São Paulo, Domingo, 11 de Julho de 1999
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ELIO GASPARI

Não gostou da lista da ONU? Chame a doutora Zilda

Há um ano, FFHH desfilou a divulgação do Índice de Desenvolvimento Humano, calculado pela ONU, na comissão de frente de sua campanha pela reeleição. Tinha boas razões para isso, pois o Brasil ficara em 62º lugar, entrando para o grupo de países com "alto desenvolvimento humano".
A ONU acaba de divulgar a classificação de 1999 (baseada em números de 1997). Pindorama caiu para 79º lugar, entre a Arábia Saudita e o Peru, e mudou de turma. Agora está na divisão dos países com "médio desenvolvimento". Há razões para supor que o governo, amargurado por essa desclassificação, resolva brigar com o indicador que tantas alegrias eleitorais lhe deu. Se fizer isso, estará insultando a inteligência alheia.
O tombo resultou de uma mudança de metodologia. Usando-se os números novos e o sistema de cálculo velho, a situação brasileira melhorou.
Usando-se os números velhos na metodologia nova, também houve progresso.
Portanto, as condições sociais brasileiras melhoraram um pouco, mas melhoraram. O que acabou foi a fantasia segundo a qual essa sociedade fazia parte do mesmo grupo onde estão os Estados Unidos, a França, a Argentina e a Costa Rica. Se o tucanato fingiu que acreditava nisso, problema dele.
Um dos indicadores que derrubaram a colocação do Brasil foi o da mortalidade infantil. A maneira como se vem lidando com ela é um exemplo da inutilidade da opção preferencial do governo pela fantasia. Dos primeiros 85 países da lista, nenhum tem taxa maior que a brasileira: para cada 1.000 crianças que nascem vivas, morrem 37. (Na Argentina, morrem 21; na Costa Rica, 12; e, no campeão mundial de bem-estar, o Canadá, morrem duas.)
Na semana passada, a Pastoral da Criança, a maior obra social existente no país, acendeu um sinal de alerta. Informou que no ano passado interrompeu-se a tendência de queda da mortalidade nas 28 mil comunidades carentes em que ela atua. Em 1998, morreram 14 crianças para cada 1.000 nascidas vivas, número semelhante ao de 1997. Pior: a taxa das comunidades atendidas em São Paulo dobrou, passando de 6 para 11,7, e, no Rio, foi de 9 para 11. As comunidades da Pastoral nesses dois Estados afastaram-se da marca do Paraná, aproximando-se da Paraíba.
Seria o caso de alguém manifestar preocupação ou, pelo menos, curiosidade. Nada disso. Apareceu o secretário da Saúde de São Paulo, José da Silva Guedes, informando que a taxa de mortalidade paulista caiu de 21,6 para 18,7. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Um número é bom (o do secretário) e o outro é ruim (o da Pastoral). Todo mundo teria a ganhar se cada um deles fosse tratado pelo que é, mas se preferiu transformar o problema num exercício de egolatria oficialista. Desse jeito, perde-se a oportunidade de discutir as consequências do desemprego e das migrações, que podem ser os responsáveis pelos indicadores sombrios.
Basta olhar os números para verificar que as taxas de mortalidade da Pastoral são melhores que os do secretário. Levando-se em conta que ela só atua em áreas pobres, soa absurdo que só morram 11 crianças nas suas comunidades carentes de São Paulo, enquanto morrem 18,7 na praia do doutor Guedes. A diferença está no trabalho dos voluntários da Pastoral.
