|
Texto Anterior | Índice
ENTREVISTA DA 2ª
Para Goffredo Telles Júnior, não existe democracia hoje no Brasil
Cleo Velleda/Folha Imagem
|
O advogado, professor emérito da USP, constituinte de 1946 e autor de 11 livros, Goffredo da Silva Telles Júnior. para quem não há democracia no Brasil hoje |
JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local
Advogado, professor emérito
da Universidade de São Paulo,
constituinte de 1946 e autor de 11
livros, Goffredo da Silva Telles Junior, 84, afirma, em nome do denso currículo de defensor das liberdades públicas, que hoje não existe democracia no Brasil.
A seu ver, há um divórcio entre
as preocupações expressas pelo
presidente da República e aquelas
que circulam na sociedade. O
Congresso não é representativo, e
os partidos políticos são meras
"aglomerações". Mesmo assim,
ele acredita que o Brasil "tem jeito" e tende a se transformar numa
das potências do futuro.
Ele estará lançando depois de
amanhã suas memórias, "A Folha
Dobrada". Eis sua entrevista:
Folha - Como partícipe há 60
anos da vida política, o sr. acredita que o Brasil tem jeito?
Goffredo Telles Junior - Em
verdade, acompanho o Brasil há
bem mais que 60 anos. Em 1924,
na revolução do general Isidoro,
andávamos, eu e minha família,
pelos porões das casas, fugindo
dos tiroteios. Minha família pertencia à chamada oligarquia que
governou o Brasil, e o fez com um
certo heroísmo. Mas eu já acreditava que havia muita coisa errada.
Em 1930, aos 15 anos, eu era um
leitor voraz de jornais e acompanhei a revolução. E em 1932, aos
17, eu já era soldado.
Folha - São então 75 anos.
Goffredo - Perfeitamente. E eu
tenho uma fé e uma confiança total em minha terra. Isso apesar
dos desatinos, dos desmandos e
dos erros cometidos, e que são
normais num país jovem como o
nosso. Temos o futuro pela frente.
A civilização não progride numa
linha retilínea. Ela avança e retrocede. O Brasil tem jeito, sem dúvida alguma. Há sinais de que o
Brasil será uma das potências
num futuro que não está assim
tão distante.
Folha - Em que momentos o
Brasil se aproximou ou se afastou mais da democracia nestes
75 anos?
Goffredo - Eu teria que conceituar a democracia. Sua nota fundamental é a influência e a representação do povo nos órgãos de
decisão do governo. No Brasil, a
democracia nunca se realizou plenamente. Antes de 1930, não havia "povo", ele não havia ingressado na cena política. Houve a ditadura de Vargas, com um pequeno entreato depois de 1934
-quando eu, sem ainda 20 anos,
fui suplente de deputado. Em
1945, com o fim do Estado Novo,
tivemos um tempo de uma democracia regular, durante o governo
Dutra. A Câmara e o Senado eram
compostos por pessoas de primeira qualidade e que representavam alguma coisa. Depois deixou
de haver propriamente uma representação, mesmo porque a influência norte-americana era
muito abafante. Getúlio é reeleito,
governa num período conturbado e se suicida. Pouco se fala sobre
a importância da Faculdade de
Direito da USP naquele episódio,
de seus estudantes e do recado
mandado a Tancredo Neves, então ministro da Justiça.
Folha - O sr. menciona em suas
memórias uma carta que três
professores da faculdade enviaram a Tancredo na antevéspera
do suicídio de Getúlio. Mas não
diz quem foram eles.
Goffredo - Não posso fazê-lo.
Houve um juramento para que se
mantivesse segredo sobre os autores dessa carta. Ela propunha
que Getúlio se licenciasse para
que se apurassem as responsabilidades do crime da rua Toneleros
(no dia 5 de agosto de 54, em atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, um dos então maiores críticos de Vargas, o pistoleiro Alcino João do Nascimento matou o
major da Aeronáutica Rubens
Vaz). E foi a proposta que Tancredo apresentou às 3h30 da madrugada do dia 25, durante a tensa
reunião do ministério, no Catete
(então sede do governo federal).
Folha - Hoje estamos numa
democracia?
Goffredo - Não estamos. O Brasil é hoje dois brasis. Há uma esfera oficial que tem suas finalidades,
e há uma esfera nossa, do homem
do povo, do trabalhador, do intelectual, do Brasil daqueles que lutam pela vida. O "Brasilão" não se
confunde com o Brasil da esfera
oficial.
Folha - E isso ocorre por falta
de um mecanismo adequado de
representação?
Goffredo - Sentimos claramente que a linguagem dos trabalhadores não tem semelhança com a
linguagem do presidente da República. Quando o presidente fala, temos a impressão de que ele
está falando para outro planeta.
Ele não fala das angústias, da fome, da miséria.
Folha - Qual a culpa, nisso, do
Congresso Nacional?
Goffredo - O Congresso não
consegue representar o povo. Entre os dois há um abismo. Isso é
constrangedor.
Folha - Pois o Congresso estaria minado por grupos de interesses setorizados?
Goffredo - Não tenha dúvida.
Estamos assistindo um fenômeno
também terrível em matéria de
democracia. Com as medidas
provisórias, quem legisla é o Poder Executivo. O Congresso não
tem coragem de decretar a inconstitucionalidade das MPs.
Folha - O sr. cita Graciliano Ramos, que em 1935 qualificou o
Congresso de "poltrão". Seria
hoje também o caso?
Goffredo - Essa expressão é extraordinariamente forte. Eu não a
usaria. Tivemos na história congressos equivocados, sujeitos a interesses que não os autênticos para os quais foram eleitos.
