São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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Líder afirma que MST vive "dilema" e admite "maré baixa"

Projeto dos sem-terra foi "ingênuo", diz Stedile

João Wainer/Folha Imagem
O líder sem-terra João Pedro Stedile, para quem o MST se politizou por não ter atingido seus objetivos


FERNANDO CANZIAN
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

O principal líder do MST, João Pedro Stedile, 46, diz que o maior movimento social de oposição ao governo FHC foi "ingênuo" ao acreditar que a reforma agrária resolveria o problema da pobreza e da distribuição de renda no país.
Afirma também que o MST vive um "dilema", que se politizou justamente por não ter alcançado o que prometera e que atravessa um período de "maré baixa", assim como outros movimentos.
O líder do MST também reconhece que, dentro do atual modelo econômico, os assentados do movimento não têm como sobreviver sem subsídios do governo.
Stedile empurra o problema para a sociedade. "Havia uma consciência ingênua de nossa parte em achar que com a terra era possível resolver tudo", afirma. "Eu não tenho a fórmula para tudo. O que estou propondo é que a sociedade discuta outro projeto."
Ele prega uma "mobilização nacional" contra o modelo vigente e acredita existir clima para isso. Onde? Ele responde com o fato de a popularidade de FHC estar baixa, apesar de o presidente "insistir na propaganda" oficial.
"A Vida é Bela", de Roberto Benigni, foi o último filme a que João Pedro Stedile assistiu. Viu a fita em um ônibus alugado pelo movimento que se deslocava para Goiás no início do mês. Mal chegou ao Estado, teve de voltar, desta vez para Curitiba, para o enterro de um sem-terra assassinado por um PM paranaense. A vida é bela? "É bela para quem luta", responde. Leia a seguir entrevista que Stedile concedeu à Folha na última quinta-feira à noite:

Folha - As duas últimas semanas não foram boas para o MST. O saldo é de um morto no Paraná, um endurecimento do governo contra o movimento, um pacote de ajuda à Contag que excluiu o MST e até uma censura contra a sua participação em um programa da TVE. O saldo é de derrota?
João Pedro Stedile
- Foram dias de sacrifícios, mas não de derrotas. Nossa avaliação é que foi o governo quem enfrentou uma derrota política, que começou nas comemorações dos 500 anos em Porto Seguro. O governo sabe que não tem base popular e, sentindo-se derrotado, embora forte, como todo forte acuado, reagiu. E reagiu contra a parte mais fraca, que éramos nós.
Mas, na essência, ele (o governo) não resolveu nenhum dos problemas que produziram as mobilizações do último mês. Em vez de perguntar a causa das mobilizações, resolveu simplesmente satanizar o MST e adotar duas táticas: repressão e uma intensa propaganda nos meios de comunicação para tentar nos isolar da sociedade. Mas muitas das ações de repressão se voltaram contra o próprio governo, como a censura à minha entrevista e o assassinato do trabalhador no Paraná.

Folha - E o pacote de ajuda à Contag, que excluiu o MST? O sr. acha que a Contag foi usada como "inocente útil" pelo o governo?
Stedile
- O governo negociou a pauta da Contag, que não tem nada a ver com a nossa. São os companheiros da Contag que têm mais moral para responder a esta pergunta. Mas, na minha interpretação, as medidas do governo para a Contag foram apenas para efeito de propaganda. O governo disse para a sociedade: "Viu como eu atendo aqueles bonzinhos? Mas aqueles "brabinhos" eu não atendo". Pura propaganda.

Folha - Falando em "brabinhos", o sr. não acha que o MST exagerou durante as invasões a prédios públicos? Vimos cenas na TV de sem-terra jogando extintores contra vidros públicos. O que o sr. tem a dizer aos contribuintes? Isso não reforça a imagem negativa que parte da sociedade tem do MST?
Stedile
- Primeiro, desde que o movimento existe, há 15 anos, nós sempre fizemos ocupações de terra, passeatas, acampamentos e ocupações de prédios públicos. O que mudou e causou a reação violenta do governo foi que, desta vez, nós tivemos a capacidade de organizar ocupações e vigílias nos prédios do Ministério da Fazenda, que formam o núcleo do poder político deste país. Como conseguimos fazer em todas as capitais e contra o inimigo central que sustenta o modelo que está aí, eles reagiram violentamente.
Nossa orientação foi clara: nenhuma depredação de prédio público, nenhuma retenção de funcionários, apenas vigílias para mostrar que o país está numa crise por causa do atual modelo econômico. Se você for contabilizar as perdas, você tem razão. Foi um vidro quebrado no Mato Grosso, outro vidro quebrado em São Paulo, um e outro incidente que não partiu de orientação nossa.

