São Paulo, segunda, 13 de abril de 1998

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Utopia liberal chega à sua fase totalitária, diz Fiori


Raio X

Nome: José Luís Fiori
Cargo: Professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ
Obras: "Em Busca do Dissenso Perdido"; "O Vôo da Coruja"; "Os Moedeiros Falsos"; "Poder e Dinheiro"



FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Não há fim das utopias, fim da modernidade nem fim das ideologias. Assiste-se hoje à realização da primeira das utopias modernas, a liberal, que agora entra em sua fase totalitária, a exemplo do que aconteceu com o nacionalismo e com o comunismo, que degeneraram no nazismo e no stalinismo.
O cientista político José Luís Fiori é o autor dessas idéias. Vai expô-las no seminário internacional "Globalização: o Fato e o Mito", que começa hoje e termina quarta na Universidade Estadual do Rio de Janeiro -informações pelos tels. (021) 587-7303 e 587-7540.
O evento marca o lançamento de mais seis volumes da coleção Zero à Esquerda, da editora Vozes, dirigida pelo filósofo Paulo Arantes, outro convidado do encontro.
Fiori inclui o Brasil de Fernando Henrique Cardoso no rol de países que estão na rota do liberalismo totalitário. Diz também que o governo está hoje próximo do meio-fio e que, a longo prazo, FHC se tornará um personagem grotesco da nossa história.

