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Utopia liberal chega à sua
fase totalitária, diz Fiori
Raio X
Nome: José Luís Fiori
Cargo: Professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ
Obras: "Em Busca do
Dissenso Perdido"; "O Vôo da Coruja"; "Os
Moedeiros Falsos"; "Poder e Dinheiro"
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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Não há fim das utopias, fim da
modernidade nem fim das ideologias. Assiste-se hoje à realização da
primeira das utopias modernas, a
liberal, que agora entra em sua fase totalitária, a exemplo do que
aconteceu com o nacionalismo e
com o comunismo, que degeneraram no nazismo e no stalinismo.
O cientista político José Luís Fiori é o autor dessas idéias. Vai expô-las no seminário internacional
"Globalização: o Fato e o Mito",
que começa hoje e termina quarta
na Universidade Estadual do Rio
de Janeiro -informações pelos
tels. (021) 587-7303 e 587-7540.
O evento marca o lançamento de
mais seis volumes da coleção Zero
à Esquerda, da editora Vozes, dirigida pelo filósofo Paulo Arantes,
outro convidado do encontro.
Fiori inclui o Brasil de Fernando
Henrique Cardoso no rol de países
que estão na rota do liberalismo
totalitário. Diz também que o governo está hoje próximo do
meio-fio e que, a longo prazo,
FHC se tornará um personagem
grotesco da nossa história.
Folha - Os nomes do seminário
são de primeira linha, mas não há
voz dissonante, ou, no caso, alguém que represente o pensamento hegemônico. Tornou-se impossível debater com o tucanato? Não
há intelectuais governistas? São
todos áulicos? Um evento assim
não corre o risco de se transformar
em reunião de patota?
José Luís Fiori - Não creio que
há no país neste momento intelectuais governistas em condições de
discutir histórica, empírica ou teoricamente o problema da globalização, a não ser nos termos da generalidade corrente. O próprio sociólogo-presidente hoje só fala generalidades sobre o assunto. Os tucanos mais honestos devem estar
um pouco retirados em seus conventos, esperando melhores ventos. O governo Cardoso nunca esteve tão vazio de idéias e propostas
e tão próximo do meio-fio. Alguns
são de fato áulicos sem idéias próprias, que se dedicam ao comezinho esforço -em geral financiado
pelo próprio governo- de tentar
descobrir alguma "racionália" que
explique a trajetória de seu líder
até o ponto de andar de braços dados com gente como (Renan) Calheiros, (Iris) Rezende etc. Não
acredito mais, além disso, nesses
seminários "pluralistas", que agora são feitos aos montões pelos tucanos. Convida-se todo o mundo e
ninguém ouve ninguém. Depois,
todos vão muito civilizadinhos para casa. Este seminário foi pensado
de maneira diferente, como um
pequeno curso. Os participantes
não pensam a mesma coisa, pelo
contrário, têm divergências teóricas grandes. Mas todos são críticos
dessa onda neoliberal, isto sim. Ali
ninguém mais se dedica a deblaterar coisas que o presidente costuma falar em suas tertúlias e divagações diletantes, tipo "globalização
é igual a renascimento".
Folha - O sr. vai sugerir no seminário uma tese algo paradoxal de
que o liberalismo, hoje triunfante
no mundo, apesar dos esboços de
reação aqui e acolá, estaria entrando numa fase totalitária. Isso não
soa como contradição em termos,
liberalismo totalitário?
Fiori - O modelo de desenvolvimento capitalista da maior parte
da Ásia era o único espaço de dissonância, marcadamente mercantilista ou mesmo nacionalista, com
relação ao modelo liberal anglo-saxão de organização capitalista. Neste sentido, o fundamentalismo liberal do FMI e do governo norte-americano, recentemente aplicado à Ásia, deve ser relido
também na forma de uma cruzada
asiática, ou de um ataque da utopia liberal ao último baluarte das
forças hereges da utopia nacionalista. Para entender isso, é preciso
levar em conta uma realidade mais
ampla, que vem se consolidando
depois do fim da URSS e do bombardeio eletrônico de Bagdá. Pode-se falar no enraizamento de um
novo sistema político-ideológico
de vocação global e totalitária.
