São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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RELIGIÃO

Nos primeiros anos da República, cultos lotavam templo, que hoje é apenas depositário de relíquias nacionais

Decadente, igreja positivista faz 120 anos

Américo Vermelho/Folha Imagem
O positivista Danton Voltaire durante culto no Templo da Humanidade, na Glória, zona sul do Rio


ANTONIO CARLOS DE FARIA
DA SUCURSAL DO RIO

Reverente, Danton Voltaire Pereira de Souza, 70, abre uma das salas do Templo da Humanidade e revela a mais importante das relíquias do local, o protótipo da bandeira nacional, desenhado por Décio Vilares, em 1889.
O dístico da bandeira, "Ordem e Progresso", mostra que as idéias do criador do positivismo -o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857)- ainda continuam resistindo, embora sua expressão religiosa, a Igreja Positivista do Brasil, agonize.
A igreja completa 120 anos nesta semana. No seu auge, nos primeiros anos da República, os cultos costumavam lotar o Templo da Humanidade, na Glória (zona sul), que comporta mais de 200 pessoas. Os integrantes eram também homens influentes do novo regime. No último domingo, apenas dez seguidores ouviram a prédica de Souza, que preside a instituição.
Didático, ele expôs a base da doutrina dessa religião, onde não há um culto a um deus onipotente. A adoração é feita à humanidade, entidade coletiva formada pelos seres humanos que contribuíram para o progresso da civilização. O positivistas religiosos não acreditam na eternidade da alma, porém cultuam os mortos pelo legado que deixaram para a cultura humana. "Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos" é outra máxima de Comte.
Quem vai ao templo pode lê-la logo no pórtico que antecede a construção e também em seu interior, em um estandarte que lembra os apetrechos católicos.
As semelhanças não param por aí. Nas laterais da grande nave, no lugar de imagens de santos, há bustos de filósofos, cientistas e artistas que foram apontados por Comte como grandes expressões do pensamento humano. Entre eles, o representante da intelectualidade cristã é são Paulo, reverenciado como o codificador do cristianismo.
No altar, há a imagem de uma mulher, pintada aos 30 anos, segurando uma criança. É a personificação da humanidade, que tem aos pés um busto do seu idealizador, o próprio Comte. Sob essas duas figuras, fica o parlatório, de onde Souza fala para a assembléia de fiéis.
Ele, que aderiu à igreja em 1986, é filho de presbiterianos que admiravam os pensadores franceses, daí os nomes de Danton e Voltaire. Engenheiro e professor de física aposentado da Escola Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tem vários pastores na família e se tornou, a seu modo, também um líder religioso.
Depois de dirigir o culto, Souza faz uma análise e revela sua esperança. "O cristianismo levou 300 anos para crescer e se transformar na religião oficial de Roma. Nós estamos fazendo 120 anos e podemos dizer que, apesar de nossa igreja não crescer, o positivismo está cada vez mais presente no mundo."
Essa presença do positivismo, ele enfatiza, dá-se pelo domínio cada vez maior das explicações científicas sobre os fenômenos físicos, substituindo as interpretações sobrenaturais. "Mesmo as igrejas teológicas estão mais preocupadas com o que acontece na Terra e falando menos sobre uma suposta vida futura."
O Templo da Humanidade é uma espécie de museu não-oficial da memória nacional. Nele, em 1903, foi celebrada a confirmação do casamento do então major Cândido Rondon (1865 a 1958), futuro marechal do Exército brasileiro, célebre pelos seus trabalhos para a integração das regiões remotas do país e em defesa dos índios. Visivelmente deteriorado e sem adeptos que tenham recursos para preservá-lo, o templo ostenta sinais de sua antiga grandiosidade. Para difundir a doutrina e conseguir novas adesões, a igreja criou um site na internet -www.arras.com.br/igrposit/.
Em salas anexas à nave principal, estão guardados objetos de importância histórica, entre eles uma cama que os positivistas compraram no século 19 como tendo pertencido a Tiradentes. Há uma biblioteca de livros antigos e raros, além de utensílios pessoais de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, os dois fundadores da igreja.
Lemos e Mendes tinham 26 anos quando realizaram o primeiro culto da Igreja Positivista do Brasil, entidade que se tornou um centro de reunião de republicanos e abolicionistas.
As idéias de Comte para uma interpretação científica da realidade eram atraentes para a juventude brasileira que se opunha à cultura verborrágica da elite dominante, representada pelos bacharéis das faculdades de direito.
No final do período imperial, as obras de Comte foram leitura da moda na Escola Politécnica, que formava engenheiros, e na Academia Militar do Rio de Janeiro. Um dos mais proeminentes positivistas era o então tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, líder do movimento republicano.
Foi na condição de ministro da Guerra do novo regime que ele aprovou o desenho da bandeira proposto por Décio Vilares, sob a inspiração de Teixeira Mendes, em 19 de novembro de 1889, quatro dias depois de os republicanos terem tomado o poder.
"Para comemorar e fortalecer o espírito cívico, os positivistas instituíram o Dia da Bandeira, o feriado da Proclamação da República, bem como o Dia de Tiradentes e o Sete de Setembro."


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