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LANTERNA NA POPA
Como sair do manicômio fiscal
ROBERTO CAMPOS
Há algum tempo, pensava eu
ser urgentíssima a desconstrução do nosso manicômio fiscal
para corrigir dois males principais: a sonegação fiscal, que divide o país entre "pagantes" e
"caronas", e o alto custo da contratação de mão-de-obra, causando informalização ou desemprego. Hoje há uma terceira
razão, pois a globalização e a digitalização representam uma
"mudança de paradigma". Enfraquece-se enormemente a produtividade dos impostos clássicos sobre produção, circulação e
serviços, relíquias artesanais na
sociedade eletrônica.
Há inúmeras propostas de reformas, filiadas todas a uma das
duas matrizes: a dos "papirófilos", que se limitam à simplificação do sistema declaratório e
documental, e a dos "eletrônicos", que desejam abolir os impostos declaratórios clássicos,
que pressupõem declarações do
contribuinte sobre sua renda,
vendas e serviços, gerando uma
tríplice burocracia: a do contribuinte, a do fisco e a do contencioso jurídico. De um lado aumentam custos e, de outro, facilitam a sonegação.
O principal documento ora na
Câmara é a proposta preliminar
do deputado Mussa Demes, relator da Comissão Especial Sobre Reforma Tributária. É um
esforço de "aperfeiçoamento do
obsoleto", pois substitui o ICMS,
o IPI e o ISS por um novo ICMS,
sob legislação federal e partilhado com os Estados, havendo duplicidade de fiscalização e arrecadação. Se o novo ICMS incorporasse adicionais para substituir as contribuições sociais
-PIS, Cofins e CSSL- a atual
alíquota de 17% teria de ser aumentada, estimulando ainda
mais a sonegação.
A outra vertente da reforma
tributária, a dos "eletrônicos", já
tinha tido um projeto do deputado Luiz Roberto Ponte aprovado em comissão especial.
Nunca foi levado a plenário, até
porque o governo preferia micro-ajustes tópicos a uma radical modernização do sistema.
Felizmente, o deputado Marcos
Cintra apresentou agora na Câmara uma "proposta alternativa" que suaviza a idéia original
do "imposto único" sobre transações financeiras, numa tentativa de conciliação das duas matrizes de pensamento fiscal.
Haveria poucos impostos,
quase todos não-declaratórios.
Preservar-se-iam os atuais tributos sobre a propriedade (IPVA, IPTU, ITR) e também os
impostos regulatórios sobre o comércio exterior e operações financeiras (IOF). Por insistência
dos municípios das capitais, que
dele extraem cerca de 25% de
sua receita, o ISS continuaria
em vigor, abandonando-se a
proposta Demes de um novo imposto sobre vendas no varejo de
custosa coleta e fácil sonegação.
Um grande avanço seria substituir-se a panóplia de contribuições sociais -Cofins, PIS-Pasep,
CSSL e a contribuição patronal
sobre a folha- por um imposto
global sobre transações financeiras, um IMF, escoimado dos defeitos da CPMF.
O IR, no fundo uma safadeza
socialista, porque pune precisamente os mais diligentes e criativos, seria compactado. Ficariam
isentas as pessoas físicas até 20
salários mínimos, abolindo-se
também o IR sobre as pessoas jurídicas. É uma tenaz ilusão pensar que as empresas são pagadoras finais de impostos. Estes recaem sempre sobre pessoas físicas, sejam os acionistas, pela
perda de rendimentos, sejam os
trabalhadores, pela contenção
dos salários, sejam os consumidores, pela alta de preços. No
projeto Coimbra, o lucro somente seria alcançado quando de
sua distribuição às pessoas físicas, para estimular reinversões.
A empregabilidade no setor formal seria encorajada pela abolição da contribuição dos empregadores para o INSS.
Se quisermos uma reforma fiscal profunda e duradoura temos
que levar em consideração os
efeitos da globalização e digitalização. Hoje, uma empresa
transnacional pode escolher realizar seus lucros, ou comprar
seus componentes no país de fiscalidade mais benigna e menos
burocratizada. E como tratar na
regulamentação trabalhista um
"teletrabalhador" que trabalha
para empresas situadas em outro país?
O imposto mais justo não é o
que mais redistribui renda (porque a justiça social se faz melhor
do lado da despesa) e sim o que é
mais insonegável e barato na arrecadação.
O IMF, substituindo a CPMF,
seria o mais adequado a uma
economia digitalizada. Tem sido denegrido no Brasil pelo
"efeito cascata". Mas é uma cascata benigna, porque sua coleta
é desburocratizada e insonegável, em contraste com as cascatas malignas do Cofins e PIS-Pasep. O IMF parecerá mais simpático se interpretado como um
"imposto progressivo", por incidir mais sobre os ricos, que efetuam transações maiores, e
compram produtos sofisticados
de longa escala de produção.
Das objeções à cascata financeira, só duas são relevantes. A
primeira é o efeito negativo sobre as velozes transações de Bolsa. Isso levou o deputado Marcos
Cintra a propor que a tributação só se aplique aos rendimentos efetivamente realizados e
não às aplicações no mercado de
capitais. A outra tem a ver com
o impacto sobre exportações. A
solução para isso é o "reintegro",
admitido pela OMC, isto é, a devolução da carga fiscal média
sobre o produto exportado, calculada segundo matrizes insumo-produto, hoje já disponíveis
no IBGE. Isso é preferível à atual
disputa sobre "compensações
aos Estados exportadores" pela
receita hipotética sacrificada
com a desoneração do ICMS. A
substituição do ICMS por um
imposto seletivo cobrado eletronicamente na fonte, sobre eletricidade, combustíveis, telecomunicações e veículos (acrescido
dos impostos sobre bebidas e fumo) teria várias vantagens: insonegabilidade, desburocratização, automaticidade na entrega
dos recursos, arrecadação eletrônica e compatibilidade com a
era digital. Surpreende-me que
a "proposta alternativa" do deputado Cintra, mais modernizante e simplificadora que as
propostas governamentais absorvidas no relatório Demes, tenha sido tão pouco discutida no
Congresso e na imprensa. Seria
melancólico se na era eletrônica
continuássemos sujeitos à papirofilia dos impostos clássicos.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
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