São Paulo, sábado, 10 de novembro de 2001

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ENTREVISTA

Amigo de FHC, sociólogo elogia José Serra como candidato e afirma não estar convencido de que o PT possa vencer

Brasil tende para a esquerda, diz Touraine

JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL

Após oito anos vivendo sob a égide do liberalismo econômico, a eleição de 2002 vai marcar uma virada gradual da sociedade brasileira para a esquerda.
Assim pensa o sociólogo Alain Touraine, 75, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris (França), e autor, entre outros livros, de "A Crítica da Modernidade" (Vozes).
Apesar de não descartar a possibilidade de que o PT vença as eleições, este não é o cenário mais provável na avaliação de Touraine, que é amigo e foi professor do presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 60, na Universidade de Paris-Sorbonne.
A razão seria a percepção por parte da maioria dos pré-candidatos ao Planalto, inclusive dos governistas, de um processo de "esquerdização" do eleitorado brasileiro.
De olho nas urnas, tucanos como o governador do Ceará, Tasso Jereissati, que chegou a decretar a morte do Consenso de Washington, e o ministro José Serra (Saúde), com sua "continuidade sem continuísmo", incorporaram a retórica antiliberal. Sonham atrair parte do eleitorado de esquerda.
"O Brasil quer ir mais, de certa forma, para a esquerda. Mas eu não estou convencido de que o PT está unificado o suficiente para elaborar um programa de governo e eu não estou certo de que Lula, como candidato, tenha capacidade de integrar e unificar as diversas tendências que existem dentro do PT", disse o sociólogo.
Em entrevista à Folha, Touraine também elogiou o discurso de seu ex-aluno na Assembléia Nacional da França na semana passada.
Estudioso da América Latina, o sociólogo não vê um futuro próximo positivo para a região. "A América Latina está, no momento, incapaz de tomar qualquer iniciativa", diz o professor. "Mesmo o Brasil não pode ter qualquer atuação significativa nessa crise internacional", disse, referindo-se ao pós-11 de setembro.

Folha - O discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na Assembléia Nacional da França mostra preocupação de manter o Brasil na agenda internacional. Entretanto, a América Latina está fora do debate, focado na Ásia e no Oriente Médio. Qual deve ser a participação da região no contexto mundial pós-11 de setembro [dia dos atentados aos EUA"?
Alain Touraine -
O excelente discurso feito por FHC na Assembléia Nacional da França tem um objetivo muito mais preciso: convencer a Europa ocidental da necessidade de se fazer um acordo de livre comércio com o Mercosul. O presidente está agora convencido de que não pode parar o grande projeto dos EUA, porque ele está sozinho e a Argentina está uma bagunça. Uma área de livre comércio entre a Europa e o Mercosul é perfeitamente compatível com a participação do Brasil na área de livre comércio americana.
A idéia é mais lógica porque o Brasil e a Argentina têm mais relações comerciais com a Europa do que com os Estados Unidos.

Folha - Os EUA antes dos atentados priorizavam o Plano Colômbia [programa de assistência técnico-militar para erradicar o cultivo de cocaína". Antes as atenções estavam voltadas para a retórica de esquerda de Hugo Chávez [presidente da Venezuela" e Fidel Castro [ditador cubano". Com a região sem importância estratégica, os fluxos de capital devem diminuir. O cenário futuro para a AL é ruim?
Touraine -
Nós não apenas podemos esperar um futuro negativo para a América Latina, como temos que observar a sua situação atual. A guerra civil na Colômbia, o discurso de Chávez na Venezuela e até o decadente regime de Castro não são nenhum dos problemas de maior importância em nível mundial. A América Latina está, no momento, incapaz de tomar qualquer iniciativa. Esta é a razão pela qual será tão fácil para os Estados Unidos impor a regra do jogo para todas as nações do continente.