De cada 10 crianças que vivem em área pobres do Brasil, 1 está sob a atenção da Pastoral da Criança, que os acompanha até os 6 anos de idade. Nesse universo, jamais se encontrou um menino de rua. Ela atua em 3.000 municípios. No ano passado, seus 112 mil líderes comunitários acompanharam a gravidez de 67 mil mulheres e os primeiros anos de vida de 1,4 milhão de crianças. Essa rede capilar é formada por voluntários e trabalha com o amor à vida da fé cristã.
Criada em 1983, a Pastoral pode ter seu sucesso medido num só resultado.
Nas comunidades onde entra, a taxa de mortalidade infantil cai à metade dos indicadores locais. O primeiro município onde trabalhou foi Florestópolis, no Paraná. Com 70% de bóias-frias na sua população, tinha uma taxa de 128 crianças mortas por 1.000 nascidas vivas. Em seis meses, baixou para 27. No primeiro trimestre deste ano, não morreu uma só criança em Florestópolis.
A mortalidade nacional está em 37 crianças mortas por 1.000 nascidas vivas. (FFHH começou a reinar com um índice de 51.) A Pastoral consegue uma taxa de 14, quando segue a gravidez, e de 21, quando o acompanhamento começa depois do parto.
Essa história de sucesso e fé mostra que o Brasil só não melhora o seu índice de desenvolvimento humano porque o andar de cima gosta de fingir que vive no Primeiro Mundo (grife que a ONU lhe cassou).
A Pastoral é obra de milhares de pessoas, mas no seu comando está uma mulher fantástica. É Zilda Arns Neumann, uma pediatra de 65 anos, que enviuvou aos 41, criou cinco filhos e tem três pares de sapatos ("mais alguns, velhos, que uso pouco"). Ela é a 12ª filha de Gabriel e Helena Arns, um casal da catarinenses de pouca educação que pôs no mundo 13 irmãos incríveis. Educaram nove professores, dois engenheiros, uma médica e um agricultor. Deles, quatro entraram para o serviço da igreja e um, Paulo Evaristo, é o cardeal Arns.
Há dois anos, Zilda foi a Brasília pedir dinheiro para a Pastoral. Se lhe dessem a certeza de que receberia os recursos de seus convênios em dia, é possível que se desse por satisfeita. Ela conta: "O ministro José Serra perguntou se tínhamos estrutura para receber o dobro do que recebíamos. Eu disse que sim." Hoje a Pastoral recebe R$ 16 milhões do Ministério da Saúde. Esse dinheiro, somado a R$ 2 milhões do projeto Criança Esperança, da Rede Globo, representa 88% de sua receita. Cada criança custa menos de R$ 10 por ano. Segundo Serra, se o trabalho estivesse nas mãos da burocracia, custaria dez vezes mais.
Gastando R$ 16 milhões, o governo de FFHH conseguiu produzir uma rede que reduziu a mortalidade infantil em 28 mil comunidades carentes a 38% da média nacional. É um dos seus maiores sucessos.
O desenvolvimento humano brasileiro vai mal das pernas porque, mesmo havendo a Pastoral da doutora Zilda, não há uma vontade furiosa de derrubar a mortalidade infantil. Pode-se perguntar: o que é uma vontade furiosa?
É o seguinte: neste ano, a Fundação Banco do Brasil dará R$ 1,4 milhão à Pastoral. Pelo que se soube, essa mesma fundação esteve disposta a dar R$ 48,8 milhões para a reforma dos palácios de FFHH (R$ 50 mil só para o real banheiro do Alvorada). Pelo que se sabe, o projeto, que foi dado por morto, já mexeu um dedo.
Vontade furiosa de acabar com os índices africanos de mortalidade infantil é mandar a Fundação do Banco do Brasil entregar um cheque de R$ 48 milhões à doutora Zilda e parar de bajular o rei reformando-lhe palácios.

