São Paulo, domingo, 10 de novembro de 2002

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BALANÇO

Perry Anderson reconhece avanços no controle da inflação e na área social, mas vê mais danos que benefícios no período

FHC deixou saldo negativo, diz historiador

DA REDAÇÃO

O historiador britânico Perry Anderson, 64, esperava mais do governo Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de renome internacional e com uma biografia marcada pela oposição ao regime militar. Mas, apesar de alguns avanços inegáveis -como o controle da inflação e progressos na área social-, o legado da era FHC é essencialmente negativo: "estagnação crescente, salários reais em queda, desemprego em nível nunca antes visto e uma dívida estarrecedora. O regime foi condenado em seus próprios termos". A razão desse fiasco é o neoliberalismo que, barrando qualquer controle sobre a mobilidade do capital, produziu aqui resultados mais devastadores do que os trazidos a outros países do continente.
Em certo sentido, Fernando Henrique Cardoso foi uma vítima, não da teoria da dependência por ele teorizada, mas da dependência real da economia brasileira às nações do Primeiro Mundo. Ao deixar o país inteiramente à mercê dos movimentos imprevisíveis do capital financeiro mundial, o governo ficou exposto a todos os infortúnios que acometeram o mercado mundial. No plano diplomático, atrelou o Brasil aos EUA.
A entrevista a seguir é atípica. A Folha enviou ao autor, por e-mail, um conjunto de perguntas sobre a atual conjuntura política e econômica do Brasil, acompanhado de questionamentos sobre suas obras, tanto as mais antigas como sobre seu livro mais recente, "Afinidades Seletivas". Apesar de reconhecer a relevância dos problemas levantados, Anderson respondeu que, neste momento, a tarefa crucial era a análise do governo FHC e do resultado da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele descartou assim inteiramente uma parte das questões propostas pela Folha e estendeu, por conta própria, suas análises sobre a situação do Brasil, intercalando perguntas que ele considerava importantes para esclarecer suas opiniões. Nesse sentido, o texto final acabou sendo basicamente um diálogo do autor consigo mesmo, mais do que uma entrevista. Leia os principais trechos de seu depoimento:

Pergunta - Em 1994, o senhor disse que Fernando Henrique provavelmente seria o melhor presidente que o Brasil já teve, mas que teríamos que esperar para avaliar esse elogio. Hoje, ao final de seu mandato, o senhor ainda concorda com a primeira parte de sua proposição? E o que diria da segunda?
Perry Anderson -
Não há dúvida alguma de que muitos brasileiros -principalmente, mas não exclusivamente, os membros da classe média- acham que Fernando Henrique foi o governante mais esclarecido que o país teve até hoje. Eles podem apontar uma série de conquistas que, mesmo que com frequência sejam exageradas nas apologias oficiais, foram reais e palpáveis. A hiperinflação foi derrotada já no início do governo FHC, o que sem dúvida alguma beneficiou as camadas mais pobres da população.
O analfabetismo diminuiu, a mortalidade infantil foi reduzida e houve um certo grau de redistribuição da terra. Houve avanços na área social e administrativa. O aparelho de Estado passou por uma modernização genuína, sob alguns aspectos, tornando-se menos opaco e mais eficiente. Os níveis de corrupção, embora continuem altos, caíram. As informações estatísticas são mais confiáveis, os controles orçamentários estão mais rígidos, o clientelismo regional foi reduzido. Esses são processos que enfraqueceram as oligarquias do Nordeste, o que talvez tenha sido a mais importante mudança de longo prazo conquistada ao longo destes anos.