Folha - Os nomes do seminário são de primeira linha, mas não há voz dissonante, ou, no caso, alguém que represente o pensamento hegemônico. Tornou-se impossível debater com o tucanato? Não há intelectuais governistas? São todos áulicos? Um evento assim não corre o risco de se transformar em reunião de patota?
José Luís Fiori -
Não creio que há no país neste momento intelectuais governistas em condições de discutir histórica, empírica ou teoricamente o problema da globalização, a não ser nos termos da generalidade corrente. O próprio sociólogo-presidente hoje só fala generalidades sobre o assunto. Os tucanos mais honestos devem estar um pouco retirados em seus conventos, esperando melhores ventos. O governo Cardoso nunca esteve tão vazio de idéias e propostas e tão próximo do meio-fio. Alguns são de fato áulicos sem idéias próprias, que se dedicam ao comezinho esforço -em geral financiado pelo próprio governo- de tentar descobrir alguma "racionália" que explique a trajetória de seu líder até o ponto de andar de braços dados com gente como (Renan) Calheiros, (Iris) Rezende etc. Não acredito mais, além disso, nesses seminários "pluralistas", que agora são feitos aos montões pelos tucanos. Convida-se todo o mundo e ninguém ouve ninguém. Depois, todos vão muito civilizadinhos para casa. Este seminário foi pensado de maneira diferente, como um pequeno curso. Os participantes não pensam a mesma coisa, pelo contrário, têm divergências teóricas grandes. Mas todos são críticos dessa onda neoliberal, isto sim. Ali ninguém mais se dedica a deblaterar coisas que o presidente costuma falar em suas tertúlias e divagações diletantes, tipo "globalização é igual a renascimento".
Folha - O sr. vai sugerir no seminário uma tese algo paradoxal de que o liberalismo, hoje triunfante no mundo, apesar dos esboços de reação aqui e acolá, estaria entrando numa fase totalitária. Isso não soa como contradição em termos, liberalismo totalitário?
Fiori -
O modelo de desenvolvimento capitalista da maior parte da Ásia era o único espaço de dissonância, marcadamente mercantilista ou mesmo nacionalista, com relação ao modelo liberal anglo-saxão de organização capitalista. Neste sentido, o fundamentalismo liberal do FMI e do governo norte-americano, recentemente aplicado à Ásia, deve ser relido também na forma de uma cruzada asiática, ou de um ataque da utopia liberal ao último baluarte das forças hereges da utopia nacionalista. Para entender isso, é preciso levar em conta uma realidade mais ampla, que vem se consolidando depois do fim da URSS e do bombardeio eletrônico de Bagdá. Pode-se falar no enraizamento de um novo sistema político-ideológico de vocação global e totalitária.
Fala-se muito em fim das utopias, da modernidade etc. Estamos no entanto em plena modernidade e sob a égide de sua primeira utopia. É como se tivesse chegado a hora e a vez de viver o momento totalitário da última das utopias modernas: a utopia liberal. Parece, sim, uma contradição em termos, mas, no seu devido tempo, foi um completo contra-senso falar de totalitarismo comunista ou de nacional-socialismo, e, no entanto, todos conhecem e deploram a história do stalinismo e do nazismo.
Liberalismo, socialismo e nacionalismo deram contribuições decisivas para a destruição dos antigos regimes e para a construção das bases ideológicas, políticas e materiais da face igualitária e libertária do mundo moderno. Mas foram essas mesmas utopias que no século 20 deram lugar a regimes que a filósofa Hannah Arendt caracterizou como totalitários. Regimes impostos em nome de axiomas simples e abstratos, rigorosamente irreais, mas sustentados por construções teóricas aparentemente científicas e irrefutáveis, a partir de idéias puras como "classe", "partido", "nação" ou "povo". Pois bem, estamos começando a viver o que nos faltava: a fase totalitária do liberalismo. É preciso uma nova Hannah Arendt para fazer a fenomenologia disso.
Folha - Quais os sintomas que lhe permitem falar em totalitarismo nesse último caso? Afinal, temos eleições, liberdade de imprensa, democracia por toda a parte e aparentemente cada vez mais.
Fiori -
A ilusão de uma terceira onda democrática tem dado lugar a uma rápida decepção, que aparece sob a forma de "melancolia democrática". A contrapartida liberal das idéias utópicas e axiomáticas do nazismo e do stalinismo é a entronização de idéias como "indivíduo racional", "mercado desregulado, competitivo e eficiente", "Estado mínimo" etc. Com uma diferença fundamental: naqueles casos, foi essencial a presença de um poder político e policial de tipo nacional. O rolo compressor da utopia liberal não precisa disso. O poder do capital vai dissolvendo o conteúdo substantivo da vida política; os poderes executivos corrompem ou esvaziam os poderes legislativos; os processos eleitorais se transformam numa competição empresarial ou num business como outro qualquer. O resto é purpurina que sobrou de Carnavais passados. Por isso Tony Blair pode propor ao sr. Clinton a criação de uma internacional de centro-esquerda, apesar de suas idéias serem praticamente as mesmas de seus antecessores de direita.
Folha - Fernando Henrique também foi convidado para participar dessa "internacional".
Fiori -
Este governo é apenas um exemplo disso que falamos. Em nome do indivíduo racional, vão sendo atacadas formas conhecidas e tradicionais de solidariedade. Todas são transformadas na mesma peste: o corporativismo egoísta. O sucateamento dos patrimônios públicos, a destruição dos direitos sociais e dos salários, a precarização das relações de trabalho e o corte dos gastos públicos, sobretudo na área social, são medidas políticas sempre consideraras insuficientes frente ao desiderato utópico. Sempre faltarão novas reformas para serem feitas e corporativismos para serem destruídos. Por este caminho é que vão também se configurando os novos judeus atropelados, marginalizados, excluídos e mortos pelo avanço implacável da máquina totalitária liberal.
Folha - Então não há saídas?
Fiori -
Todo o mundo repete isso. É uma bobagem. O que não há é poder para viabilizar alternativas. As forças divergentes foram derrotadas e estão se recuperando muito lentamente. Não há suficiente poder alternativo. É por isso que o presidente Cardoso pode se dar ao luxo de ofender a sensibilidade das pessoas mais conscientes. Ele sabe que com esse ministério espantoso está inviabilizada qualquer candidatura ao centro e à direita. O resto ele confia que será esquecido, não por seus dotes, mas porque o rolo compressor corre a seu favor. A longo prazo, talvez ele acabe se transformando num personagem grotesco da nossa história.



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