FMI profético

É fato sabido que os documentos que o governo brasileiro assina com o Fundo Monetário Internacional têm doses variáveis de ficção. No ano passado, por exemplo, estabeleceu-se que 1999 fecharia com um superávit comercial de US$ 11 bilhões. O primeiro semestre fechou com um déficit de US$ 479 milhões e a lorota foi recalculada, para US$ 4 bilhões.
Mesmo assim, esses documentos nunca abrigaram exercícios de quiromancia.
No último compromisso assinado com o FMI, informa-se que, neste semestre, a demanda por moeda será afetada pela CPMF e "pelo problema do ano 2000".
O que isso significa, só Nostradamus sabe.

Dança da cadeira

O professor Alfred Stepan, autor de um livro clássico sobre os militares brasileiros, resolveu deixar sua cátedra na Universidade de Oxford.
Retorna à Universidade de Columbia, onde foi reitor da Escola de Assuntos Internacionais.
O professor Albert Fishlow, que nos anos 70 soou o alarme da má distribuição da renda nacional, deixou o Council on Foreign Relations e vai trabalhar na iniciativa privada.

Ao Sul, tudo. Aos outros, a lei

É falsa a afirmação segundo a qual a prorrogação dos incentivos dados às montadoras que se estabeleceram no Sul do país pode abalar as relações do Brasil com a Argentina dentro do Mercosul.
É verdadeira a suspeita de que, se FFHH bloquear os incentivos que foram dados a indústrias que estão se estabelecendo no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, estará demonstrando má vontade com o Nordeste.
A prorrogação do prazo, que caducou em maio e o Congresso estendeu para o final de dezembro, permitirá a ida da Ford, fugida do Rio Grande, para a Bahia. É um investimento de R$ 1,3 bilhão, podendo gerar até 5.000 empregos.
Os argentinos não têm por que reclamar. Pelos seguintes motivos:
1) a fábrica da Ford não caiu do céu, como o meteorito Bendegó. Ela estava no Rio Grande e vai para a Bahia. Seis por meia dúzia;
2) a Bahia deveria ter recebido a montadora da Asia Motors. Ficou a ver navios porque caiu no conto da globalização. Os coreanos exportaram 200 mil carros para o Brasil e foram embora sem atarraxar um parafuso;
3) a maluquice do Mercosul criou um sistema pelo qual os argentinos vendem 100 mil carros por ano ao Brasil, livres de impostos, enquanto Pindorama só lhes vende a metade.
Uma negociação desse tipo não precisa sequer da intercessão do ministro Luiz Felipe Lampreia, que está jogando golfe na Escócia. É coisa para primeiro-secretário.
A lei aprovada no Congresso dá à Ford isenções de tributos federais que resultam numa virtual isenção de IPI. Além disso, desobrigam-na de cumprir índices de nacionalização, o que pode convertê-la numa maquiadora. Debulhados esses pontos, o que a Bahia dá é pouco mais do que dava o Rio Grande.
Se a fábrica da Ford não for para a Bahia, irá para outro país, e disso FFHH já sabe. Mais difícil do que convencer os argentinos será convencer os brasileiros de que uma montadora deva virar pó porque se esgotou um prazo, como se a Bahia tivesse chegado atrasada à repartição. Até porque o presidente do BNDES, Pio Borges, já disse que, se a Ford voltar para o Rio Grande do Sul, os problemas estão superados.
A lei que o Congresso votou foi redigida e copiada em disquete no Gabinete Civil da Presidência da República. Se FFHH resolver vetá-la, certamente o doutor Clóvis Carvalho poderá preparar outra, melhor.
Vale lembrar que o governo federal está até hoje sentado em cima do projeto de uma refinaria para o Ceará.

Silêncio

Tão cedo o ministro Paulo Renato Souza não volta a falar em reforma ministerial.
Se voltar a fazê-lo, corre o risco de deixar vago o Ministério da Educação.

Vox Dei

Faltam sete pontos percentuais para que o senador José Sarney possa chamar FFHH de irmão. Ao final de sua Presidência, ele gramou uma impopularidade de 60% nas pesquisas de opinião. Nessa época, o senador Cardoso brincava, chamando-o de "a crise". Sarney viveu esse inferno percentual com uma inflação milionária e 16 candidatos a presidente azucrinando-o.
Fechados os números da última pesquisa da popularidade presidencial do Instituto Vox Populi, resultou que 53% dos entrevistados acham o governo de FFHH ruim ou péssimo. Em junho, eram 51% e, em maio, 46% Só 12% acham-no bom ou ótimo.
Com três anos e meio de mandato pela frente, pode-se prever que FFHH melhore. O que preocupa os psicanalistas de povo do Planalto é a percepção de que a queda não acabou.


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