São Paulo, domingo, 14 de março de 2010

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"Consórcios paralelos" driblam licitações de obras no Brasil

"Por fora", empreiteiras partilham pagamento e execução de concorrências públicas

Construtoras envolvidas negam manipulação de resultados apontada por investigações da Polícia Federal em diversos Estados


Edson Ruiz/Folha Imagem
Entrada de canteiro de obras do metrô de Salvador, onde, segundo a PF, houve acordo entre empreiteiras para fraudar licitação

RENATA LO PRETE
EDITORA DO PAINEL
LEONARDO SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Grandes construtoras do Brasil têm um esquema de reparte de contratos que funciona à margem, e a despeito, dos processos públicos de licitação. Nem sempre o grupo de empreiteiras que vence a concorrência é o mesmo que executa a obra ou recebe o pagamento.
As empresas negam manipulação dos resultados e a formação de cartéis, mas a Folha leu documentos que descrevem a atuação dos "consórcios paralelos" no território nacional.
Os papéis constam dos inquéritos de quatro operações realizadas pela Polícia Federal para apurar desvios de dinheiro público (Boi Barrica, Castelo de Areia, Caixa Preta e Aquarela) e de investigações da Polícia Civil em vários Estados.
Em geral, os "consórcios paralelos" agem assim: as construtoras firmam entre si um pacto sobre quem de fato vai executar uma obra a ser licitada. Depois, elas participam separadamente da concorrência, para dar aparência de lisura ao processo. Escolhida a vencedora, o acerto é feito por fora.
Relatórios da PF chegam a detalhar a partilha, atribuindo o percentual de cada integrante. Para fechar as tabelas, peritos analisaram o fluxo de caixa das empreiteiras e as ordens de execução dos canteiros de obras -muitas delas assinadas por construtoras que tinham sido derrotadas na licitação.
Segundo as investigações policiais, o esquema operou, por exemplo, na licitação dos metrôs de Salvador, do Rio de Janeiro, de Fortaleza, do Distrito Federal e de Porto Alegre.
O caso de Salvador é o mais emblemático. A cronologia dos fatos esmiúça o esquema:
1) Documento manuscrito datado de 1º de fevereiro de 1999 menciona uma reunião sobre o metrô soteropolitano da qual teriam participado várias empreiteiras, entre elas OAS, Camargo Corrêa e Norberto Odebrecht. O papel cita, também, a discussão de um "acordo" em torno da obra;
2) O consórcio Impregilo/ Soares da Costa apresentou a menor proposta de preço (R$ 347 milhões) e ganhou a licitação, realizada em 1999;
3) A comissão especial da concorrência cancelou o resultado, por "razão técnica", e, em outubro daquele ano, declarou vitoriosa a associação Camargo Corrêa/Andrade Gutierrez;
4) Ainda em outubro, a Impregilo/Soares da Costa entrou com mandado de segurança para reverter a decisão;
5) Em fevereiro de 2002, a Impregilo/Soares da Costa desistiu da ação na Justiça;
6) Em 2009, policiais acharam minuta de termo de acordo, pela qual a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez prometiam recompensar a Impregilo em troca do recuo na Justiça. O valor: 1,5% do contrato do metrô. Por isso, o Ministério Público denunciou as três empreiteiras por cartelização.
7) Perícia feita pela PF no controle de receitas e despesas e nos saldos de caixa das empreiteiras concluiu, além disso, que a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez não tocam sozinhas a construção do metrô.
Integram o "consórcio paralelo" justamente as construtoras citadas no papel de 1999 que aludia ao "acordo". Segundo a polícia, a Norberto Odebrecht e a OAS ficaram, cada uma, com 16,7% dos contratos -e cuidam até da gerência da obra. Constran (16,7%) e Queiroz Galvão (5,2%) também teriam sido contempladas.
Do mesmo modo, os peritos relataram ter achado indícios contábeis de que as construtoras Queiroz Galvão e Carioca participam, por fora, da execução do lote 1 da linha 3 do metrô do Rio de Janeiro -licitação vencida originalmente pela associação entre Andrade Gutierrez, OAS, CBPO (hoje Odebrecht) e Camargo Corrêa.
Em Fortaleza, embora a Camargo Corrêa e a Queiroz Galvão tenham vencido a concorrência, a PF concluiu que a EIT foi chamada para o "consórcio paralelo". No DF, onde o metrô é tocado oficialmente por Andrade Gutierrez, Serveng e Camargo Corrêa, quem de fato, segundo a PF, encabeça o "consórcio paralelo" é a CR Almeida, com 32% de participação.
Em Porto Alegre, as investigações sobre o metrô apontam que as empreiteiras, além de formar o "consórcio paralelo", manobraram os preços.
Relatórios internos da Camargo Corrêa revelam que ela preparou duas propostas para a licitação -uma "sem acordo" (R$ 307 milhões, 15% abaixo do preço mínimo estipulado pelo Estado) e outra "com acordo" (R$ 354 milhões). O valor "com acordo" foi submetido e derrotado, por pouco mais de R$ 1 milhão, por uma parceria liderada pela Norberto Odebrecht.
Segundo relatório da PF sobre os documentos apreendidos na Operação Castelo de Areia, houve armação "com objetivo de fraudar a competitividade do certame".
A Folha não conseguiu confirmar se a PF e a Polícia Civil dos Estados completaram o rastreamento do dinheiro que transitou entre o poder público e os "consórcios paralelos".
Em meses recentes, as investigações foram alvo de protestos das construtoras. A Operação Castelo de Areia, que além de empreiteiras envolveu políticos, foi travada por decisão do Superior Tribunal de Justiça.
As construtoras sob investigação de formação de cartel (Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Constran, Crasa, EIT, Impregilo, Norberto Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, Carioca Engenharia, Serveng e Soares da Costa) têm, juntas, receita líquida anual de R$ 20 bilhões -mesmo valor que União, Estados e municípios estimam gastar nas obras da Copa do Mundo de 2014.


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