|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Líder afirma que MST vive "dilema" e admite "maré baixa"
Projeto dos sem-terra foi "ingênuo", diz Stedile
João Wainer/Folha Imagem
|
O líder sem-terra João Pedro Stedile, para quem o MST se politizou por não ter atingido seus objetivos |
FERNANDO CANZIAN
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
O principal líder do MST, João
Pedro Stedile, 46, diz que o maior
movimento social de oposição ao
governo FHC foi "ingênuo" ao
acreditar que a reforma agrária
resolveria o problema da pobreza
e da distribuição de renda no país.
Afirma também que o MST vive
um "dilema", que se politizou justamente por não ter alcançado o
que prometera e que atravessa
um período de "maré baixa", assim como outros movimentos.
O líder do MST também reconhece que, dentro do atual modelo econômico, os assentados do
movimento não têm como sobreviver sem subsídios do governo.
Stedile empurra o problema para a sociedade. "Havia uma consciência ingênua de nossa parte em
achar que com a terra era possível
resolver tudo", afirma. "Eu não
tenho a fórmula para tudo. O que
estou propondo é que a sociedade
discuta outro projeto."
Ele prega uma "mobilização nacional" contra o modelo vigente e
acredita existir clima para isso.
Onde? Ele responde com o fato de
a popularidade de FHC estar baixa, apesar de o presidente "insistir
na propaganda" oficial.
"A Vida é Bela", de Roberto Benigni, foi o último filme a que João
Pedro Stedile assistiu. Viu a fita
em um ônibus alugado pelo movimento que se deslocava para
Goiás no início do mês. Mal chegou ao Estado, teve de voltar, desta vez para Curitiba, para o enterro de um sem-terra assassinado
por um PM paranaense. A vida é
bela? "É bela para quem luta", responde. Leia a seguir entrevista
que Stedile concedeu à Folha na
última quinta-feira à noite:
Folha - As duas últimas semanas
não foram boas para o MST. O saldo
é de um morto no Paraná, um endurecimento do governo contra o
movimento, um pacote de ajuda à
Contag que excluiu o MST e até
uma censura contra a sua participação em um programa da TVE. O
saldo é de derrota?
João Pedro Stedile - Foram dias
de sacrifícios, mas não de derrotas. Nossa avaliação é que foi o governo quem enfrentou uma derrota política, que começou nas comemorações dos 500 anos em
Porto Seguro. O governo sabe que
não tem base popular e, sentindo-se derrotado, embora forte, como
todo forte acuado, reagiu. E reagiu contra a parte mais fraca, que
éramos nós.
Mas, na essência, ele (o governo) não resolveu nenhum dos
problemas que produziram as
mobilizações do último mês. Em
vez de perguntar a causa das mobilizações, resolveu simplesmente
satanizar o MST e adotar duas táticas: repressão e uma intensa
propaganda nos meios de comunicação para tentar nos isolar da
sociedade. Mas muitas das ações
de repressão se voltaram contra o
próprio governo, como a censura
à minha entrevista e o assassinato
do trabalhador no Paraná.
Folha - E o pacote de ajuda à Contag, que excluiu o MST? O sr. acha
que a Contag foi usada como "inocente útil" pelo o governo?
Stedile - O governo negociou a
pauta da Contag, que não tem nada a ver com a nossa. São os companheiros da Contag que têm
mais moral para responder a esta
pergunta. Mas, na minha interpretação, as medidas do governo
para a Contag foram apenas para
efeito de propaganda. O governo
disse para a sociedade: "Viu como
eu atendo aqueles bonzinhos?
Mas aqueles "brabinhos" eu não
atendo". Pura propaganda.
Folha - Falando em "brabinhos",
o sr. não acha que o MST exagerou
durante as invasões a prédios públicos? Vimos cenas na TV de sem-terra jogando extintores contra vidros públicos. O que o sr. tem a dizer aos contribuintes? Isso não reforça a imagem negativa que parte
da sociedade tem do MST?
Stedile - Primeiro, desde que o
movimento existe, há 15 anos, nós
sempre fizemos ocupações de terra, passeatas, acampamentos e
ocupações de prédios públicos. O
que mudou e causou a reação violenta do governo foi que, desta
vez, nós tivemos a capacidade de
organizar ocupações e vigílias nos
prédios do Ministério da Fazenda,
que formam o núcleo do poder
político deste país. Como conseguimos fazer em todas as capitais
e contra o inimigo central que
sustenta o modelo que está aí, eles
reagiram violentamente.
Nossa orientação foi clara: nenhuma depredação de prédio público, nenhuma retenção de funcionários, apenas vigílias para
mostrar que o país está numa crise por causa do atual modelo econômico. Se você for contabilizar
as perdas, você tem razão. Foi um
vidro quebrado no Mato Grosso,
outro vidro quebrado em São
Paulo, um e outro incidente que
não partiu de orientação nossa.