Pergunta - Quer dizer que, para o senhor, o resultado global do mandato FHC é positivo?
Anderson -
Seria um erro menosprezar esses avanços. Mas eles são muito modestos quando comparados à escala dos danos provocados pelas políticas macroeconômicas do governo. A característica que define o governo FHC tem sido o neoliberalismo "light", do tipo que predominou nos anos 1990, quando as doutrinas da Terceira Via distanciaram-se ostensivamente das versões mais rígidas de neoliberalismo introduzidas por Reagan e Thatcher nos anos 80, ao mesmo tempo em que, na prática, levaram adiante -na realidade, muitas vezes acentuaram- o programa original, acompanhado apenas de concessões sociais secundárias e de um discurso mais flexível.
A dinâmica fundamental do neoliberalismo se ergue sobre dois princípios: a desregulamentação dos mercados e a privatização dos serviços. Convencido de que o Brasil não pode financiar o crescimento a partir da poupança doméstica e de que suas estatais fomentavam a ineficiência e a corrupção, Fernando Henrique Cardoso leiloou a maior parte do setor estatal e abriu a economia completamente, apostando na entrada de um fluxo maciço de capital externo para modernizar o país. Após oito anos, os resultados estão aí, evidentes: estagnação crescente, salários reais em queda, desemprego em nível nunca antes visto e uma dívida estarrecedora. O regime foi condenado em seus próprios termos. A conquista da qual o governo mais se orgulha, a estabilização monetária, está em ruínas: o real está valendo um quarto do que valia no início do Plano Real, as taxas de juros são as mais altas do mundo e o país hoje se vê cara a cara com a possibilidade de moratória. A disparidade de renda não apenas continua a ser virtualmente a pior do mundo, como agora a dependência está incomparavelmente maior do que era -em todos os sentidos negativos- quando FHC, num passado já distante, certa vez propôs uma teoria crítica dela. É um legado desastroso.

Pergunta - Mas não é certo que os responsáveis pela maioria dessas dificuldades foram fatos que estavam fora do controle do governo? Será que é correto atribuir a culpa de tudo a Fernando Henrique?
Anderson -
A lógica de um modelo neoliberal na periferia do capitalismo mundial coloca qualquer país que a adota à mercê de movimentos imprevisíveis nos mercados financeiros no centro, de modo que os infortúnios que acometeram FHC foram em grande medida a crônica de um fiasco anunciado. Mas este também foi um regime hesitante e incompetente. A taxa de câmbio era insustentável desde o início, tendo sido sobrevalorizada para fins demagógicos, e não se pensou nem mesmo no grau módico dos controles de capital, controles estes que protegeram a economia chilena dos piores efeitos que o Brasil viria a sofrer. De modo mais geral, é claro, a idéia toda de que a chave para atrair capital externo seria a desregulamentação e a privatização extremas era extraordinariamente ingênua e provinciana. Nos mesmos anos durante os quais FHC estava conduzindo o Brasil para o triste beco sem saída em que o país se encontra agora, a China estava atraindo investimentos externos em escala colossal, deixando no chinelo o capital volátil que chegava ao Brasil, com controles de capital rígidos e uma moeda não conversível, além de apresentar de longe o mais alto índice mundial de crescimento do PIB. A China hoje tem muitos problemas, sem falar em desigualdades e injustiças. Mas o contraste entre desenvolvimento vigoroso e dependência aleijada não poderia ser mais gritante.

Pergunta - O sr. dá a entender que as políticas de FHC foram estúpidas, mas o sr. considerava FHC um político muito inteligente.
Anderson -
As razões pelas quais FHC se manteve num caminho evidentemente calamitoso por tanto templo, quando a lógica já ficara clara na primeira crise cambial, em 1995, precisam ser descobertas por futuros historiadores. Uma explicação pode residir no pacto político com a velha ordem que o levou ao poder. Hoje, seus admiradores no exterior -basta olhar qualquer edição de ""The Economist"- não hesitam em descrever o governo FHC como um regime de centro-direita. Segundo essa interpretação, ele se tornou prisioneiro de alianças conservadoras das quais não conseguiu libertar-se em nenhum momento. Mas essa explicação não me convence por inteiro, entre outras coisas porque as oligarquias tradicionais brasileiras nunca foram doutrinalmente inflexíveis -seus instintos são inteiramente fisiológicos- e, em vários momentos, seriam prejudicadas com doses excessivas de desregulamentação. É uma área na qual podem se fazer diversas especulações, mas meu palpite é que uma resposta melhor se encerra na relação entre FHC e Malan, e, através deste, com o FMI e os EUA.



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