São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2000

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ELIO GASPARI

O povo, acredite, não tem cheiro

É duro o dilema dos tucanos. Querem ficar com cheiro de povo, mas, à falta de uma boa marca com esse nome, saem de casa cheirando a Davidoff (cada dia mais aguada), Brooks Brothers (um pouco forte) ou Eau Sauvage (coisa da geração de 68 que se manteve no primeiro casamento). Como povo não tem cheiro e as boas casas do ramo ainda não lançaram uma colônia que lhe resolva o problema, o tucanato poderia pelo menos parar de enganar o povo cujo cheiro persegue.
Durante a campanha eleitoral, num lance de triste demagogia, o Planalto divulgou uma nota oficial informando que o governo estava disposto a ressarcir os cidadãos tungados pelos planos econômicos dos governos Sarney e Collor. Falso como um voto de Palm Beach em Pat Buchanan.
O ministro Francisco Dornelles informou que o Tesouro não tem como pagar uma conta que estimou em R$ 40 bilhões. Falso como dois votos de Palm Beach.
Com apenas R$ 5 bilhões o governo pode ressarcir integralmente (com dinheiro na mão) cerca de 80% dos tungados em até R$ 500. Algo como 35 milhões de vítimas. Dornelles deve saber disso. Se não souber, basta ligar para a Caixa Econômica.
Nos governos Sarney e Collor, os trabalhadores foram tungados. No de FFHH, os eleitores foram enganados.

O trato com a pobreza, estudado a sério

Quem estiver interessado em discutir a sério os programas de combate à pobreza em geral e os efeitos da propagação do Bolsa-Escola em particular, deve caçar uma cópia do estudo de 133 páginas que a professora Lena Lavinas fez sobre o funcionamento da iniciativa em Recife. Uma equipe de sete pessoas radiografou a estrutura e os resultados do programa, instituído na cidade em 1997. Coisa modesta, porém séria, nada a ver com a distribuição de cheques a evangélicos, distorção instituída no governinho de Anthony Garotão.
O programa atende 1.600 famílias que vivem na indigência e lhes dá entre meio e um salário mínimo por manterem 3.000 crianças na escola, com um compromisso de comparecimento mensal de 90%. Não é pesquisa baseada em amostragem. É o resultado de um corpo-a-corpo que lidou com a situação de cada família.
A conclusão surpreendente, capaz de alegrar aqueles que acham bobagem gastar dinheiro com pobre, é a seguinte: "A bolsa não afeta o desempenho escolar. Em outras palavras, tem impacto nulo na melhoria do aprendizado das crianças, muito embora tenha sido constatado nas seções prévias desta pesquisa que a obtenção da bolsa mobiliza positivamente as famílias e as escolas em favor da escolaridade das suas crianças".
Essa descoberta só torna o estudo mais interessante e provocador. Demonstra que a bolsa "quebra os mecanismos usados tradicionalmente pela escola para excluir os alunos mais pobres". Ou seja, o buraco estava muito mais embaixo. Sem a bolsa, as crianças continuariam sendo defenestradas.
É comum acreditar-se que os incentivos em dinheiro acabam virando um estímulo à vadiagem. Talvez isso seja uma verdade no topo do andar de cima. Na base do andar de baixo ocorre o contrário. Na miséria de Recife, num universo onde metade dos adultos da casa beneficiada são analfabetos ou semi-alfabetizados, ocorreu o seguinte:
"A renda familiar extra-benefício aumentou significativamente durante o primeiro ano de permanência das famílias no programa, apesar de enfrentarem condições extremamente adversas de inserção no mercado de trabalho". (...) "Cresceu o nível de ocupação e cresceu o patamar mínimo de segurança econômica das famílias beneficiadas, numa conjuntura ainda francamente recessiva. Graças ao benefício mensal, recebido ao longo de um ano, mais de dois terços das famílias envolvidas no Programa Bolsa-Escola puderam ultrapassar a linha da indigência e reduzir seu grau de precariedade".
O programa de Recife custa à prefeitura R$ 1,7 milhão por ano, equivalente a 0,3% do seu orçamento. Se esse percentual fosse elevado para 2%, seria possível amparar 80% das famílias miseráveis da cidade. Recife não tem dinheiro para bancar essa despesa. Só poderia fazê-lo com socorro federal.