Folha - Na sua opinião, o que seria melhor para o Brasil: continuar
este movimento dialético, de pressão, ou partir logo para algo mais
violento, uma revolução?
Stedile - Eu acho que a sociedade brasileira está em uma encruzilhada. O modelo de industrialização entrou em crise e uma grande
parcela da elite brasileira abandonou a idéia de um projeto nacional e resolveu se entregar de corpo
e alma ao capitalismo internacional. É simbólico que o núcleo econômico do governo seja exercido
hoje por pessoas que trabalhavam
para organismos e investidores
internacionais. Essa gente abandonou a idéia de pensar um projeto nacional. Só que eles se esqueceram de que aqui no Brasil
ainda tem povo, tem pobre.
O que é preciso é um grande debate nacional entre entidades, a
imprensa e as pessoas que acreditam que ainda é possível o Brasil
se desenvolver como uma nação
autônoma e não só com índices
de crescimento econômico no
PIB, pois isso é muito fácil.
Não é verdade que o desemprego seja um problema internacional. É o modelo brasileiro que está
gerando isso. Nós queremos terra, moradia e educação para todos. Esse é o modelo que, para
acontecer -não somos ingênuos- precisa que a sociedade
passe por um processo de grandes
mobilizações, como as diretas-já.
Folha - Mas o país tem uma democracia para isso. Temos eleições a
cada quatro anos para escolher
quem vai governar. O sr. está pregando uma ruptura do modelo?
Stedile - Não é isso.
Folha - O presidente conseguiu
um segundo mandato, e a oposição
foi derrotada pregando algo diferente. Em tese, a maioria estava
concordando com o modelo, não?
Stedile - A oposição não ganhou
porque o poder econômico usou
todos os instrumentos que tinha a
seu alcance -comunicação, propaganda e dinheiro- para jogar
os próprios pobres contra o Lula.
Folha - Mas isso não é do jogo?
Não é da democracia?
Stedile - Usar poder econômico,
comprar deputados, manipular a
imprensa, ter o monopólio da
propaganda -isso não é democracia. Até hoje não está explicado
como o Fernando Henrique conseguiu mudar a Constituição e
aprovar a reeleição.
Folha - Mas o que o sr. propõe?
Stedile - Estou propondo um
grande movimento social, como
foram as diretas-já. Todas as mudanças sociais e políticas que
aconteceram no Brasil só aconteceram porque a sociedade foi para as ruas.
Folha - Mas para ter uma sociedade nas ruas, a sociedade precisa estar disposta a ir para as ruas. Por
que ela ainda não foi?
Stedile - Porque a sociedade está
desanimada com a bandalheira
da política nacional. Está acachapada pelo processo de desemprego e empobrecimento. E, do ponto de vista histórico brasileiro, as
grande mobilizações seguem ciclos históricos e nós, infelizmente,
estamos em um ponto de refluxo
do movimento de massas. Mas este refluxo, que vem desde 89 com
a derrota do Lula, não é derradeiro. Estou absolutamente convencido de que em algum momento,
e muito breve, haverá grandes
mobilizações sociais.
Folha - O sr. não teme ficar falando sozinho?
Stedile - O movimento sem terra e as nossas lideranças andam
no meio do povo, no meio da rua.
E o povo está "puto da cara". O
povo está insatisfeito e os pobres
estão começando a se dar conta
de que o Plano Real é uma fantasia, que não resolveu o problema
deles e que, em algum momento,
vão ser criadas as condições para
esta sociedade se manifestar.
Folha - Essa onda já não passou?
Nos últimos dois anos, o país atravessou uma crise muito mais profunda e agora há no horizonte alguma expectativa de crescimento.
Quem acredita em indicador macroeconômico diz que parou de
piorar. De novo, o MST não vai ficar
falando sozinho?
Stedile - Não. Estamos inteiramente convencidos das nossas
idéias. Não só os movimentos sociais do campo pensam como
nós. Os movimentos das cidades
estão se mobilizando.
Folha - Onde? Que eu saiba, tirando o MST, não há nenhuma grande
mobilização.
Stedile - O governo criou uma
ilusão de que iria melhorar as
condições de vida da população e
não o fez, e isso é o que explica o
fato de ele insistir na propaganda
e não melhorar os índices de popularidade. As pessoas vêem a
propaganda, mas constatam que
falta dinheiro no final do mês.
