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OS ÚLTIMOS ANOS
"Sou um ex-escritor", disse o poeta depois de ficar cego
EDER CHIODETTO
Editor-adjunto de Fotografia
"Não sou mais um escritor. Estou cego". Com essas frases disparadas ao abrir a porta de seu apartamento no bairro do Flamengo,
no Rio de Janeiro, o poeta João
Cabral de Melo Neto recebeu a
Folha, em dezembro de 97, após
quase quatro meses de insistência
da reportagem, para entrevista e
sessão de fotos para o caderno
Mais!
Revelando humor instável e alguma frustração pelo fato de estar
praticamente cego, o que o impedia de ler e escrever desde 1993,
falou um pouco sobre seu método
de trabalho, seu cotidiano após a
perda da visão e algumas lembranças. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
O fim de tudo - "Eu era diplomata. Escrevia quando havia
tempo. Quando voltei de Portugal para o Brasil estava contente
porque teria mais tempo para
me dedicar à escrita. Aí fui fazer
uma operação e fiquei cego.
Eu fiz uma operação muito séria
no intestino. Fiquei 70 dias na
UTI em 1993. Quando acordei,
estava cego. Meu psiquiatra disse que foi me ver no hospital e
viu que os médicos haviam colocado uma luz fortíssima sobre
meus olhos. E eu, inconsciente,
não podia meter o braço naquela
luz. Queimaram minha retina.
Por que usaram essa luz fortíssima, não sei.
Hoje tenho apenas uma visão
periférica. Estou te enxergando
mal, apenas seu vulto. Me desculpe se um dia te encontrar na
rua e não te cumprimentar.
Eu me sinto fraco, meio doente,
sem vontade de nada... Morrer é
o fim de tudo. O descanso... sossego... chega, né?"
Pelé - "Estava em Genebra, como diplomata, e o Itamaraty
queria me mandar para a Bolívia.
Aí, por causa da altitude, fiz um
exame pulmonar para saber se
eu tinha condições de trabalhar
lá. Depois do exame, o médico,
que havia visto uma matéria no
jornal sobre o Pelé, disse que minha capacidade pulmonar era
maior que a dele. Contei pra todo mundo."
Ex-escritor - "Eu estou sem
enxergar, compreende? De forma que não escrevo mais. Eu, pra
escrever, preciso ver. Não leio,
não consigo escrever também,
de forma que sou um ex-escritor.
É isso, não sou mais um escritor...
Não adianta eu ditar para alguém porque eu preciso ver a
minha letra construindo o verso.
Eu escrevo como quem constrói
uma casa. Meus livros têm uma
estrutura, um rigor, não são reuniões de poesias. Minha influência foi Le Corbusier, que eu li em
Recife quando ainda era garoto e
também os poetas cubistas franceses. Paul Valéry também, que
não era cubista.
Pra mim é uma tortura não poder ler, sabe? Desde menino pequeno não fiz outra coisa senão
ler. Não ler é pior do que não escrever.
Meu primeiro livro eu publiquei
com 22 anos, em Recife, e o último com 73 anos. Como não estou lendo, a literatura perdeu
completamente o interesse pra
mim. Eu não me lembro mais de
nenhum poema meu."
Rádio - "Não gosto de ouvir
música. Não sou da música. Ouço
rádio o dia todo, mas só noticiário. Hoje ouvi na rádio que a repercussão da presença do Pelé
na Inglaterra está sendo muito
maior que a de FHC. Todo dia eu
ouço na rádio invasão de sem-terra e rebelião em presídio."
Jorge Amado - "O Jorge é
mais velho que eu, mas é mais
forte, tem mais saúde. O Jorge
sempre comeu muito bem. Eu
nasci no meio da seca, quando
era criança nem sempre tinha
comida farta e boa como ele..."
Foto - "Você quer me fotografar no meu escritório? Aqui não
tem escritório, escritório pra
quê? Eu não escrevo mais... Além
do que estou barbado. O barbeiro
só vai chegar às sete horas... Você é insistente, hein garoto? Tá
bom, eu sento aqui numa cadeira
e você faz a foto..."
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