São Paulo, Domingo, 11 de Julho de 1999
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LANTERNA NA POPA

O Versailles do cerrado

ROBERTO CAMPOS

A taxa de impopularidade de FHC seis meses após a posse, na primeira reeleição da história da República, é demasiado alta para ser explicável por súbitos caprichos de humor do eleitorado. Em relação ao Congresso, o desagrado do povo é ainda mais forte, atingindo um nível perigoso. Em parte, trata-se de um fenômeno político, social e cultural que se vem generalizando inclusive nas democracias altamente industrializadas. É talvez síndrome da transição da sociedade industrial para a sociedade da informação.
As gerações atuais, com a experiência de uma acumulação de riquezas sem precedente na história, vêm se tornando muito hedonistas inventando carências fantasiosas. Mas, mesmo os ricos, vão ter seus problemas. A Comissão Européia estima que, na próxima década, 80% dos empregos vão ser estraçalhados por novas tecnologias emergentes. De outro lado, 25% da população mundial vive em pobreza absoluta e 90% dessa parcela estão nos países subdesenvolvidos, que, por coincidência, representam 90% do crescimento demográfico. A diferença entre o pelotão da ponta e a retaguarda não só é grande como tende a se alargar.
O Brasil está pendurado entre esses dois mundos. Em números redondos, neste país (cujo PIB em paridade de poder de compra é superior a US$ 1 trilhão), metade das pessoas tem uma renda que já beira o limiar do Primeiro Mundo, e a outra metade estaria, na média, pouco acima da marca da pobreza absoluta.
O que acontece é que o setor economicamente mais adiantado do país tem reclamações, em tom cada dia mais irritado, contra a incompetência operacional da máquina do governo.
Por outro lado, as carências extremas, potencializadas pela fertilidade sexual dos mais pobres e agravadas pela disfuncionalidade estatal, estão diante dos olhos de todos, prato feito gratuito para todos os ideólogos em repetência intelectual. Esses babam de raiva contra os ex-socialistas, que se convenceram de que o socialismo é apenas o caminho mais tortuoso para se passar do capitalismo ao capitalismo.
Fernando Henrique está, assim, apanhando por conta dos dois lados. O desfavor atual do eleitorado não é nenhum fenômeno cósmico. É próprio das democracias (aconteceu até com Churchill e De Gaulle, apesar do respeito e gratidão que lhes tinham os seus povos).
Essa impopularidade pode ser atenuada por melhor comunicação, mas só será reversada quando a economia reengolir as vitaminas do crescimento. O eterno dilema é que o crescimento depende das reformas, e os que mais reclamam crescimento são os que mais entorpecem as reformas.
Há aspectos contraditórios na experiência do governo de FHC. A favor, conta-se o extraordinário feito de resistência à esbórnia inflacionária, com uma firmeza que deu ao país respeitabilidade internacional. E a favor, também, é a racionalidade do programa de governo, anunciado de antemão ao eleitorado, que Fernando Henrique vem, embora aos tropeços, tentando seguir. O Instituto Liberal em suas excelentes "Notas" (nº 73), considera que, se o presidente conseguir a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, será o grande modernizador das instituições brasileiras.
Para mim, sua contribuição definitiva é ter-nos livrado da dupla Lula-Brizola, que representaria o "avanço do retrocesso". Os dois partidos -o PT e o PDT- figuram entre os mais atrasados da esquerda ocidental, incapazes de compreender a dinâmica capitalista e dedicados mais à extração de verbas que à promoção de investimentos. E ambos, ao insistirem na tese da renúncia ou do impeachment, revelam déficit de paciência democrática.
O PT, quando se reescrever nossa história econômica, aparecerá como o responsável pela desindustrialização do ABC paulista, em virtude da agressividade da CUT, que está se tornando, pateticamente, mais um sindicato de funcionários que de operários. E, fiel aos seus instintos, está mutilando o salto tecnológico do Rio Grande do Sul, pela resistência a renúncias fiscais, em benefício de investimentos.
Seria cômico ver Lula e Brizola negociando com os estadistas do grupo G-7 soluções alternativas para o problema da volatilidade de capitais!
Como pessoa, FHC é de bom trato, intelectualmente aberto, o oposto do "déspota esclarecido" (acusação que lhe andaram fazendo). Em matéria de comunicação, é algo professoral (doença de que sofro em forma aguda), acentuando a racionalidade da exposição a expensas do calor da comunicação enfática com a platéia.
FHC parece pouco sair de um pequeno círculo de tecnocratas e políticos. Se, por exemplo, tivesse ouvido informalmente um leque mais representativo de opiniões econômicas e de homens de negócios, teria podido evitar alguns dos erros mais perigosos: inicialmente, a sobrevalorização do real, o mal tratamento dado à agricultura e, de meados de 1997 para cá, excessivo atraso no ajuste cambial.
Não será uma questão de geografia? Talvez os rumos enroscados da governança pátria sejam um fenômeno cósmico de alienação devido a Brasília, essa Versailles burocrática em estilo neo-modernoso, plantada no cerrado. Brasília, como tudo neste mundo, tem seus ativos e passivos.
Sua construção, em quatro anos, foi um exemplo da capacidade de realização que Juscelino sabia extrair da nossa raça. Mas também o foram, há três milênios, as pirâmides do Egito. Em ambos os casos, para garantir a imortalidade dos responsáveis.
Brasília é a topologia ideal da alienação, separando as pessoas rigorosamente de acordo com suas posições na hierarquia governamental, isolando o alto funcionário do contato inconveniente da plebe. Como Versailles, aliás, Luiz 14 achou melhor ficar longe da incômoda turbulência do populacho de Paris.
E o pobre do Luiz 16, um bom homem que só queria brincar de serralheiro (e cuja mulher, Maria Antonieta, recomendava que quem não tivesse pão comesse brioches), acabou literalmente perdendo a cabeça. Naquele tempo só havia o direito divino dos reis sem mandato nem reeleição.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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