O governo, é verdade, pode até
melhorar os índices macroeconômicos, mas isso não vai, necessariamente, representar aumento
na taxa de emprego. E, se representar, vai ser de quem já tem o
segundo grau completo, de quem
já tem formação e conhece computadores. A grande massa já está
fora desse mercado. É o modelo
que está errado. É claro que os
15% do Brasil que estão ganhando
dinheiro me acham uma besta,
um dinossauro atrasado. Mas e o
resto do povo?
Folha - Mas o modelo que o MST
propõe, de levar o homem ao campo, aos assentamentos, não é de fato um modelo ultrapassado? O sr.
pode até dar uma agricultura de
subsistência para essa massa de
desempregados, mas, dentro do
modelo macroeconômico, isso não
funciona. O sr. não concorda?
Stedile - Concordo. Mas esse
modelo está ultrapassado para os
países desenvolvidos, que já resolveram seus problemas básicos, o
que não é o caso do Brasil. E o modelo do Primeiro Mundo não serve para resolver nossos problemas. Por isso é que temos de criar
um projeto nacional nosso.
Mas você tem razão na outra
parte da pergunta. E esse é o nosso dilema. É por isso que o movimento sem terra se politizou neste
sentido. E, vou te confessar, nós
acreditávamos que, para resolver
o problema da pobreza, bastava
ocupar latifúndios. Havia uma
consciência ingênua da nossa
parte de achar que com terra era
possível resolver tudo. Acontece
agora que, com este novo modelo,
que só atende às grandes agroindústrias, a agricultura está inviabilizada.
Folha - E o que o sr. pretende fazer com o povo agora?
Stedile - Aí entra o nosso projeto. Defendemos uma reestruturação da economia brasileira. Temos de parar de mandar dinheiro
para fora. No ano passado, o Brasil pagou US$ 50 bilhões somando
juros, amortizações e remessas de
lucros. Se esse dinheiro fosse reaplicado na economia nacional,
em outros setores produtivos, de
bens de massa, nós resolveríamos
os problemas.
Qual é o nosso modelo? Em vez
de produzir bens de consumo de
luxo, Mitsubishis e não sei mais o
quê, vamos produzir bens de consumo de massa. Nosso povo está
precisando de calçado, de roupa,
de casa. Se a gente se meter a produzir as 10 milhões de moradias
de pessoas que moram em barracos, imagine o que vai ser preciso
de cimento, vidros, luz elétrica.
Será um "boom" de desenvolvimento.
E, nesse modelo, tem de ter distribuição de renda. Tem de ter salário maior. Se tiver mais renda,
principalmente nas grandes cidades, isso vai viabilizar uma agricultura familiar que vai dar mais
trabalho a milhões de brasileiros.
Hoje a gente produz leite e não
tem quem compre.
Folha - Mas o que o sr. está dizendo então é que a atual demanda do
MST, que é terra para a reforma
agrária, não vai resolver nada. Que
é preciso primeiro resolver o problema dos salários nas cidades para que a reforma agrária seja feita
depois, não é isso?
Stedile - É concomitante.
Folha - Mas o sr. disse que, para
ter a produção no campo, primeiro
é precisa ter o mercado na cidade,
certo?
Stedile - Certo.
Folha - Então hoje vocês estão
usando o movimento apenas politicamente, correto?
Stedile - Não senhor. Há duas
etapas nesta nossa luta contra o
governo...
Folha - Então por que vocês não
começam pela etapa que vai gerar
a demanda pela produção no campo? Não faz sentido o que o sr. está
dizendo. Vocês não estão com o foco errado?
Stedile - Não.
Folha - Vocês não estão querendo
terra?
Stedile - Sim.
Folha - Terra para produzir para
quem, já que o sr. acaba de dizer
que dentro das cidades as pessoas
não têm dinheiro para comprar o
que vai ser produzido nessa terra?
Stedile - A nossa pauta e o nosso
processo de negociação com o governo se dá em duas etapas. A primeira é que nós temos de resolver
imediatamente os problemas que
temos: assentar quem está acampado nas estradas e viabilizar
quem já tem terra.
Agora, quem politizou o movimento foi o modelo econômico
do governo. Nós nos demos conta
que só a terra e o crédito não resolvem o progresso econômico e
o desenvolvimento do meio rural,
pois o modelo exclui a agricultura. A segunda etapa da nossa pauta, então, não é com o governo,
mas com a sociedade. A sociedade tem de entender que nós só vamos resolver os problemas se mudarmos o modelo.
Folha - A maior parte dos assentamentos vive de crédito e não é
auto-sustentável, certo?
Stedile - Não é.
Folha - Então, o sr. não concorda
que esta demanda por assentamentos, por dinheiro colocado ali,
também não vai levar ao desenvolvimento?
Stedile - Se não mudar o modelo, não leva. E mesmo que seja só
para manter a sobrevivência já vale. A agricultura no mundo todo
só se sustenta com subsídio.
