São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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JANIO DE FREITAS

Grandes e pequenos


A legislação atual não admite que possa nascer partido sério, com chance de crescer; exige que já nasça grande

UMA DECISÃO definida por unanimidade no Supremo Tribunal Federal por certo não se origina em motivação política -mesmo que um ou outro ministro pudesse tê-la. Não é unanimidade de dois. São onze ministros, entre os quais as discordâncias jurídicas são o normal, para não entrarmos nas que transparecem idiossincrasias pessoais ou tentações teatrais. Apesar da unanimidade incomum e eloqüente por si mesma, o STF está sob ataque intenso, acusado de impor retrocesso no regime democrático, prejudicar a moralização do Legislativo, favorecer os partidinhos de aluguel, apossar-se da função legisladora dos parlamentares e decidir com motivação política, não jurídica. Tudo isso por invalidar, considerando-a contrária à Constituição, parte de determinada decisão do Congresso.
Entraria em vigor no ano que vem, com a posse do novo Congresso, uma série de restrições aos direitos e atividades de parlamentares eleitos por partidos, os chamados nanicos, que não obtiveram 5% dos votos na soma nacional e pelo menos 2% dos votos em nove Estados. A tais partidos partidos caberia dividir apenas 1% da gorda verba do Fundo Partidário; seu novo tempo de TV e rádio teria por base a velocidade do Enéas, e seus parlamentares não teriam direito a integrar comissões, dispor de instalações e prerrogativas das lideranças, e outras limitações.
Essa regra foi a "Cláusula de Desempenho" introduzida na farsesca "reforma política" de 1995 com o propósito, pelo menos o propósito declarado, de reduzir o número prolífico de partidos e a ação daqueles sem maior representatividade eleitoral. É bastante claro, porém, que as conseqüências punitivas do insuficiente desempenho do partido foram estendidas aos direitos e atribuições de parlamentares que obtiveram, nas urnas, desempenho suficientemente expressivo para levá-los ao Congresso.
De olho no desempenho eleitoral de certos partidos, a maioria do Congresso (dominada por PSDB, PFL e PMDB) aprovou restrições ao desempenho individual de determinados parlamentares. A partir de 2007 haveria no Congresso, portanto, duas categorias de parlamentares, segundo os direitos admitidos a uma e negados a outra. É fácil enquadrar tal diferenciação na conveniência dos grandes partidos, mas impossível conciliá-la com a Constituição, com o regime democrático e com algum nível de moralidade do sistema eleitoral. Pois até os eleitores estariam divididos em duas categorias: aqueles cujos candidatos preferidos desfrutariam das prerrogativas parlamentares e aqueles cujos votos resultariam, sem prévio conhecimento do eleitor, em semicassados.
Também não é pela discriminação de privilégios e poderes, entre grandes e pequenos, que a proliferação de partidos deve ser restringida. Por essa via só é feita a prepotência lucrativa dos grandes, como nos tantos outros desregramentos e desníveis que caracterizam o Brasil. O meio para restringir a proliferação fácil de partidos e para impedir que haja partidos de aluguel, nanicos ou graúdos, não está na atividade de parlamentares nem na discriminação dos direitos partidários. Está em legislação que determine tais ou quais exigências para registro de partidos. Só.
Muitos cientistas políticos (sic) e "especialistas", como os jornais deram de dizer, culpam os pequenos partidos por todos os males do Congresso. É menos certo que o mal esteja na proliferação de siglas do que na má qualidade, cultural e ética, dos plenários majoritariamente compostos pelos partidos grandes. Além disso, reprimir partidos pequenos não elimina os partidos de aluguel. Agora mesmo está aí o PMDB reafirmando o destino a que se entregou desde a posse de Collor. Não é por identificação programática que se alia ao governo, se nem Lula tem programa para o segundo mandato. Como se alugou ou vendeu-se ao governo Fernando Henrique, o gigante PMDB vende-se ou se aluga a Lula.
A legislação em vigor não admite que possa nascer partido sério e com perspetiva de crescimento. Exige que já nasça grande. Do contrário, são-lhe negadas condições de comunicação e propagação concedidas aos já grandes. As partes da lei invalidadas pelo STF, em vez de atenuar o privilégio aos que poderiam dispensá-lo, vinham ampliar e agravar a imposição do predomínio partidário já existente, cujo resultado tem sido a degradação do Legislativo devastado pela corrupção e dominado pelo Executivo.
O STF anulou um ato inconstitucional do Congresso e uma ameaça antidemocrática. Tão significativo, mas no sentido oposto, quanto sua decisão unânime, é o ataque intenso por adotá-la.


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