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Governo dos EUA sabia de tortura no Brasil
Embaixador detalhou violações dos direitos humanos, mas sua prioridade eram os ganhos na venda de equipamento militar
"Negar assistência não faria com que o Brasil mudasse de idéia ou abandonasse seus esforços de segurança", dizia na época John Crimmins
RUBENS VALENTE
DA REPORTAGEM LOCAL
Documentos secretos do serviço diplomático americano no
Brasil do biênio 1973-1974, liberados ao público após 32
anos, revelam que a administração do presidente Richard
Nixon (1969-1974) foi informada em detalhes sobre as torturas e os abusos contra direitos
humanos na ditadura, mas não
tornou os fatos públicos.
A pressão americana contrária aos abusos só passou a ocorrer na administração de Jimmy
Carter (1977-1981). Entre 1974
e a posse de Carter, foram mortos ou considerados desaparecidos pelo menos 89 militantes
da esquerda no Brasil.
Num dos telegramas liberados, intitulado "Presos Políticos", o embaixador em Brasília,
John Hugh Crimmins, hoje
com 87 anos e vivendo em
Maryland (EUA), recomendou
que o governo Nixon não usasse contra o governo brasileiro o
art. 32 da Lei de Assistência ao
Estrangeiro, embora o próprio
relatório reconhecesse que isso
era legalmente possível.
Por essa regra, os EUA poderiam cortar créditos financeiros ao Brasil em retaliação a supostos abusos contra direitos
humanos. Na época, os EUA financiavam programas de cooperação militar e de combate a
narcóticos. "Negar assistência
não faria [fará] com que o Brasil
mudasse de idéia ou abandonasse seus esforços de segurança interna na esperança de reconquistar nossas boas graças;
levaria [levará] um Brasil indignado a rejeitar de vez quaisquer
esforços dos EUA para melhorar a situação", escreveu Crimmins em seu relatório de 1974.
Dois meses após a primeira
recomendação, Crimmins bateu na mesma tecla. Num longo
telegrama -de 15 páginas- intitulado "Avaliação do embaixador sobre assistência de segurança dos EUA", ele fala em
manter todos os programas de
ajuda ao Brasil com a estratégia
específica de "influenciar a política brasileira".
"O programa norte-americano de assistência à segurança
do Brasil é uma ferramenta essencial aos nossos esforços de
influenciar a política brasileira.
O programa vem sendo efetivo
em começar a restabelecer os
EUA como fonte primária de
equipamento, treinamento e
doutrina para as Forças Armadas do Brasil. Interessa-nos
muito, porém, consolidar e expandir nossos ganhos recentes
na provisão de equipamento
militar ao Brasil", afirma.
Os telegramas mostram que
de fato o assunto "direitos humanos" tinha ínfimo espaço
nas relações diplomáticas entre
Brasil-EUA. Num relatório de
seis páginas que narrou um almoço ocorrido em 28 de setembro de 74 entre o então secretário de Estado norte-americano,
Henry Kissinger, e o ministro
das Relações Exteriores brasileiro, Antônio Francisco Azeredo da Silveira (1917-1990), o tema mereceu apenas um parágrafo, e assim mesmo na forma
de uma crítica do governo brasileiro: "Direitos humanos. O
ministro do Exterior advertiu
que os Estados Unidos podem
estar "desmoralizando" os direitos humanos ao torná-los uma
questão política".
A "costura"
Os telegramas demonstram
que os americanos tinham fontes no aparelho da repressão
que podiam até mesmo oferecer narrativas dramáticas sobre assassinatos a sangue-frio.
"Outra fonte, informante
profissional e interrogador que
trabalha para o centro de inteligência militar em Osasco (subúrbio industrial de São Paulo),
nos contou em 24 de abril sobre
suas atividades "contra-subversivas". (...) Ele também fez um
relato em primeira mão sobre a
morte de um suspeito de subversão, o que ele designou como "costurar" o suspeito, isto é,
disparar uma arma automática
contra ele formando uma trilha
de balas da cabeça aos pés.
(Maiores detalhes em memorando de 26 de abril sobre essa
conversação.) Ao longo do ano
passado, diversas autoridades
de segurança confirmaram que
suspeitos de terrorismo são
mortos como procedimento
padrão. Estimamos que até 12
tenham sido mortos na região
de São Paulo, no último ano",
diz o telegrama de maio de 73,
um ano antes das recomendações do embaixador Crimmins.
O nome desse assassino, se
em algum lugar foi anotado,
não consta dos papéis liberados. O autor do telegrama foi o
cônsul americano em São Paulo Frederic Chapin, morto por
câncer aos 59 anos, em 1989.
Chapin também relatou uma
onda de violência desencadeada pela ditadura contra integrantes do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), fundado em 1969 por
um grupo de professores, entre
os quais o ex-presidente da República Fernando Henrique
Cardoso (PSDB).
O relatório tem como foco a
prisão do economista Paul Singer, pai do atual porta-voz da
Presidência da República, André Singer.
"Outro membro do Cebrap
(...), Vinícius Caldeira [Brant,
sociólogo, morreu em 1999], foi
detido em 19 de setembro, pouco depois de Singer, e severamente torturado por choques
elétricos, naquela noite. Singer
disse ter ouvido gritos, naquela
noite, e que depois foi informado de que se tratava de Caldeira", escreveu Chapin.
O autor da maioria dos telegramas foi o então embaixador,
Crimmins. Localizado por telefone pela Folha, disse que não
gostaria de se manifestar sobre
seu trabalho como embaixador
no Brasil (1973-1978).
"Não li os documentos que
acabaram de ser liberados. Então não posso comentá-los em
detalhes, especificamente, depois de 30 anos", disse Crimmins. Indagado se gostaria de
receber cópias, o embaixador
disse que não, e que no momento estava muito ocupado e
precisava desligar o telefone.
Procurada, a Embaixada
norte-americana em Brasília
não havia se manifestado até a
noite da última sexta-feira.
Leia mais telegramas do período 1973-1974, traduzidos pela Folha, em http://www.folha.com.br/070122
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