São Paulo, domingo, 13 de dezembro de 1998

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CELSO PINTO
O risco do círculo vicioso

Muita gente tem interpretado a regra do acordo com o FMI que prevê a subida de juros quando as reservas caem como uma espécie de "currency board" à la Argentina. Na verdade, é um currency board sem sua principal vantagem: a credibilidade.
No sistema de câmbio fixo e com a moeda conversível em dólar, como o da Argentina, existe uma relação determinada entre o volume de moeda na economia e o de reservas. Se as reservas sobem, o governo pode emitir moeda. Se elas caem, a redução da moeda não pode ser compensada pelo Banco Central, o crédito contrai, e os juros sobem.
Essa reação automática leva ao ajuste necessário para reequilibrar a economia e restaurar a entrada de dólares. Como não é possível amenizar o ajuste via desvalorização cambial, o custo pode ser alto, como provou a Argentina em 95, quando a economia despencou, e houve queda nominal de salários e de preços.
A grande vantagem é que o automatismo da regra, quando assegurado, garante aos mercados que o ajuste será feito. Portanto o "currency board" tem credibilidade. Em consequência, os juros são baixos.
A regra do acordo do Brasil com o FMI (que é praxe nesses acordos) é diferente. Fixa-se uma meta desejada para as reservas a cada mês e admite-se uma certa perda como aceitável. No primeiro trimestre de 99, a perda aceitável é de US$ 5,3 bilhões, no segundo, de US$ 700 milhões.
Toda perda de reserva implica a saída de reais na economia. A regra diz que, se a queda superar em até US$ 1 bilhão o limite aceitável, o BC não poderá compensar 10% do enxugamento de reais. Se a perda for de US$ 2 bilhões, a não- compensação sobe para 20%, em US$ 3 bilhões vai para 30%, em US$ 4 bilhões para 50%, em US$ 5 bilhões para 70%, em US$ 6 bilhões para 90% e, acima disto, para 100%.
Isso significa que, quanto mais as reservas caírem, maior será a contração monetária e a subida de juros. A regra, contudo, não é automática: depende da projeção fixada como "aceitável" de reservas e do tamanho do desvio.
Também não tem sua execução garantida. A regra é um "critério de performance", ou seja, se não for cumprida, exigirá uma renegociação formal do acordo com o FMI. No entanto, nada impede que o governo, mesmo assim, deixe de cumprir a regra e o acordo. Portanto, não há a garantia de credibilidade associada ao "currency board" e os benefícios decorrentes.
E os riscos? A regra existe como uma forma de evitar colapsos externos nos países, o que é uma das funções precípuas do FMI. Só que, quando um país tem um déficit fiscal muito alto e formado basicamente por gastos de juros, há um jogo de expectativas complicado.
Uma súbita e acentuada perda de reservas levaria a uma súbita e acentuada alta dos juros, o que agravaria o déficit fiscal. A reação do FMI seria exigir mais cortes fiscais, mas todo mundo sabe que o espaço para isso é exíguo. Supondo que isso pudesse gerar um impasse na execução do acordo com o FMI, o mercado poderia ficar nervoso, o que levaria a mais saída de dólares -fazendo rodar o círculo vicioso outra vez.
Isso pode soar apenas como o exercício de um pessimista contumaz, mas é mais ou menos o que aconteceu na Rússia. Saíram dólares, subiram juros, subiu o déficit, surgiu o impasse com o FMI, saíram mais dólares, subiram ainda mais os juros e o déficit, até o ponto em que ficou claro que a dívida interna era impagável. O final foi moratória e desvalorização.
A situação do Brasil não é, em absoluto, tão vulnerável quanto era a russa. A Rússia apenas ilustra até onde esse tipo de círculo vicioso pode levar.
Pode-se argumentar também, com razão, que, com ou sem essa regra do acordo, se houver uma forte perda de reservas e o BC quiser defender o câmbio, terá que jogar os juros na Lua. É verdade, mas isso só reforça o fato de que o acordo do FMI não tira inteiramente o país do fio da navalha onde vinha caminhando sozinho.
Posto de outra maneira, pela economista Maria Christina Pinotti, o acordo com o FMI pressupõe que tudo dê certo para que ele dê certo. Só faz sentido se seu impacto positivo sobre as expectativas for tão forte que torne desnecessário usar seu dinheiro ou acionar suas defesas. Ela acha que o grande risco é o do esgotamento político e social com um ajuste que deve levar o desemprego, no mínimo, a 10,5% em março.




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