São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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NO PLANALTO

Conheça o mico imobiliário da Previdência

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Golear a seleção de futebol do Haiti, encontrar metáforas infames em discursos do Lula, ouvir promessas vãs no horário eleitoral gratuito, roubar pirulito de criança, nada disso é tão fácil quanto ocupar uma propriedade da Previdência.
Imóvel do INSS é como mulher dos sonhos. Quem possui não quer mais largar. Com uma vantagem: o bem previdenciário proporciona o gozo da posse sem contrapartida.
A despeito da inconsistência atuarial que envenena as suas contas, a Previdência conserva, há quatro décadas, a condição de megaimobiliária. Possui hoje 5.133 imóveis. A soma não traduz o tamanho da encrenca. Um edifício de 22 andares no centro do Recife (PE) entra na conta como uma única unidade, do mesmo modo que um terreno em Petrópolis (RJ).
A fuzarca dos imóveis da Previdência tem suas raízes no período demarcado entre as décadas de 30 e 60. Era o tempo dos "IAPs", os institutos de aposentadoria e pensões. As categorias laborais mais fortes tinham cada uma o seu. Havia o Iapi, dos industriários; o IAPC, dos comerciários; o IAPB, dos bancários etc.
O Brasil era então um país rural. Mercado financeiro nos moldes do atual era coisa inimaginável. Taxas de juros à Malan e Palocci, algo impensável. Restava aos "IAPs" investir o dinheiro recolhido de seus cotistas em imóveis.
Em 1966, um decreto-lei do regime militar acomodou os "IAPs" sob o guarda-chuva de um novo órgão público, o INPS (hoje INSS). Com isso, o Estado assumiu um legado de micos imobiliários. Herdou também, é claro, a obrigação de honrar as aposentadorias e pensões contratadas.
Na década de 80, o INSS se deu conta de que o investimento em imóveis passara a ser inconveniente. Desenvolveu-se o raciocínio, hoje consagrado em lei, de que a Previdência não deveria possuir senão os prédios destinados ao uso próprio. O resto teria de ser vendido. E o dinheiro amealhado, revertido às arcas que bancam a aposentadoria da bugrada.
Um misto de letargia e incompetência prevalecem, porém, sobre a lógica e a lei. Um exemplo: embora vendidos há mais de três décadas, cerca de 20 mil imóveis ainda não foram transferidos aos "novos" donos. A grossa maioria está localizada no Rio de Janeiro. Nos livros cartoriais, a Previdência figura como proprietária.
Há pior: auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União verificou que está podre uma parte expressiva da carteira de 5.133 imóveis que o INSS cataloga como seus. A inspeção concentrou-se na agência central do instituto em São Paulo.
Ali estão registradas 197 propriedades. Só sete abrigam repartições do instituto. As demais estão vazias (76 imóveis), invadidas (35 unidades) ou cedidas, sempre de graça, a órgãos públicos e até a entidades privadas.
Mencione-se, por acintoso, o caso de um naco de terras situado na quadra 7, lotes 3 a 9, da Vila Monumento. Comprou-o, em 1939, o Iapi. No mesmo ano, foi invadido por um tal Esporte Clube Vila Monumento. Na intimidade, chamam-no "Corintinha". Lá permanece até hoje.
Fora dos guarda-volumes da Previdência, o time de várzea é um desconhecido. Não consta do rol de filiados do Sindicato de Clubes Amadores do Estado de São Paulo. Seu nome não foi inscrito nem na lista telefônica. O repórter não logrou encontrar nenhum de seus dirigentes.
A despeito do anonimato, o Vila Monumento viabilizou, 65 anos atrás, o sonho da sede "própria". E o fez sem coçar o bolso. De início, mantinha sobre terreno alheio apenas um par de traves. Com o tempo, ergueu ginásio coberto, arquibancadas e playground.
A Previdência já foi à Justiça duas vezes para reaver o terreno, em 1961 e 1976. Foi vitoriosa nas duas ações. Mas o "Corintinha" não se deu por achado. Em 2000, o terreno foi posto à venda. Não apareceu quem se dispusesse a comprar o problema. Nenhuma palha foi movida desde então.
Casos como esse abundam na agência paulistana do INSS. Há dois prédios invadidos por sem-teto na avenida Nove de Julho; há uma edificação transformada em cortiço na rua Vigário João Alves; há terrenos usurpados pela Prefeitura de São Paulo; há o diabo. Encurta-se a lista para poupar irritação ao leitor.
Compelido pelo trabalho do TCU, o ministro Amir Lando (Previdência) constituiu há três meses um grupo de trabalho para dar cabo do problema. É coordenado por um assessor especial do próprio Lando. Chama-se Paulo Roberto Coelho. "Constatamos que boa parte do patrimônio imobiliário da Previdência é virtual", diz ele. "Há no Rio de Janeiro um terreno sobre o qual surgiu uma favela. Fica no Jardim Carioca, na Ilha do Governador. Ali não entra nem oficial de Justiça para entregar mandado de reintegração de posse. Quem vai comprar uma coisa dessas?"
Servindo-se de estudo que vem sendo desenvolvido pelo INSS desde 2002, Lando decidiu apressar a venda de 1.073 imóveis da Previdência. Serão licitados em breve. Quanto valem? Ninguém sabe. A Caixa Econômica Federal fará uma avaliação. Restarão ainda 4.060 imóveis.
"Vamos fazer uma assepsia nessa área", diz o ministro. Recomenda-se que apresse o passo. Em 1989, o INSS mantinha em carteira cerca de 7.200 imóveis. Em 15 anos, desfez-se de pouco mais de 2.000 propriedades. Nesse ritmo, Lula precisaria de uns sete mandatos de quatro anos para higienizar a carteira imobiliária da Previdência.


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