Folha - E qual a parcela de culpa dos partidos políticos?
Goffredo - Não temos partidos
políticos. Temos aglomerações,
clubes. Há por aqui três tipos de
partidos: os "liberais", que são os
que mudam de idéia de acordo
com as circunstâncias. Há em seguida aqueles que existem para a
defesa de determinadas idéias, e
que facilmente tendem a ser impositivos, que acreditam serem
"traidores do povo" todos os que
não compartilham suas idéias; o
PT, dividido como se encontra, é
em parte assim. E há por fim os
partidos-ferramentas, de aluguel,
e que abrigam os políticos excluídos dos demais partidos.
Folha - A democracia não seria
menos viável quando o Estado
nacional precisa abdicar parte
de seu poder, que é transferida
para instâncias internacionais,
como a Organização Mundial do
Comércio?
Goffredo - É difícil ser profeta
nesse terreno. É preciso saber para onde vai nos levar a globalização. Eu sempre me pergunto se
ela é uma globalização verdadeira, ou se não passa de uma forma
de controle do império dos poderosos, se não é uma maneira de se
chegar ao imperialismo. Na Europa, sinto haver uma afirmação cada vez mais decisiva das nacionalidades, que põem em relevo seus
valores próprios.
Folha - Em 1955, o sr. escreveu
um texto intitulado "A Resistência Violenta aos Governos Injustos". Ele ainda é atual?
Goffredo - Esse texto mostra
que a resistência violenta não é
um direito, é um fato. Na primeira constituição da Revolução
Francesa estava consignado o direito à resistência violenta aos governos injustos. Mas em seguida
surge a idéia de que resistir com
violência é crime. As constituições modernas consagram a resistência, mas apenas por meios
democráticos. Há hoje no Brasil
um fenômeno cultural pelo qual
as pessoas têm uma consciência
cada vez mais clara de seus direitos. A recente "Marcha dos 100
Mil", em Brasília, foi um fantástico exemplo disso. É o povo na
praça pública pedindo a mudança
da política econômica.
Folha - Nesses anos de sua
convivência com o Brasil, qual o
personagem que mais o atraiu?
Goffredo - A atração tem diversos aspectos. Não posso negar o
extraordinário papel de Getúlio
Vargas, talvez o político mais importante neste século, embora eu
tenha combatido ele e sua ditadura. Foi um político que por um
mistério qualquer manteve sempre o povo ao seu lado. Gostava
muito, também, de Juscelino,
meu companheiro por cinco anos
na Câmara dos Deputados. Foi
um idealista, um grande sonhador. Seu sonho fascina pequenos
sonhadores como eu...
Folha - E que personagens lhe
inspiraram maior ojeriza?
Goffredo - Vou lhe pedir perdão, mas não vou responder essa
pergunta. Algumas pessoas me
despertaram asco pelas atitudes
que tiveram. As piores entre elas
já estão todas mortas.
Folha - O sr. parece ser excessivamente generoso para com
seus adversários.
Goffredo - Não é propriamente
generosidade. Eu sempre procuro
compreender as causas pelas
quais as pessoas agem, e não considerar apenas os atos isolados.
Tornei-me, por exemplo, amigo
de criminosos que, como advogado, defendi no júri.
Folha - O sr. demonstrou grande empatia política por João 23.
Sente o mesmo pelo atual papa?
Goffredo - João Paulo 2º não
chegou a cativar meu espírito.
Folha - O sr. se considera um
homem religioso?
Goffredo - Fui aluno do São
Bento. Meus professores sabiam
que minhas dúvidas eram dirigidas mais a mim mesmo que contra eles. Minha formação foi religiosa. "Justiça e Júri no Estado
Moderno", meu primeiro livro,
teve a aprovação da igreja. Sempre fui muito ligado à filosofia escolástica, que põe ordem no pensamento das pessoas.
Folha - Em 1947, o sr., como
deputado, se opôs à cassação
do Partido Comunista. Caso ele
tivesse permanecido na legalidade, os reflexos da Guerra Fria
no Brasil teriam sido, nos anos
50, menos desastrosos?
Goffredo - Não tenho dúvida alguma. Foi um grande erro político. Naquela época não havia apenas "medo" dos comunistas, havia um verdadeiro pânico entre
militares e empresários.
Folha - Suas memórias relatam
seu encanto com a descoberta
do DNA pelos biólogos. O sr. teme algum desastre provocado
pela manipulação da engenharia genética?
Goffredo - Preocupo-me muito
com isso. A humanidade precisa
tomar cuidado. Esse capítulo da
ciência moderna exige uma manipulação cheia de sabedoria. Descobriu-se que o que se considerava consciência livre do ser humano dependia em parte de uma
predisposição do patrimônio genético.
Folha - Hoje, aos 84, o sr. se
considera um homem feliz?
Goffredo - Eu tive desgraças
enormes na minha vida, na minha juventude. Sofri extraordinariamente com cataclismos que me
feriram de uma maneira brutal.
Durante 20 anos esses cataclismos dominaram minha existência e me fizeram escravo de meus
demônios. Mas depois, uma noite, no meio da multidão, encontrei Maria Eugênia. Todos os
meus demônios se puseram em
fuga. Ela iluminou a minha vida.
Estou casado há 32 anos. São anos
de ventura e felicidade.
Autobiografia: "A Folha Dobrada"
Editora: Nova Fronteira, 990 págs.
Lançamento: quarta-feira, a partir das
18h, na Faculdade de Direito da USP
(largo São Francisco, 95; tel. 0/xx/11/
239-2744)
Quanto: R$ 49
Texto Anterior: São Paulo: Abreu Sodré é internado com insuficiência respiratória Índice
|