São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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ELIO GASPARI

A tunga da LotoTarso pode melhorar

O ministro da Educação, Tarso Genro, concebeu uma nova forma de financiamento do custeio das universidades federais. Quer criar uma loteria. Seria a segunda modalidade de jogo criada no governo de Lula. Do jeito que está, é tunga.
Por mais bonitas que sejam as intenções desses certames, eles coletam dinheiro no andar de baixo. Os apostadores brasileiros são cerca de 30 milhões. Oito em cada dez deles têm renda inferior a três salários mínimos (R$ 780). Tarso quer que esse cidadão alimente uma loteria destinada a financiar universidades públicas freqüentadas pelo seu antípoda social. Pode-se supor que só dois em dez universitários vêm de lares com renda inferior a R$ 780. É o dinheiro do andar de baixo indo para o de cima.
As nove loterias federais arrecadam R$ 3,5 bilhões por ano e repassam R$ 1,3 bilhão para investimentos em educação e saúde. Duas extrações especiais (e turbinadas) da Megasena poderiam render algo como R$ 300 milhões anuais para as universidades. Nada mal.
Seguindo a velha tradição colonial, o MEC anuncia como quer tomar dinheiro da patuléia, mas não diz como pretende gastá-lo. Nem se compromete a fazer nenhum esforço em função dessa tunga.
Botar dinheiro do andar de baixo no caldeirão das despesas das universidades é usar a tavolagem para financiar promessas. Para ficar redonda, a LotoTarso poderia ser condicionada a duas exigências:
1) O dinheiro seria usado exclusivamente para custear bolsas de estudo destinadas aos estudantes que vêm de lares com renda inferior a três salários mínimos.
2) Cada universidade só receberia o dinheiro da loteria se tivesse ido à luta para captar doações de seus ex-alunos. Para cada real do apostador de hoje, a universidade deveria casar outro, do magano que estudou de graça e nunca devolveu um ceitil à Viúva. As campanhas financeiras seriam animadas colocando-se na internet as listas dos beneficiados pelo ensino superior gratuito e o valor de suas contribuições.

Um lance de censura em nome do PT

O diretor do núcleo de documentários da TV Cultura de São Paulo, Mário Borgneth, produziu uma magistral encrenca. Por motivos políticos, recusou-se a transmitir o trabalho "O Sol da Liberdade", uma reconstrução da campanha das diretas de 1984, feita pelo jornalista Alex Solnik. Cancelou a transmissão de uma peça que a emissora programara e divulgara.
Numa entrevista ao repórter Maurício Stycer, Borgneth contou que o trabalho de Solnik tinha "um buraco monumental em relação ao movimento sindical e ao recém-criado PT". "O filme apresentava um painel bastante incompleto das forças que viabilizaram as diretas. (...) Não faço co-produção de mentirinha."
A argumentação de Borgneth não é de co-produtor, mas de comissário. A campanha das diretas foi a maior mobilização popular da história brasileira. Se algum partido tem o crédito desse magnífico momento, ele é o falecido PMDB de Franco Montoro, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O papel do PT nessa mobilização foi relevante, mas não foi fundamental.
Solnik fez o seu documentário de 55 minutos com R$ 15 mil do Senac e um generoso apoio logístico da TV Cultura. Seu trabalho é simples, pobre. Tem alguns momentos emocionantes, como uma passeata na praia de Capão da Canoa. Reflete bem a época e é melhor vê-lo do que decidir não vê-lo.
Borgneth suspendeu a exibição com argumentos de duas ordens. Um, genérico, é a ausência do PT. Tem toda razão na crítica. Lula não aparece no filme, e o governador Aécio Neves faz três aparições banais, longas e injustificadas. Em 1984, ele era apenas o secretário do avô Tancredo Neves.
Outras restrições foram pontuais. Solnik conta que Borgneth se contrariou com o depoimento do ex-deputado Airton Soares, que teve de deixar o PT porque votou em Tancredo Neves. Não gostou que Fafá de Belém contasse o boicote que Franco Montoro tentou impor-lhe nem de Mário Covas Neto dizendo que hoje o PT está à direita do PSDB. Essas observações pontuais, amparando a decisão de não levar o documentário ao ar, são um exercício clássico de censura.
O documentário tem tucano demais e barbudo de menos. E daí? O trabalho é de Solnik, não de Borgneth. Se o jornalista tivesse dado muito espaço aos tucanos num documentário sobre as greves do ABC, teria sido parcial. No caso das diretas, os petistas foram coadjuvantes. Enfiar sindicalistas num documentário como o de Solnik seria delírio stalinista. O "Sol da Liberdade" é um retrato aceitável do que foi a campanha das diretas. Tomara que a conduta de Borgneth não seja um retrato de novos padrões na TV Cultura, uma instituição pública.
A TV Minas já transmitiu o documentário e é provável que a TV Senado venha a fazê-lo. Se Deus é brasileiro (mesmo que seja petista), o documentário de Solnik será transmitido pelas emissoras de televisão interessadas em informar ao público que, independentemente do que se ache da peça, um comissário é pouco para silenciar uma produção cultural decente.

