São Paulo, Domingo, 10 de Outubro de 1999
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OS ÚLTIMOS ANOS

"Sou um ex-escritor", disse o poeta depois de ficar cego

EDER CHIODETTO
Editor-adjunto de Fotografia

"Não sou mais um escritor. Estou cego". Com essas frases disparadas ao abrir a porta de seu apartamento no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, o poeta João Cabral de Melo Neto recebeu a Folha, em dezembro de 97, após quase quatro meses de insistência da reportagem, para entrevista e sessão de fotos para o caderno Mais!
Revelando humor instável e alguma frustração pelo fato de estar praticamente cego, o que o impedia de ler e escrever desde 1993, falou um pouco sobre seu método de trabalho, seu cotidiano após a perda da visão e algumas lembranças. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

O fim de tudo - "Eu era diplomata. Escrevia quando havia tempo. Quando voltei de Portugal para o Brasil estava contente porque teria mais tempo para me dedicar à escrita. Aí fui fazer uma operação e fiquei cego.
Eu fiz uma operação muito séria no intestino. Fiquei 70 dias na UTI em 1993. Quando acordei, estava cego. Meu psiquiatra disse que foi me ver no hospital e viu que os médicos haviam colocado uma luz fortíssima sobre meus olhos. E eu, inconsciente, não podia meter o braço naquela luz. Queimaram minha retina. Por que usaram essa luz fortíssima, não sei.
Hoje tenho apenas uma visão periférica. Estou te enxergando mal, apenas seu vulto. Me desculpe se um dia te encontrar na rua e não te cumprimentar.
Eu me sinto fraco, meio doente, sem vontade de nada... Morrer é o fim de tudo. O descanso... sossego... chega, né?"

Pelé - "Estava em Genebra, como diplomata, e o Itamaraty queria me mandar para a Bolívia. Aí, por causa da altitude, fiz um exame pulmonar para saber se eu tinha condições de trabalhar lá. Depois do exame, o médico, que havia visto uma matéria no jornal sobre o Pelé, disse que minha capacidade pulmonar era maior que a dele. Contei pra todo mundo."

Ex-escritor - "Eu estou sem enxergar, compreende? De forma que não escrevo mais. Eu, pra escrever, preciso ver. Não leio, não consigo escrever também, de forma que sou um ex-escritor. É isso, não sou mais um escritor...
Não adianta eu ditar para alguém porque eu preciso ver a minha letra construindo o verso. Eu escrevo como quem constrói uma casa. Meus livros têm uma estrutura, um rigor, não são reuniões de poesias. Minha influência foi Le Corbusier, que eu li em Recife quando ainda era garoto e também os poetas cubistas franceses. Paul Valéry também, que não era cubista.
Pra mim é uma tortura não poder ler, sabe? Desde menino pequeno não fiz outra coisa senão ler. Não ler é pior do que não escrever.
Meu primeiro livro eu publiquei com 22 anos, em Recife, e o último com 73 anos. Como não estou lendo, a literatura perdeu completamente o interesse pra mim. Eu não me lembro mais de nenhum poema meu."

Rádio - "Não gosto de ouvir música. Não sou da música. Ouço rádio o dia todo, mas só noticiário. Hoje ouvi na rádio que a repercussão da presença do Pelé na Inglaterra está sendo muito maior que a de FHC. Todo dia eu ouço na rádio invasão de sem-terra e rebelião em presídio."

Jorge Amado - "O Jorge é mais velho que eu, mas é mais forte, tem mais saúde. O Jorge sempre comeu muito bem. Eu nasci no meio da seca, quando era criança nem sempre tinha comida farta e boa como ele..."

Foto - "Você quer me fotografar no meu escritório? Aqui não tem escritório, escritório pra quê? Eu não escrevo mais... Além do que estou barbado. O barbeiro só vai chegar às sete horas... Você é insistente, hein garoto? Tá bom, eu sento aqui numa cadeira e você faz a foto..."



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