Folha - O sr. diria que o mundo deu atenção ao discurso de FHC?
Touraine -
Obviamente o Brasil tem um papel muito limitado no panorama mundial. Mas este papel existe, e muito poucas pessoas pelo mundo e especialmente na América Latina podem dizer o mesmo. Não desmoronar, não explodir ou implodir, não sobreviver apenas graças à economia do crime está ficando bastante raro. O Brasil é um dos países que merece ser considerado como um Estado-nação, apesar de seus problemas internos.

Folha - Qual o motivo da posição relativamente fraca do país, que faz com que o Brasil tenha peso menor em decisões internacionais do que o da Índia, o da China ou mesmo o do México?
Touraine -
A Índia e a China têm mais de 1 bilhão de habitantes cada um, e estes países têm vivenciado um relativo sucesso em seu processo de desenvolvimento nos últimos 20 anos. Para o Brasil, sobreviver não é uma tarefa fácil, mas o país fez mais: um rápido progresso na educação básica, melhores condições de saúde para todos e distribuição de alguma terra. É verdade que o principal problema, a enorme desigualdade, ainda não foi solucionado.
Mas, praticamente após dez anos de governo FHC, o Brasil parece ser capaz de resolver o seu problema sem o risco de ser destruído por uma maior crise política.

Folha - O presidente norte-americano, George W. Bush, tem priorizado pouco a América Latina. A atitude fria do FMI na crise Argentina é um exemplo. Tal relacionamento difere muito do de Bill Clinton [ex-presidente dos EUA" com a AL?
Touraine -
O presidente Bush estava interessado, quando era governador do Texas, nos problemas da América Latina. As transformações no contexto mundial obviamente impediram-no de tomar qualquer iniciativa maior. Uma vez que os problemas econômicos são preocupantes, é o FMI, mais do que o governo norte-americano, que é responsável por achar soluções que são muito necessárias.

Folha - Que consequências a crise da Argentina trará para o Brasil?
Touraine -
Honestamente falando, não há nenhuma razão para considerar a Argentina culpada por tudo. O baixo valor do real e a sobrevalorização do peso são juntos os elementos básicos do quase desaparecimento do Mercosul.

Folha - A esquerda brasileira critica a posição do presidente, que se restringiria ao discurso. Como o sr. vê a possibilidade de a esquerda chegar ao poder? E o nome de José Serra, aparentemente o candidato preferido de FHC?
Touraine -
É certamente superficial dizer que FHC fala mais em vez de agir. A situação na qual o Brasil está vivendo não permite a ninguém lançar reformas básicas. Agora que o Brasil está estabilizado, pode ser possível que o PT ganhe as próximas eleições. O Brasil, de qualquer maneira, quer ir mais, de certa forma, para a esquerda. Mas eu não estou convencido de que o PT está unificado o suficiente para elaborar um programa de governo e eu não estou certo de que Lula, como candidato, tenha capacidade de integrar e unificar as diversas tendências que existem dentro do PT.
Isso significa que eu considero uma vitória da esquerda perfeitamente possível, mas, até agora, não o resultado mais provável das próximas eleições. José Serra parece ser o candidato de FHC. Essa é uma excelente escolha, especialmente agora que Serra tem obtido um amplo suporte da opinião pública no campo da saúde pública.

Folha - No Brasil, o discurso da esquerda está indo para o centro, como o que ocorreu com a Alemanha, com o chanceler Gerhard Schroeder, e no Reino Unido, com o primeiro-ministro Tony Blair? Por que haveria esse pragmatismo?
Touraine -
Seria equivocado comparar as situações da América Latina e da Europa. A Terceira Via inglesa [doutrina de Blair, que prega economia de mercado com ideais de justiça social" está inclinada para uma leve política de direita. Na América Latina, o único jeito de sobreviver é começar atacando os principais problemas de cada país, antes de tudo as desigualdades sociais extremas.
Uma modernização social que signifique, antes de tudo, menos desigualdade e menos injustiça. Há dez anos, o Brasil era incapaz de elaborar tais políticas. Agora está se tornando possível e isso ficará como o aspecto mais positivo do governo FHC.


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