|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ELIO GASPARI
O socialismo precisa de um Rolex
Na semana dos 40 anos
da morte do Che, Luciano Huck faz lembrar a
herança do guerrilheiro
O CIDADÃO terminou suas pesquisas na biblioteca de Londres e vai para casa, no Soho
(rua Dean, 23). Passa um sujeito,
mostra-lhe uma faca e pede o relógio. Ao narrar o caso à sua mulher,
ele diz:
"Estou com 41 anos e a expectativa de vida neste inferno capitalista é
de 40. A nossa dieta ultrapassa as
2.300 calorias que o proletariado
consome. As condições de higiene e
saúde desta cidade são infernais.
Aos jovens restam poucas alternativas fora da sífilis e das prisões australianas. São as contradições do capitalismo e, por causa delas, fui assaltado por um garoto".
Pode ser que Karl Marx tenha dito
diferente:
"Jenny, um lúmpen roubou meu
relógio".
Pobre Luciano Huck. Foi assaltado por dois sujeitos que, de revólver
na mão, tomaram-lhe o Rolex. Reclamou num artigo publicado na
Folha do dia 1º e teria feito melhor
negócio se saísse por aí, cumprindo
"missões" em cima de motoqueiros. Foi acusado de ganhar muito e,
portanto, ser fonte da violência.
Mais: quem manda "pendurar o
equivalente a várias casas populares no pulso"? Disse que "isso não
está certo" e perguntaram-lhe o
que devem dizer as pessoas que vivem de salário mínimo. Fechando
o ciclo, num artigo marginal-chique, o rapper Ferréz respondeu
com o olhar dos assaltantes e os
óculos de Madre Teresa de Calcutá:
"Não vejo motivo para reclamação,
afinal, num mundo indefensável,
até que o rolo foi justo para ambas
as partes".
Está mais ou menos entendido
que o partido democrata perdeu a
confiança dos americanos nos anos
80 porque deixou-se confundir
com os defensores de bandidos.
Cada um pode achar o que quiser
(desde que não tome o relógio
alheio), mas nesse caminho a discussão da segurança pública brasileira caminha para a formação de
duas tropas, ambas julgando-se elite do seja lá o que for. Grita-se, para
que tudo continue como está. O filme ensina: o traficante foucaultiano da PUC não foi para a cadeia e o
PM larápio e covarde voltou para a
tropa.
Por ser um profissional bem-sucedido e ter ganho um Rolex de
presente da mulher (a apresentadora Angélica, igualmente bem-sucedida), Huck foi transformado
num obelisco da desigualdade social brasileira.
Infelizmente, assaltos não melhoram o índice de Gini. No caso do
Rolex do apresentador, especular o
destino do dinheiro de sua venda é
um exercício carnavalesco. Pode-se sonhar que tenha ido para uma
família carente, mas é mais provável que tenha servido para fechar
um trato de droga. Que tal as duas
coisas, meio a meio? Uma coisa é
certa, o Rolex voltará ao pulso de
alguém disposto a pagar por ele.
Quis o Padre Eterno que esse debate indigente acontecesse logo na
semana do 40º aniversário da execução de Ernesto Che Guevara, o
Guerrilheiro Heróico. Se Angélica
dissesse que deu o Rolex a Huck como parte dessas celebrações, a discussão ganharia um denso conteúdo ideológico.
Quando o Che foi assassinado, no
mato boliviano, tinha dois Rolex.
Um, modelo GMT Master, era dele.
O outro, marcado com um X, era
uma lembrança que tirara do pulso
de um combatente agonizante. (O
índice de com-Rolex dos guerrilheiros cubanos na Bolívia era de
12%, certamente um dos mais altos
do mundo.)
Os relógios eram dois, mas há
três por aí. Quem quiser pesquisar
a herança de Guevara, pode começar investigando esse mistério.
Texto Anterior: Habeas Corpus: Cacciola tenta se beneficiar no STF de lei do foro privilegiado Próximo Texto: TV pública quer R$ 60 mi com publicidade Índice
|