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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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CONFLITO AGRÁRIO

Por meio de parecer da autarquia, governo Lula flexibiliza medida de FHC que coíbe ação de sem-terra

Incra ensina a driblar lei contra invasão

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

No discurso, o governo Lula manteve em vigor a medida provisória que proíbe, por dois anos, a vistoria de propriedades rurais invadidas. Na prática, um memorando do Incra ensina aos superintendentes da autarquia modos de contornar a lei.
A Folha obteve uma cópia do documento. Foi escrito faz 20 dias. Redigiu-o o advogado Carlos Frederico Marés de Souza Filho, 55. É procurador-geral do Incra. Cabe a ele fixar o padrão legal adotado no âmbito da autarquia.
Desde a posse de Lula, em janeiro, o Incra faz vista grossa à aplicação da medida antiinvasão. Não há notícia de imóvel invadido cuja vistoria tenha sido brecada. A manifestação de Souza Filho deu à má vontade a concretude de um texto oficial.
O procurador-geral fez uma leitura inédita da lei. Diz, em seu parecer, que a medida provisória que a instituiu trouxe "uma proteção especial ao direito de propriedade". Mas não cabe ao Incra invocar essa proteção. "Somente pode ser usada ou exercida pelo proprietário" da terra invadida.
De resto, Souza Filho detalha em seu parecer os casos em que a manifestação do fazendeiro pode ser ignorada. Para o procurador-geral, a ação do Incra deve partir da seguinte baliza: o "impedimento" contido na medida provisória, ou seja, o obstáculo à inspeção de terras invadidas, "não pode ser entendido como uma punição aos movimentos sociais, porque isso significaria impedir a solução de conflitos [...]."

Interpretação draconiana
Baixada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em maio de 2000, a lei antiinvasão teve o objetivo explícito de coibir a ação do MST.
Sob FHC, a legislação mereceu uma leitura draconiana (relativo a Drácon, legislador grego, famoso pela crueza e severidade das leis a ele atribuídas).
A vedação à vistoria de terras ocupadas à força era levada ao pé da letra pelo tucanato. Invadida, a propriedade tinha o nome levado à internet. Independentemente da manifestação do proprietário, a terra, ainda que improdutiva, era excluída do rol de desapropriações.
O MST acusou o golpe. A revogação da medida passou a compor todas as listas de reivindicações do movimento. Temendo a reação do patronato rural, o Palácio do Planalto resistiu às investidas. O parecer jurídico do Incra acomoda a resistência no campo da retórica.
Datada de 23 de junho, a manifestação de Souza Filho foi motivada por um ofício vindo de Santa Catarina. A superintendência catarinense do Incra formulou cinco perguntas sobre a "aplicabilidade" da medida antiinvasão.
Em todas as respostas, o procurador-geral Souza Filho ofereceu argumentos favoráveis à vistoria de terras invadidas. O texto foi repassado às superintendências regionais, para "padronizar todas as medidas adotadas".
Fixadas as premissas -cabe ao proprietário chiar contra a invasão, e a lei de FHC não deve punir os movimentos sociais-, o parecer de Souza Filho passa a responder às questões vindas de Santa Catarina. Perguntou-se a ele, por exemplo: "Como se deve aplicar a medida provisória nos casos em que a invasão ou esbulho se deu em parte do imóvel?"
E o procurador-geral responde: "Se o esbulho ou invasão se der em espaço pequeno do imóvel, que não comprometa a avaliação do cumprimento da função social e da produtividade do conjunto do imóvel, não há impedimento da vistoria, avaliação e desapropriação".
Na opinião de Souza Filho, ainda que a invasão afete uma "área maior" da propriedade, o Incra poderá avaliar e desapropriar a "parte do imóvel não comprometida". Desde que esse naco de terra continue sendo considerado "grande propriedade".
Detalhista, Souza Filho anotou: "Quando um imóvel rural é composto por diversas matrículas, cada um deles pode ser vistoriado, avaliado e desapropriado de per si. Isso significa que, se um deles está esbulhado ou invadido, nada impede a vistoria, avaliação e desapropriação dos outros".
Outra pergunta: "É possível a vistoria de imóvel rural invadido ou esbulhado com a anuência expressa do proprietário?" A resposta: "Sim. Se o proprietário tem a possibilidade de vender o seu imóvel, terá também disponibilidade de anuir nos casos em que o Incra deseje vistoriar para fins de desapropriação".

Indenização
Estudo realizado pelo governo Fernando Henrique Cardoso induz à percepção de que abundam no campo brasileiro fazendeiros abertos a composições com o Incra. Colecionaram-se dados segundo os quais apenas um terço dos donos de terras invadidas reivindicava na Justiça a reintegração de posse. A passividade dos outros 70% tonificou a suspeita de que muitos houvessem até estimulado a ocupação das próprias terras. Só para obter indenização do governo.
Mais uma pergunta formulada à Procuradoria do Incra: "É possível [...] a desapropriação do imóvel rural em que já houve vistoria e foi invadido ou esbulhado depois dela?". Souza Filho: "Sim. [...] Se já houve a vistoria e a apuração do descumprimento dos critérios legais de produtividade e função social, são inócuos a invasão e o esbulho coletivos".
O procurador-geral aconselha a inspeção e a desapropriação de imóveis rurais em outros dois casos. Quando a terra invadida é adquirida pelo governo em operação convencional de compra e venda e quando o imóvel está ocupado por mais de cinco anos.
Neste último caso, Souza Filho sustenta que "o Incra tem dois caminhos para a regularização da gleba: a desapropriação com discussão do pagamento para o verdadeiro proprietário, os posseiros, ou o reconhecimento da posse para fins de ação de usucapião, sem ônus para o poder público federal".
A lei antiinvasão vem sendo flexibilizada pelo governo também no que diz respeito à punição de trabalhadores rurais que participam de invasões. Deveriam ser excluídos dos programas oficiais. Em fevereiro, porém, o governo retirou da internet os nomes de 25 sem-terra punidos em 2002, ainda sob Fernando Henrique.
Em maio, o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, disse: "Não cabe a nós [do governo] excluir trabalhadores. A nossa função é fazer a reforma agrária".


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