Folha - Mas, se é para manter a
sobrevivência, não seria melhor e
mais barato dar cestas básicas?
Stedile - A cesta básica é mendicância. É humilhação.
Folha - Também não é humilhação um assentado ficar em uma terra sem perspectivas sobrevivendo
à custa de créditos? Não é assistencialismo do mesmo jeito?
Stedile - Há um subsídio embutido no crédito, que é o que nós
queremos, mas esse dinheiro não
é de graça. O cara não fica lá sentado, fumando. Ele pega esse dinheiro e compra umas vaquinhas,
melhora o galpão dele. O problema é que na hora de vender o leite,
o preço está tão baixo que ele não
consegue pagar o crédito. Então, a
sociedade acaba transferindo um
subsídio social para ele continuar
com as suas vaquinhas de leite.
Isso não é mendicância. A cesta
básica é humilhante. As pessoas
precisam trabalhar. E, em todo lugar do mundo, a agricultura tem
subsídio.
Folha - Levando em conta esses
dois pilares que o sr. mencionou
para o seu projeto, campo e cidade,
o MST tem a intenção de levar o
movimento para dentro dos grandes centros urbanos?
Stedile - Isso não é verdade. Nos
acusam disso, mas não é verdade.
Folha - Mas os grandes problemas não estão nas cidades? O sr.
mesmo disse. E, se for factível mesmo algum tipo de mobilização, não
é dentro das cidades que ela vai começar a existir? Vocês não estão
com o enfoque errado?
Stedile - Eu não tenho a fórmula
para tudo. O que eu estou propondo é que a sociedade discuta
outro projeto. Uma das saídas é
ter indústrias de consumo de
massa que dêem muito emprego,
como é a indústria de alimentos,
de vestuário e a construção civil.
Mas essa indústria só vai ter demanda se houver distribuição de
renda. Por isso proponho que a
sociedade discuta outro projeto.
Folha - Para isso teremos eleições
daqui a dois anos. Como é que os
srs. vão se comportar e que discurso pretendem adotar?
Stedile - Nosso discurso será este que acabo de dizer. A crise é tão
grave que precisamos discutir
projeto. Recomendo às pessoas
que se organizem e discutam projetos.
Folha - E façam o que depois?
Stedile - Que passem às ruas para dizer para a sociedade e para o
governo quais as mudanças que
querem.
Folha - O sr. pregaria algo mais
incisivo? Por exemplo: o MST invade prédios. O sr. acha que a sociedade deveria fazer a mesma coisa?
Stedile - Quanto maior for a mobilização, mais pacífica será a manifestação. Se botarmos 5 milhões
na avenida Paulista pedindo para
o (Celso) Pitta ir embora, você
não acha que ele sai?
Folha - Sim. Mas o sr. não vê que
esses 5 milhões não aparecem?
Stedile - Reconheço que não é
fácil as pessoas se mobilizarem,
mas isso não quer dizer que elas
nunca mais vão se mobilizar.
Dentro de alguns anos você vai
ver. Nós agora estamos no refluxo, eu reconheço, estamos na maré baixa. Mas eu tenho certeza de
que a Lua vai mudar.
Folha - O MST vai apoiar o Lula em
2002?
Stedile - Se ele for candidato,
achamos que ainda é o melhor
candidato, com maior potencial
eleitoral na esquerda. Mas, antes
de votar no Lula, é preciso que a
sociedade brasileira se mobilize e
discuta projetos. É o que eu estava
falando antes.
Folha - Mas o sr. acha que essa
Lua muda em dois anos?
Stedile - Muda.
Folha - Mesmo com o país crescendo? Não é uma aposta de risco?
O MST e a esquerda, o sr. mesmo
admite, estão em um momento de
maré baixa, e a expectativa é que o
país cresça um pouco. Vocês não
vão perder o bonde de novo?
Stedile - Estamos fazendo futurologia. Eu expus a nossa tese e
não quero ser dono da verdade.
Cobrem-nos daqui a cinco anos.
Folha - E como o sr. avalia movimentos como o zapatismo no México e as Farc na Colômbia? É uma saída para o Brasil?
Stedile - Cada realidade produz
a sua forma de luta. Não existe
modelo. Não acho que exista espaço no Brasil para um movimento armado. Isso é tudo invenção contra nós. Há 15 anos estão
falando que estamos formando
um movimento maoísta no Brasil. Isso é uma estupidez. Estamos
fora. Nossa linha é conscientizar
as pessoas, organizar os pobres e
dizer que eles têm o direito à luta.
Texto Anterior: SNI: Ministro da Defesa rebate críticas Próximo Texto: Frases Índice
|