São Paulo, Segunda-feira, 13 de Setembro de 1999
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ENTREVISTA DA 2ª
Para Goffredo Telles Júnior, não existe democracia hoje no Brasil

Cleo Velleda/Folha Imagem
O advogado, professor emérito da USP, constituinte de 1946 e autor de 11 livros, Goffredo da Silva Telles Júnior. para quem não há democracia no Brasil hoje


JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Advogado, professor emérito da Universidade de São Paulo, constituinte de 1946 e autor de 11 livros, Goffredo da Silva Telles Junior, 84, afirma, em nome do denso currículo de defensor das liberdades públicas, que hoje não existe democracia no Brasil.
A seu ver, há um divórcio entre as preocupações expressas pelo presidente da República e aquelas que circulam na sociedade. O Congresso não é representativo, e os partidos políticos são meras "aglomerações". Mesmo assim, ele acredita que o Brasil "tem jeito" e tende a se transformar numa das potências do futuro.
Ele estará lançando depois de amanhã suas memórias, "A Folha Dobrada". Eis sua entrevista:

Folha - Como partícipe há 60 anos da vida política, o sr. acredita que o Brasil tem jeito?
Goffredo Telles Junior -
Em verdade, acompanho o Brasil há bem mais que 60 anos. Em 1924, na revolução do general Isidoro, andávamos, eu e minha família, pelos porões das casas, fugindo dos tiroteios. Minha família pertencia à chamada oligarquia que governou o Brasil, e o fez com um certo heroísmo. Mas eu já acreditava que havia muita coisa errada. Em 1930, aos 15 anos, eu era um leitor voraz de jornais e acompanhei a revolução. E em 1932, aos 17, eu já era soldado.

Folha - São então 75 anos.
Goffredo -
Perfeitamente. E eu tenho uma fé e uma confiança total em minha terra. Isso apesar dos desatinos, dos desmandos e dos erros cometidos, e que são normais num país jovem como o nosso. Temos o futuro pela frente. A civilização não progride numa linha retilínea. Ela avança e retrocede. O Brasil tem jeito, sem dúvida alguma. Há sinais de que o Brasil será uma das potências num futuro que não está assim tão distante.

Folha - Em que momentos o Brasil se aproximou ou se afastou mais da democracia nestes 75 anos?
Goffredo -
Eu teria que conceituar a democracia. Sua nota fundamental é a influência e a representação do povo nos órgãos de decisão do governo. No Brasil, a democracia nunca se realizou plenamente. Antes de 1930, não havia "povo", ele não havia ingressado na cena política. Houve a ditadura de Vargas, com um pequeno entreato depois de 1934 -quando eu, sem ainda 20 anos, fui suplente de deputado. Em 1945, com o fim do Estado Novo, tivemos um tempo de uma democracia regular, durante o governo Dutra. A Câmara e o Senado eram compostos por pessoas de primeira qualidade e que representavam alguma coisa. Depois deixou de haver propriamente uma representação, mesmo porque a influência norte-americana era muito abafante. Getúlio é reeleito, governa num período conturbado e se suicida. Pouco se fala sobre a importância da Faculdade de Direito da USP naquele episódio, de seus estudantes e do recado mandado a Tancredo Neves, então ministro da Justiça.

Folha - O sr. menciona em suas memórias uma carta que três professores da faculdade enviaram a Tancredo na antevéspera do suicídio de Getúlio. Mas não diz quem foram eles.
Goffredo -
Não posso fazê-lo. Houve um juramento para que se mantivesse segredo sobre os autores dessa carta. Ela propunha que Getúlio se licenciasse para que se apurassem as responsabilidades do crime da rua Toneleros (no dia 5 de agosto de 54, em atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, um dos então maiores críticos de Vargas, o pistoleiro Alcino João do Nascimento matou o major da Aeronáutica Rubens Vaz). E foi a proposta que Tancredo apresentou às 3h30 da madrugada do dia 25, durante a tensa reunião do ministério, no Catete (então sede do governo federal).

Folha - Hoje estamos numa democracia?
Goffredo -
Não estamos. O Brasil é hoje dois brasis. Há uma esfera oficial que tem suas finalidades, e há uma esfera nossa, do homem do povo, do trabalhador, do intelectual, do Brasil daqueles que lutam pela vida. O "Brasilão" não se confunde com o Brasil da esfera oficial.

Folha - E isso ocorre por falta de um mecanismo adequado de representação?
Goffredo -
Sentimos claramente que a linguagem dos trabalhadores não tem semelhança com a linguagem do presidente da República. Quando o presidente fala, temos a impressão de que ele está falando para outro planeta. Ele não fala das angústias, da fome, da miséria.

Folha - Qual a culpa, nisso, do Congresso Nacional?
Goffredo -
O Congresso não consegue representar o povo. Entre os dois há um abismo. Isso é constrangedor.

Folha - Pois o Congresso estaria minado por grupos de interesses setorizados?
Goffredo -
Não tenha dúvida. Estamos assistindo um fenômeno também terrível em matéria de democracia. Com as medidas provisórias, quem legisla é o Poder Executivo. O Congresso não tem coragem de decretar a inconstitucionalidade das MPs.

Folha - O sr. cita Graciliano Ramos, que em 1935 qualificou o Congresso de "poltrão". Seria hoje também o caso?
Goffredo -
Essa expressão é extraordinariamente forte. Eu não a usaria. Tivemos na história congressos equivocados, sujeitos a interesses que não os autênticos para os quais foram eleitos.