A bomba que matou Letelier em 1976 acertou Kissinger em 2004

O professor Henry Kissinger e seus amigos tiveram uma má idéia: pressionaram a vetusta instituição do Council on Foreign Relations por causa de uma resenha na qual o professor Kenneth Maxwell ("A Devassa da Devassa") mostrava que, como secretário de Estado (1973-1977), ele frangou um atentado patrocinado pela ditadura do general chileno Augusto Pinochet. Não foi um atentado qualquer. Ele aconteceu em 1976, em Washington, a 14 quarteirões da Casa Branca. Explodiram o ex-chanceler chileno Orlando Letelier. Até o 11 de Setembro, esse foi o mais audacioso atentado praticado por estrangeiros em território americano.
Maxwell dirigia o programa latino-americano do conselho e escrevera uma resenha na sua revista ("Foreign Affairs") recapitulando a tolerância de Kissinger diante da ditadura chilena.
Durante quase dois meses, deu-se uma polêmica, e ela acabou com Maxwell silenciado. Um desfecho quase convencional. O poderoso (Kissinger) manda, e obedece quem tem juízo (Maxwell). Engano. Ele arrumou a mesa e foi embora. Vai lecionar história do Brasil em Harvard.
O advogado William D. Rogers, um ex-colaborador de Kissinger e atual vice-presidente da sua empresa de consultoria, acusou Maxwell de insinuar que Kissinger poderia ter evitado o assassinato de Letelier. O professor sustenta que documentos divulgados recentemente não insinuam isso. Demonstram.
A decisão de Maxwell de pedir o boné fez com que o caso transbordasse e fosse para as páginas do "New York Times" e da revista "The Nation". Na sexta-feira, renunciou Jeremy Aldeman (Princeton), seu substituto como resenhista na "Foreign Affairs".
É dura a vida de Kissinger. Em 1973, o professor ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Em 2004, cobram dele o significado de uma frase dita em 1976 ao chanceler da ditadura militar argentina que estava iniciando uma política de extermínio de dissidentes políticos: "Quanto mais rápido vocês prevalecerem, melhor".
Os generais argentinos prevaleceram, mas sumiram com cerca de 9.000 pessoas. A maior matança ocorrida na América do Sul no século 20.
Os documentos que perseguem a biografia de Kissinger estão todos no seguinte endereço, infelizmente em inglês:
http://www.gwu.edu/ºnsarchiv

SuperLula

Lula disse o seguinte durante sua viagem à China:
"Eu vou mudar o mapa geopolítico do mundo".

Tunga geral

Benjamin Franklin ensinou que há duas coisas inevitáveis: pagar impostos e morrer.
Os conselhos de profissionais liberais brasileiros decidiram que há uma terceira: sustentá-los.
O Conselho Regional de Administração do Rio Grande do Sul se recusou a alforriar um analista do Banco Central (Antonio Carlos Timm Junior), sustentando que sua atividade profissional é privativa dos administradores.
Se é, o Banco Central não sabia, pois exigiu apenas diploma de curso superior aos candidatos às vagas, e elas foram ocupadas por engenheiros, economistas e advogados. Ele só conseguiu se libertar do conselho, e da tunga das anuidades, porque foi à Justiça. Mesmo depois de ter ganhado a causa (porque o CRA perdeu os prazos), a moçada continua a mandar-lhe boletos de cobrança.
No Rio, o Conselho de Biblioteconomia se recusa a libertar uma cidadã (Maria Alice Mansur) que simplesmente não exerce mais a profissão.
Pelo visto, ser profissional liberal é um crime hediondo. A pessoa está condenada a sustentar os conselhos sem direito à liberdade condicional.

