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LANTERNA NA POPA
O Versailles do cerrado
ROBERTO CAMPOS
A taxa de impopularidade de
FHC seis meses após a posse, na
primeira reeleição da história
da República, é demasiado alta
para ser explicável por súbitos
caprichos de humor do eleitorado. Em relação ao Congresso, o
desagrado do povo é ainda mais
forte, atingindo um nível perigoso. Em parte, trata-se de um
fenômeno político, social e cultural que se vem generalizando
inclusive nas democracias altamente industrializadas. É talvez
síndrome da transição da sociedade industrial para a sociedade da informação.
As gerações atuais, com a experiência de uma acumulação
de riquezas sem precedente na
história, vêm se tornando muito
hedonistas inventando carências fantasiosas. Mas, mesmo os
ricos, vão ter seus problemas. A
Comissão Européia estima que,
na próxima década, 80% dos
empregos vão ser estraçalhados
por novas tecnologias emergentes. De outro lado, 25% da população mundial vive em pobreza absoluta e 90% dessa parcela estão nos países subdesenvolvidos, que, por coincidência,
representam 90% do crescimento demográfico. A diferença entre o pelotão da ponta e a retaguarda não só é grande como
tende a se alargar.
O Brasil está pendurado entre
esses dois mundos. Em números
redondos, neste país (cujo PIB
em paridade de poder de compra é superior a US$ 1 trilhão),
metade das pessoas tem uma
renda que já beira o limiar do
Primeiro Mundo, e a outra metade estaria, na média, pouco
acima da marca da pobreza absoluta.
O que acontece é que o setor
economicamente mais adiantado do país tem reclamações, em
tom cada dia mais irritado, contra a incompetência operacional da máquina do governo.
Por outro lado, as carências
extremas, potencializadas pela
fertilidade sexual dos mais pobres e agravadas pela disfuncionalidade estatal, estão diante
dos olhos de todos, prato feito
gratuito para todos os ideólogos
em repetência intelectual. Esses
babam de raiva contra os ex-socialistas, que se convenceram de
que o socialismo é apenas o caminho mais tortuoso para se
passar do capitalismo ao capitalismo.
Fernando Henrique está, assim, apanhando por conta dos
dois lados. O desfavor atual do
eleitorado não é nenhum fenômeno cósmico. É próprio das democracias (aconteceu até com
Churchill e De Gaulle, apesar do
respeito e gratidão que lhes tinham os seus povos).
Essa impopularidade pode ser
atenuada por melhor comunicação, mas só será reversada
quando a economia reengolir as
vitaminas do crescimento. O
eterno dilema é que o crescimento depende das reformas, e
os que mais reclamam crescimento são os que mais entorpecem as reformas.
Há aspectos contraditórios na
experiência do governo de FHC.
A favor, conta-se o extraordinário feito de resistência à esbórnia inflacionária, com uma firmeza que deu ao país respeitabilidade internacional. E a favor, também, é a racionalidade
do programa de governo, anunciado de antemão ao eleitorado,
que Fernando Henrique vem,
embora aos tropeços, tentando
seguir. O Instituto Liberal em
suas excelentes "Notas" (nº 73),
considera que, se o presidente
conseguir a aprovação da Lei de
Responsabilidade Fiscal, será o
grande modernizador das instituições brasileiras.
Para mim, sua contribuição
definitiva é ter-nos livrado da
dupla Lula-Brizola, que representaria o "avanço do retrocesso". Os dois partidos -o PT e o
PDT- figuram entre os mais
atrasados da esquerda ocidental, incapazes de compreender a
dinâmica capitalista e dedicados mais à extração de verbas
que à promoção de investimentos. E ambos, ao insistirem na
tese da renúncia ou do impeachment, revelam déficit de
paciência democrática.
O PT, quando se reescrever
nossa história econômica, aparecerá como o responsável pela
desindustrialização do ABC
paulista, em virtude da agressividade da CUT, que está se tornando, pateticamente, mais um
sindicato de funcionários que de
operários. E, fiel aos seus instintos, está mutilando o salto tecnológico do Rio Grande do Sul,
pela resistência a renúncias fiscais, em benefício de investimentos.
Seria cômico ver Lula e Brizola negociando com os estadistas
do grupo G-7 soluções alternativas para o problema da volatilidade de capitais!
Como pessoa, FHC é de bom
trato, intelectualmente aberto, o
oposto do "déspota esclarecido"
(acusação que lhe andaram fazendo). Em matéria de comunicação, é algo professoral (doença de que sofro em forma aguda), acentuando a racionalidade da exposição a expensas do
calor da comunicação enfática
com a platéia.
FHC parece pouco sair de um
pequeno círculo de tecnocratas e
políticos. Se, por exemplo, tivesse ouvido informalmente um leque mais representativo de opiniões econômicas e de homens
de negócios, teria podido evitar
alguns dos erros mais perigosos:
inicialmente, a sobrevalorização do real, o mal tratamento
dado à agricultura e, de meados
de 1997 para cá, excessivo atraso
no ajuste cambial.
Não será uma questão de geografia? Talvez os rumos enroscados da governança pátria sejam um fenômeno cósmico de
alienação devido a Brasília, essa
Versailles burocrática em estilo
neo-modernoso, plantada no
cerrado. Brasília, como tudo
neste mundo, tem seus ativos e
passivos.
Sua construção, em quatro
anos, foi um exemplo da capacidade de realização que Juscelino sabia extrair da nossa raça.
Mas também o foram, há três
milênios, as pirâmides do Egito.
Em ambos os casos, para garantir a imortalidade dos responsáveis.
Brasília é a topologia ideal da
alienação, separando as pessoas
rigorosamente de acordo com
suas posições na hierarquia governamental, isolando o alto
funcionário do contato inconveniente da plebe. Como Versailles, aliás, Luiz 14 achou melhor
ficar longe da incômoda turbulência do populacho de Paris.
E o pobre do Luiz 16, um bom
homem que só queria brincar de
serralheiro (e cuja mulher, Maria Antonieta, recomendava
que quem não tivesse pão comesse brioches), acabou literalmente perdendo a cabeça. Naquele tempo só havia o direito
divino dos reis sem mandato
nem reeleição.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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