Fala-se muito em fim das utopias, da modernidade etc. Estamos
no entanto em plena modernidade
e sob a égide de sua primeira utopia. É como se tivesse chegado a
hora e a vez de viver o momento
totalitário da última das utopias
modernas: a utopia liberal. Parece,
sim, uma contradição em termos,
mas, no seu devido tempo, foi um
completo contra-senso falar de totalitarismo comunista ou de nacional-socialismo, e, no entanto,
todos conhecem e deploram a história do stalinismo e do nazismo.
Liberalismo, socialismo e nacionalismo deram contribuições decisivas para a destruição dos antigos regimes e para a construção
das bases ideológicas, políticas e
materiais da face igualitária e libertária do mundo moderno. Mas
foram essas mesmas utopias que
no século 20 deram lugar a regimes
que a filósofa Hannah Arendt caracterizou como totalitários. Regimes impostos em nome de axiomas simples e abstratos, rigorosamente irreais, mas sustentados
por construções teóricas aparentemente científicas e irrefutáveis, a
partir de idéias puras como "classe", "partido", "nação" ou "povo".
Pois bem, estamos começando a
viver o que nos faltava: a fase totalitária do liberalismo. É preciso
uma nova Hannah Arendt para fazer a fenomenologia disso.
Folha - Quais os sintomas que lhe
permitem falar em totalitarismo
nesse último caso? Afinal, temos
eleições, liberdade de imprensa,
democracia por toda a parte e aparentemente cada vez mais.
Fiori - A ilusão de uma terceira
onda democrática tem dado lugar
a uma rápida decepção, que aparece sob a forma de "melancolia democrática". A contrapartida liberal das idéias utópicas e axiomáticas do nazismo e do stalinismo é a
entronização de idéias como "indivíduo racional", "mercado desregulado, competitivo e eficiente",
"Estado mínimo" etc. Com uma
diferença fundamental: naqueles
casos, foi essencial a presença de
um poder político e policial de tipo
nacional. O rolo compressor da
utopia liberal não precisa disso. O
poder do capital vai dissolvendo o
conteúdo substantivo da vida política; os poderes executivos corrompem ou esvaziam os poderes
legislativos; os processos eleitorais
se transformam numa competição
empresarial ou num business como outro qualquer. O resto é purpurina que sobrou de Carnavais
passados. Por isso Tony Blair pode
propor ao sr. Clinton a criação de
uma internacional de centro-esquerda, apesar de suas idéias serem praticamente as mesmas de
seus antecessores de direita.
Folha - Fernando Henrique também foi convidado para participar
dessa "internacional".
Fiori - Este governo é apenas
um exemplo disso que falamos.
Em nome do indivíduo racional,
vão sendo atacadas formas conhecidas e tradicionais de solidariedade. Todas são transformadas na
mesma peste: o corporativismo
egoísta. O sucateamento dos patrimônios públicos, a destruição dos
direitos sociais e dos salários, a
precarização das relações de trabalho e o corte dos gastos públicos,
sobretudo na área social, são medidas políticas sempre consideraras insuficientes frente ao desiderato utópico. Sempre faltarão novas reformas para serem feitas e
corporativismos para serem destruídos. Por este caminho é que
vão também se configurando os
novos judeus atropelados, marginalizados, excluídos e mortos pelo
avanço implacável da máquina totalitária liberal.
Folha - Então não há saídas?
Fiori - Todo o mundo repete isso. É uma bobagem. O que não há é
poder para viabilizar alternativas.
As forças divergentes foram derrotadas e estão se recuperando muito
lentamente. Não há suficiente poder alternativo. É por isso que o
presidente Cardoso pode se dar ao
luxo de ofender a sensibilidade das
pessoas mais conscientes. Ele sabe
que com esse ministério espantoso
está inviabilizada qualquer candidatura ao centro e à direita. O resto
ele confia que será esquecido, não
por seus dotes, mas porque o rolo
compressor corre a seu favor. A
longo prazo, talvez ele acabe se
transformando num personagem
grotesco da nossa história.
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