São Paulo, sábado, 12 de outubro de 2002

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INCONSCIENTE ELEITORAL

Carrinhos de brinquedo

MARCELO COELHO

Estamos mais competitivos e modernos, disse o presidente Fernando Henrique na abertura do 22º Salão do Automóvel. Sua foto, na primeira página do jornal de ontem, parecia contradizer um pouco o clima de competitividade e excelência industrial que se pretendia celebrar. O presidente estava de pé numa espécie de carrinho de golfe, ou quem sabe uma versão reduzida do papamóvel; devia ser algum tipo de veículo elétrico, projetado para transitar sobre os tapetes vermelhos de palácios ou salas de exposição.
A imagem remetia, por certo, a uma famosa foto de Juscelino Kubitschek, acenando de um fusca sem capota; JK celebrava, em meados da década de 50, o ingresso do país na era automotiva.
Na mesma edição do jornal, outra foto, outro carrinho, outra autoridade. Participando da chamada "Operação Belezura Centro", a prefeita de São Paulo aparecia sentadinha em uma máquina automotiva denominada "cata-caca". Trata-se de um carrinho que irá aspirar as fezes de cachorro depositadas no calçamento. Aqui, não é o fusca de Juscelino, mas a vassoura de Jânio Quadros que conhece uma versão tecno. Não vou lembrar o chavão de que a história se repete como farsa, pois provavelmente a história era até mais farsesca nos anos 50 do que agora. Em todo caso, a cultura política do período pré-64 conhecia a oposição entre o desenvolvimentismo de Juscelino e a liberal-ortodoxia da UDN.
A aposta de JK foi no planejamento estatal, com relativa despreocupação com os índices inflacionários; o país abriu-se ao capital estrangeiro, mas também rompeu com o FMI; do ponto de vista ético, digamos que o PSD não era composto de vestais.
Quem se fazia de vestal era a UDN, e se Jânio condecorava Che Guevara em nome de uma "política externa independente", o ideário econômico udenista defendia a estabilidade monetária e menor intervenção estatal.
Passado meio século, os sinais foram trocados. Investe-se na imagem de Fernando Henrique Cardoso como um novo JK. Mas a obsessão com a estabilidade monetária nada tem de juscelinista, e hoje os índices de crescimento do país pouco lembram os "50 anos em 5" de JK.
Por sua vez, Marta Suplicy foi eleita com a bandeira da moralidade pública, antes empunhada pelo janismo com mãos incertas; e Jânio não desagradaria ao PT propondo uma política externa de não-alinhamento.
Mas o fantasma de Jânio Quadros passou longe da campanha. No máximo, apareceu de forma espasmódica, agonística, no discurso de Enéas.
O discurso de Lula é desenvolvimentista; o de Serra também. Mas, assim como nos gráficos meio humorísticos que mostram os candidatos pilotando seus aviõezinhos coloridos no sobe-e-desce das pesquisas, imagino Serra e Lula, como FHC e Marta, aboletados cada qual num carrinho de brinquedo. Acenam para a história e contemplam o futuro; o veículo em que se deslocam não sei se terá, contudo, grande autonomia para seguir seu rumo.
O inegável é que nosso presidente mais modernizante continua sendo Juscelino, nossa década de ouro a de 1950, e quanto mais se fala em superar os "ranços do passado populista" e coisas do gênero, mais se evoca aquele mesmo passado como uma promessa a ser cumprida. Penso no homem maduro que, num acesso de nostalgia ou de falsa inocência, entra num parque de diversões para brincar de carrinho e andar na roda-gigante. Depois, recupera-se do surto infantil e vai negociar com o FMI.


MARCELO COELHO, colunista da Folha, escreve aos sábados



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