhum momento
chegou perto de se concretizar,
não justifica a áspera condenação
do senhor Costa Couto. É fato conhecido que vimos com bons
olhos a deposição de Goulart. Mas
não tivemos nenhuma participação em sua derrubada pela força
militar.
Lincoln Gordon foi embaixador norte-americano no Brasil entre 1961 e 1966.
Tradução de Clara Allain
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