Folha - E qual a parcela de culpa dos partidos políticos?
Goffredo -
Não temos partidos políticos. Temos aglomerações, clubes. Há por aqui três tipos de partidos: os "liberais", que são os que mudam de idéia de acordo com as circunstâncias. Há em seguida aqueles que existem para a defesa de determinadas idéias, e que facilmente tendem a ser impositivos, que acreditam serem "traidores do povo" todos os que não compartilham suas idéias; o PT, dividido como se encontra, é em parte assim. E há por fim os partidos-ferramentas, de aluguel, e que abrigam os políticos excluídos dos demais partidos.

Folha - A democracia não seria menos viável quando o Estado nacional precisa abdicar parte de seu poder, que é transferida para instâncias internacionais, como a Organização Mundial do Comércio?
Goffredo -
É difícil ser profeta nesse terreno. É preciso saber para onde vai nos levar a globalização. Eu sempre me pergunto se ela é uma globalização verdadeira, ou se não passa de uma forma de controle do império dos poderosos, se não é uma maneira de se chegar ao imperialismo. Na Europa, sinto haver uma afirmação cada vez mais decisiva das nacionalidades, que põem em relevo seus valores próprios.

Folha - Em 1955, o sr. escreveu um texto intitulado "A Resistência Violenta aos Governos Injustos". Ele ainda é atual?
Goffredo -
Esse texto mostra que a resistência violenta não é um direito, é um fato. Na primeira constituição da Revolução Francesa estava consignado o direito à resistência violenta aos governos injustos. Mas em seguida surge a idéia de que resistir com violência é crime. As constituições modernas consagram a resistência, mas apenas por meios democráticos. Há hoje no Brasil um fenômeno cultural pelo qual as pessoas têm uma consciência cada vez mais clara de seus direitos. A recente "Marcha dos 100 Mil", em Brasília, foi um fantástico exemplo disso. É o povo na praça pública pedindo a mudança da política econômica.

Folha - Nesses anos de sua convivência com o Brasil, qual o personagem que mais o atraiu?
Goffredo -
A atração tem diversos aspectos. Não posso negar o extraordinário papel de Getúlio Vargas, talvez o político mais importante neste século, embora eu tenha combatido ele e sua ditadura. Foi um político que por um mistério qualquer manteve sempre o povo ao seu lado. Gostava muito, também, de Juscelino, meu companheiro por cinco anos na Câmara dos Deputados. Foi um idealista, um grande sonhador. Seu sonho fascina pequenos sonhadores como eu...

Folha - E que personagens lhe inspiraram maior ojeriza?
Goffredo -
Vou lhe pedir perdão, mas não vou responder essa pergunta. Algumas pessoas me despertaram asco pelas atitudes que tiveram. As piores entre elas já estão todas mortas.

Folha - O sr. parece ser excessivamente generoso para com seus adversários.
Goffredo -
Não é propriamente generosidade. Eu sempre procuro compreender as causas pelas quais as pessoas agem, e não considerar apenas os atos isolados. Tornei-me, por exemplo, amigo de criminosos que, como advogado, defendi no júri.

Folha - O sr. demonstrou grande empatia política por João 23. Sente o mesmo pelo atual papa?
Goffredo -
João Paulo 2º não chegou a cativar meu espírito.

Folha - O sr. se considera um homem religioso?
Goffredo -
Fui aluno do São Bento. Meus professores sabiam que minhas dúvidas eram dirigidas mais a mim mesmo que contra eles. Minha formação foi religiosa. "Justiça e Júri no Estado Moderno", meu primeiro livro, teve a aprovação da igreja. Sempre fui muito ligado à filosofia escolástica, que põe ordem no pensamento das pessoas.

Folha - Em 1947, o sr., como deputado, se opôs à cassação do Partido Comunista. Caso ele tivesse permanecido na legalidade, os reflexos da Guerra Fria no Brasil teriam sido, nos anos 50, menos desastrosos?
Goffredo -
Não tenho dúvida alguma. Foi um grande erro político. Naquela época não havia apenas "medo" dos comunistas, havia um verdadeiro pânico entre militares e empresários.

Folha - Suas memórias relatam seu encanto com a descoberta do DNA pelos biólogos. O sr. teme algum desastre provocado pela manipulação da engenharia genética?
Goffredo -
Preocupo-me muito com isso. A humanidade precisa tomar cuidado. Esse capítulo da ciência moderna exige uma manipulação cheia de sabedoria. Descobriu-se que o que se considerava consciência livre do ser humano dependia em parte de uma predisposição do patrimônio genético.

Folha - Hoje, aos 84, o sr. se considera um homem feliz?
Goffredo -
Eu tive desgraças enormes na minha vida, na minha juventude. Sofri extraordinariamente com cataclismos que me feriram de uma maneira brutal. Durante 20 anos esses cataclismos dominaram minha existência e me fizeram escravo de meus demônios. Mas depois, uma noite, no meio da multidão, encontrei Maria Eugênia. Todos os meus demônios se puseram em fuga. Ela iluminou a minha vida. Estou casado há 32 anos. São anos de ventura e felicidade.



Autobiografia: "A Folha Dobrada"
Editora: Nova Fronteira, 990 págs.
Lançamento: quarta-feira, a partir das 18h, na Faculdade de Direito da USP (largo São Francisco, 95; tel. 0/xx/11/ 239-2744)
Quanto: R$ 49


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