Erros

O presidente da Schering do Brasil, Theo Van Der Loo, informa que em 2002 seu laboratório colaborou financeiramente tanto com a campanha do PT como com a do PSDB.
A Schering informa que deu R$ 100 mil a cada um dos dois candidatos a presidente.
Portanto, estava errada a afirmação segundo a qual o dinheiro dado pela Schering aos tesoureiros de Lula destinava-se a tirar o ex-ministro da Saúde José Serra do caminho. Como os tesoureiros de Serra receberam uma doação do mesmo tamanho, a relação da Schering com os dois candidatos foi isonômica.
Estava errada também a informação segundo a qual o livro "A Aliança Brasil-Estados Unidos, 1937-1945", do professor Frank McCann, está inédito em português.
Ele foi publicado em 1995 pela editora Biblioteca do Exército.
Inédito continua "Soldados da Pátria" ("Soldiers of the Patria"), uma preciosa história do Exército brasileiro de 1889 a 1937, lançado no início deste ano pela editora da Universidade Stanford.

Obras Lulônicas

Construção civil? Reforma do Alvorada.
Transportes aéreos? Airbus de US$ 56 milhões para o companheiro.
Rodoviários? Motocicletas Harley Davidson de R$ 41,8 mil para os batedores dos maganos.

O Mané fumante

Defendendo-se num processo em que ex-fumantes reivindicam indenizações por padecerem de males que acreditam ter sido provocados por décadas de vício tabagista, a Souza Cruz enunciou uma pérola. Disse o seguinte:
"Os riscos associados ao consumo do cigarro são, há muito tempo, de conhecimento público".
Bem que o Ministério da Saúde poderia usá-la nas pragas que enfeitam os maços de cigarro.
A associação do fumo ao câncer de pulmão data de 1920, mas a indústria chegou a pagar pesquisas para desmoralizar os médicos americanos que sustentavam essa tese.
Há alguns anos, o presidente da Souza Cruz, Flávio de Andrade, militou na causa contra a proibição do fumo em ambientes de trabalho, estabulando-se os viciados em constrangedores fumódromos. Ele explicou que combateu a idéia de que a fumaça faça mal aos não-fumantes.

Micromania

A ekipekonômica está discutindo em Brasília se deve haver uma esquina no cruzamento da avenida Paulista com a rua Augusta.
O Banco Central ainda não aceitou um plano da Caixa Econômica para que os trabalhadores brasileiros que vivem nos Estados Unidos remetam dinheiro para Pindorama pagando taxas razoáveis. No interesse da choldra, a Caixa quer usar um mecanismo amparado em cartões de crédito.
Incrível ekipe. Discute se deve autorizar uma coisa que, como a esquina da Augusta, já existe.
Imagine-se um motorista chamado Luiz Inácio, que vive em Nova York e tem um tio de nome Dirceu em Governador Valadares. Luiz Inácio está em dia com as leis da imigração americana. Ele pede um cartão de crédito e coloca Dirceu como dependente. Isso significa que o tio poderá fazer despesas em Minas e elas serão cobradas ao sobrinho em Nova York.
Luiz Inácio combina com Dirceu que ele pode gastar o equivalente a US$ 300. Recebe a fatura, paga-a e não deve contas ao doutor Henrique Meirelles.
O que a Caixa quer é tornar o tio desnecessário, eliminando o aspecto precário da transação. Fica fora mais da metade dos trabalhadores brasileiros, por falta de papéis da imigração.
Vale a pena saber quando o doutor Henrique Meirelles vai baixar uma norma permitindo que a avenida Atlântica e a rua Barata Ribeiro sejam paralelas.



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