In Portuguese

Bem que o doutor Armínio Fraga poderia nacionalizar os serviços de pesquisas econômicas do Banco Central. Seu corpo técnico publica uma carta diária chamada "Focus Reports". É uma competente análise de dados públicos da economia brasileira e tem clientes em 54 países. Quem quiser pode recebê-la gratuitamente, bastando cadastrar-se. Sua impropriedade está no idioma de seu economês. Só existe em inglês.
O BC, bem como o Proer, é sustentado pela patuléia monoglota que fala português. Pouco custaria contratar dois brasileiros desempregados pela taxa de juros mais alta do mundo. Eles traduziriam a "Foco" e ficaria todo mundo "happy", inclusive os "ministers" que não falam "english".

A outra voz

O aparecimento, na Internet, de alguns capítulos do livro "Terrorismo Nunca Mais", preparado no final dos anos 80 por ordem do ministro Leônidas Pires Gonçalves, poderá resultar na edição integral do trabalho. Trata-se da primeira versão articulada dos militares que combateram a esquerda armada durante a ditadura militar.
O general Leônidas, autor da idéia e do título, abriu os arquivos do CIE à pesquisa interna e, à época, decidiu manter o trabalho na gaveta. Fez assim porque julgou inconveniente reabrir velhas feridas. Passados mais de dez anos, certo de que o esforço de pesquisa deu certo, Leônidas acha que o trabalho já pode ser divulgado na íntegra, até mesmo sob a forma de livro.

A culpa pela fraude é sempre dos outros

A consultora KPMG divulgou um relatório de pesquisa intitulado "A Fraude no Brasil". Trabalhou num universo de executivos de mil empresas brasileiras com faturamentos que oscilaram de R$ 50 milhões a mais de R$ 5 bilhões e produziu um preocupante retrato dessa elite empresarial.
Oito em cada dez executivos reconheceram que suas empresas já foram fraudadas. A maioria (64%) acredita que as fraudes vão aumentar. Diante de uma lista de respostas múltiplas, 69% atribuíram esse cenário à "perda de valores morais e sociais".
Admitindo-se, por óbvio, que nenhum executivo acha que foram os seus próprios valores morais e sociais que decaíram, haveria algo de errado com o mundo dos funcionários.
Indo-se adiante no exame dos resultados, vê-se (sempre com respostas múltiplas) que 70% dos entrevistados identificam a origem das fraudes na insuficiência dos sistemas de controles internos. Pior: 21% acreditam que elas derivam da supressão de controles existentes. Quando as maracutaias foram descobertas, o problema foi quase sempre resolvido com a demissão voluntária do malfeitor (77%). Os casos de queixa criminal foram 34% e os de indenização apenas 13%.
A maioria das empresas (93%) informou que planeja melhorar os seus controles internos, mas só 39% mostraram-se interessadas na verificação dos antecedentes do novos funcionários de alto escalão.
Mundinho divertido esse. O executivo vive numa empresa que trabalha num regime precário de controles, não dá queixa à polícia quando apanha um fraudador e acha que os valores morais e sociais dos outros estão decaindo. Devem levar uma vida muito difícil, trabalhando com gente que respeitam menos do que deveriam.

Pistolão
Depois de muitas perguntas chegou-se à identidade do funcionário da ekipekonômica que batalhou duramente junto ao BNDES para que autorizasse um financiamento de R$ 76 milhões para a Prefeitura de Fortaleza. O crédito, usado em obras pelo prefeito Juracy Magalhães, engrandeceu sua administração e enfureceu Ciro Gomes. Por conta de seus efeitos chegou a chamar FFHH de "mau caráter".
O pedido, vindo do Ministério da Fazenda, contrariou a equipe técnica do BNDES. Agora sabe-se que na outra ponta dos telefonemas esteve o secretário-executivo do ministério, Amaury Bier. Se havia outra autoridade na extensão, manteve-se calada.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota. Assombrou-se com a idéia de o PSDB ficar com "cheiro de povo". Por vagabundo, simulou o que aconteceria com dois cidadãos caso prosperasse a proposta de tunga do Imposto de Renda pela imposição de uma alíquota única de 7,7% e pela supressão das deduções.
Com cerca de R$ 13 mil de renda mensal, sem dependentes, o idiota acredita que FFHH deve pagar hoje pelo menos R$ 31,7 mil. Pelo novo sistema, pagaria R$ 11,1 mil. Uma redução de 64%.
Uma bibliotecária do serviço público, nível A-3, com dois dependentes e em fim de carreira, tem R$ 1.363,18 de renda mensal. Paga R$ 239,81. Passaria a pagar R$ 427,98. Um acréscimo de 78%.
Eremildo leu que FFHH acha que faz parte da classe média e, por isso, informa que não pretende prejudicá-la. Ele teme que a bibliotecária seja catalogada na classe dos marcianos e o doutor Everardo Maciel lhe leve a bolsa.

