São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 2003 |
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JEQUITINHONHA Porto Coris, um dos 42 grupos que serão reassentados pela Cemig, terá de mudar maneira de lidar com a terra Usina desaloja comunidade quilombola
THIAGO GUIMARÃES DA AGÊNCIA FOLHA, EM LEME DO PRADO (MG) O reassentamento da comunidade quilombola de Porto Coris, no Vale do Jequitinhonha (MG), imposto com a construção da usina hidrelétrica de Irapé, deve alterar uma das principais características distintivas do grupo -o uso e a relação com a terra. Com 200 hectares registrados em 2000, Porto Coris é a primeira comunidade em Minas Gerais a receber o título de remanescente de quilombo, hoje concedido exclusivamente pela FCP (Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura). Ao todo, são 29 comunidades tituladas no país, avaliadas por critérios como história comum e usufruto coletivo da terra, parentescos e casamentos internos, localização e provas documentais. Porto Coris fica à margem do rio Jequitinhonha, na zona rural de Leme do Prado (a 550 km de Belo Horizonte). Está na área de 137 km2 que será submersa pelo reservatório da usina de 360 MW e de R$ 740 milhões, cujo enchimento -que levará de oito meses a dois anos- está previsto para começar em novembro de 2004. Além de escola, cemitério, igreja e um telefone, Porto Coris tem 86 moradores, todos parentes do ex-escravo Germano Alves Coelho, cuja existência é atestada em documento de 1888. Ninguém de fora jamais adquiriu terras na comunidade. Com exceção de uma família, não há registros de direitos individuais. Ali, planta-se amendoim, milho, feijão, mandioca e cana, com ajuda da fertilidade natural das áreas de grota, como são chamados os vales. Grandes áreas ficam para finalidades coletivas, com utilidades marcadas pelo consenso -como produção de madeira ou descanso de terras. Quase não há homens jovens na vila -migrações sazonais para colheita de cana e café no interior de São Paulo são típicas na região. Identidade A existência de quilombolas na área diretamente atingida pela usina tornou-se pública apenas durante o processo de licenciamento ambiental da obra, e a própria reivindicação de reconhecimento da comunidade situa-se no contexto da mobilização da população atingida pela hidrelétrica. A Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) chegou a contestar judicialmente a condição de quilombola de Porto Coris, mas retirou a ação após assinatura, em julho de 2002, de termo de ajustamento de conduta com o MPF (Ministério Público Federal), no qual se compromete com melhoria do ambiente e reconstituição de direitos dos atingidos. Ao todo, 1.128 famílias -cerca de 3.500 pessoas- de 42 comunidades em sete municípios serão reassentadas pela Cemig, que venceu a licitação para exploração da usina por 35 anos. Devido à escassez de terras semelhantes às originais, famílias serão transferidas para ambientes diferentes. É o caso de Porto Coris, cujo destino deve ser a fazenda Mandassaia, área de 2.200 hectares escolhida pelos moradores entre três opções oferecidas. A área é típica representante das terras de chapada -planas, com poucas fontes de água e cultivadas intensivamente. "Lá vai ter de ter adubo, calcário, trator. Vamos ter de nos acostumar, fazer o quê?", diz Maria de Lourdes Borges de Souza, 38, líder da comunidade, prima de Germano Coelho. Segundo Afrânio Nardy, assessor de Meio Ambiente do MPF, a "crítica maior" da Procuradoria está na mudança das famílias para "outro universo de produção agrícola". Para a antropóloga Flávia Galizoni, autora de estudos sobre Porto Coris, a comunidade corre risco de desagregação. "O impacto será irreparável." Porto Coris espera pelo resultado de análises que revelarão quanto há de água na Mandassaia. Já não podem plantar mandioca e cana -não colherão a tempo. Além do título coletivo, os moradores pleiteiam registros individuais de posse, possibilidade descartada extra-oficialmente pelo departamento jurídico da FCP. A líder diz pensar na possibilidade de dispersão de moradores, após fracassos na lavoura. Resume melhor o sentimento dos Coris o mais velho do grupo, neto de Germano Coelho, Pedro de Souza Coelho, 83, respondendo com outra pergunta ao ser questionado sobre a mudança. "Largar onde a gente nasceu e se criou e ir para um deserto, saindo de um lugar de onde nunca saí?" Texto Anterior: Imprensa: ANJ promove congresso de jornais em SP Próximo Texto: Frases Índice |
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