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INCONSCIENTE ELEITORAL
Carrinhos de brinquedo
MARCELO COELHO
Estamos mais competitivos e
modernos, disse o presidente
Fernando Henrique na abertura
do 22º Salão do Automóvel. Sua
foto, na primeira página do jornal de ontem, parecia contradizer
um pouco o clima de competitividade e excelência industrial que
se pretendia celebrar. O presidente estava de pé numa espécie de
carrinho de golfe, ou quem sabe
uma versão reduzida do papamóvel; devia ser algum tipo de veículo elétrico, projetado para transitar sobre os tapetes vermelhos de
palácios ou salas de exposição.
A imagem remetia, por certo, a
uma famosa foto de Juscelino Kubitschek, acenando de um fusca
sem capota; JK celebrava, em
meados da década de 50, o ingresso do país na era automotiva.
Na mesma edição do jornal, outra foto, outro carrinho, outra autoridade. Participando da chamada "Operação Belezura Centro", a prefeita de São Paulo aparecia sentadinha em uma máquina automotiva denominada "cata-caca". Trata-se de um carrinho que irá aspirar as fezes de cachorro depositadas no calçamento. Aqui, não é o fusca de
Juscelino, mas a vassoura de Jânio Quadros que conhece uma
versão tecno. Não vou lembrar o
chavão de que a história se repete
como farsa, pois provavelmente a
história era até mais farsesca nos
anos 50 do que agora. Em todo
caso, a cultura política do período
pré-64 conhecia a oposição entre
o desenvolvimentismo de Juscelino e a liberal-ortodoxia da UDN.
A aposta de JK foi no planejamento estatal, com relativa despreocupação com os índices inflacionários; o país abriu-se ao capital estrangeiro, mas também
rompeu com o FMI; do ponto de
vista ético, digamos que o PSD
não era composto de vestais.
Quem se fazia de vestal era a
UDN, e se Jânio condecorava Che
Guevara em nome de uma "política externa independente", o
ideário econômico udenista defendia a estabilidade monetária e
menor intervenção estatal.
Passado meio século, os sinais
foram trocados. Investe-se na
imagem de Fernando Henrique
Cardoso como um novo JK. Mas a
obsessão com a estabilidade monetária nada tem de juscelinista,
e hoje os índices de crescimento
do país pouco lembram os "50
anos em 5" de JK.
Por sua vez, Marta Suplicy foi
eleita com a bandeira da moralidade pública, antes empunhada
pelo janismo com mãos incertas; e
Jânio não desagradaria ao PT
propondo uma política externa
de não-alinhamento.
Mas o fantasma de Jânio Quadros passou longe da campanha.
No máximo, apareceu de forma
espasmódica, agonística, no discurso de Enéas.
O discurso de Lula é desenvolvimentista; o de Serra também.
Mas, assim como nos gráficos
meio humorísticos que mostram
os candidatos pilotando seus
aviõezinhos coloridos no sobe-e-desce das pesquisas, imagino Serra e Lula, como FHC e Marta,
aboletados cada qual num carrinho de brinquedo. Acenam para
a história e contemplam o futuro;
o veículo em que se deslocam não
sei se terá, contudo, grande autonomia para seguir seu rumo.
O inegável é que nosso presidente mais modernizante continua sendo Juscelino, nossa década de ouro a de 1950, e quanto
mais se fala em superar os "ranços do passado populista" e coisas
do gênero, mais se evoca aquele
mesmo passado como uma promessa a ser cumprida. Penso no
homem maduro que, num acesso
de nostalgia ou de falsa inocência, entra num parque de diversões para brincar de carrinho e
andar na roda-gigante. Depois,
recupera-se do surto infantil e vai
negociar com o FMI.
MARCELO COELHO, colunista da Folha,
escreve aos sábados
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