Dr. Covas
Foi o governador Mário Covas quem convenceu os médicos de que tinha algum problema na pélvis, e não o contrário.
As tomografias e os exames de ultra-som diziam que ele nada tinha. Os médicos diziam-lhe que era tudo sugestão, mas Covas tanto insistiu até que foi levado a um novo exame e o tumor foi percebido.

Boa notícia
FFHH está acumulando energia política. Ele sabe que ao final do seu governo deixará dez dos 26 Estados brasileiros inteiramente eletrificados. Mais: se o programa que pôs em andamento não descarrilhar, em 2005 todo o país estará eletrificado.

ENTREVISTA

Lincoln Gordon

(87 anos, embaixador no Brasil de 1962 a 1967)
- O senhor achou que ia viver uma situação como a que os americanos estão vivendo desde quarta-feira? Como é que se sai dessa?
- Nunca. Se alguém fizesse um romance com esse cenário seria considerado um primitivo. A idéia de ter um presidente com minoria no voto popular nunca me incomodou, pois o sistema do colégio eleitoral tem a sua lógica. A idéia do país voltado para a conferência de alguns milhares de votos era algo difícil de supor. Como se sai, não sei. O pior cenário é o de uma batalha judicial. O melhor, que me parece possível, é a vitória de Al Gore. Os votos dos eleitores da Flórida que vivem no exterior podem não ser tão favoráveis a Bush quanto se vem dizendo. Os dos militares incluem oficiais e praças. Eles não votam da mesma maneira. Além deles há os votos dos eleitores que, aposentados, foram morar em Israel. Na maioria são mulheres. Eu me arrisco a dizer que esses votos irão preferencialmente para Al Gore. Podemos também chegar a uma nova eleição na Flórida. Hoje eu li no "The Washington Post" que todos os juízes da Corte Suprema desse Estado são democratas. Como você vê, quanto mais se examina a situação, mais complicada ela fica.
- Em quem o senhor votou? Por quê?
- Eu sou um democrata de carteirinha, como vocês dizem no Brasil. Fui criado no grande debate aberto por Franklin Roosevelt. Lembro perfeitamente o dia em que o vi fazendo campanha no meu colégio, em 1932. Desde 1934 só votei em candidatos a presidente do Partido Democrata. Votei em Gore porque, além das diferenças partidárias, não concordo com o projeto de política externa de Bush. Ele quer que os Estados Unidos se retraiam. Essa "estratégia de saída" é um equívoco, comprovado desde o dia em que os japoneses atacaram Pearl Harbor. Nos próximos ano o mundo terá grandes problemas políticos, étnicos e humanitários. Os Estados Unidos não podem decidir se afastar do mundo. Além disso, acho que Gore é mais preparado que Bush e tenho a esperança de que ele nomeie o senador George Mitchell para a Secretaria de Estado. Trata-se do homem que lançou a base da paz na Irlanda.
- Qual dos dois é o melhor para o Brasil?
- Bush vai apressar a formação da zona de livre comércio, a Alca. Eu acho que ela será uma coisa boa para o Brasil. Nesse sentido e também no da sua posição em relação ao comércio internacional, Bush traria vantagens. Em outros aspectos, mais profundos, Gore seria melhor. Seu internacionalismo dará mais voz ao Brasil. Também fortalecerá (ou impedirá o enfraquecimento) do Banco Mundial e do BID. A meu ver as dificuldades previsíveis numa presidência de Gore poderão ser superadas. A questão do meio ambiente, por exemplo, separa muito menos do que se pensa, pois o Brasil tem compromisso com a preservação ambiental. Um exemplo disso está no próprio vigor dos movimentos ecológicos brasileiros.


Nome do problema

A estreita ligação que se construiu com a economia argentina já tem nome para alguns críticos da política de concessões praticada pelo Brasil no Mercosul: "Abraço em afogado".


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