Folha - Na sua opinião, o que seria melhor para o Brasil: continuar este movimento dialético, de pressão, ou partir logo para algo mais violento, uma revolução?
Stedile
- Eu acho que a sociedade brasileira está em uma encruzilhada. O modelo de industrialização entrou em crise e uma grande parcela da elite brasileira abandonou a idéia de um projeto nacional e resolveu se entregar de corpo e alma ao capitalismo internacional. É simbólico que o núcleo econômico do governo seja exercido hoje por pessoas que trabalhavam para organismos e investidores internacionais. Essa gente abandonou a idéia de pensar um projeto nacional. Só que eles se esqueceram de que aqui no Brasil ainda tem povo, tem pobre.
O que é preciso é um grande debate nacional entre entidades, a imprensa e as pessoas que acreditam que ainda é possível o Brasil se desenvolver como uma nação autônoma e não só com índices de crescimento econômico no PIB, pois isso é muito fácil.
Não é verdade que o desemprego seja um problema internacional. É o modelo brasileiro que está gerando isso. Nós queremos terra, moradia e educação para todos. Esse é o modelo que, para acontecer -não somos ingênuos- precisa que a sociedade passe por um processo de grandes mobilizações, como as diretas-já.

Folha - Mas o país tem uma democracia para isso. Temos eleições a cada quatro anos para escolher quem vai governar. O sr. está pregando uma ruptura do modelo?
Stedile
- Não é isso.

Folha - O presidente conseguiu um segundo mandato, e a oposição foi derrotada pregando algo diferente. Em tese, a maioria estava concordando com o modelo, não?
Stedile
- A oposição não ganhou porque o poder econômico usou todos os instrumentos que tinha a seu alcance -comunicação, propaganda e dinheiro- para jogar os próprios pobres contra o Lula.

Folha - Mas isso não é do jogo? Não é da democracia?
Stedile
- Usar poder econômico, comprar deputados, manipular a imprensa, ter o monopólio da propaganda -isso não é democracia. Até hoje não está explicado como o Fernando Henrique conseguiu mudar a Constituição e aprovar a reeleição.

Folha - Mas o que o sr. propõe?
Stedile
- Estou propondo um grande movimento social, como foram as diretas-já. Todas as mudanças sociais e políticas que aconteceram no Brasil só aconteceram porque a sociedade foi para as ruas.

Folha - Mas para ter uma sociedade nas ruas, a sociedade precisa estar disposta a ir para as ruas. Por que ela ainda não foi?
Stedile
- Porque a sociedade está desanimada com a bandalheira da política nacional. Está acachapada pelo processo de desemprego e empobrecimento. E, do ponto de vista histórico brasileiro, as grande mobilizações seguem ciclos históricos e nós, infelizmente, estamos em um ponto de refluxo do movimento de massas. Mas este refluxo, que vem desde 89 com a derrota do Lula, não é derradeiro. Estou absolutamente convencido de que em algum momento, e muito breve, haverá grandes mobilizações sociais.

Folha - O sr. não teme ficar falando sozinho?
Stedile
- O movimento sem terra e as nossas lideranças andam no meio do povo, no meio da rua. E o povo está "puto da cara". O povo está insatisfeito e os pobres estão começando a se dar conta de que o Plano Real é uma fantasia, que não resolveu o problema deles e que, em algum momento, vão ser criadas as condições para esta sociedade se manifestar.

Folha - Essa onda já não passou? Nos últimos dois anos, o país atravessou uma crise muito mais profunda e agora há no horizonte alguma expectativa de crescimento. Quem acredita em indicador macroeconômico diz que parou de piorar. De novo, o MST não vai ficar falando sozinho?
Stedile
- Não. Estamos inteiramente convencidos das nossas idéias. Não só os movimentos sociais do campo pensam como nós. Os movimentos das cidades estão se mobilizando.

Folha - Onde? Que eu saiba, tirando o MST, não há nenhuma grande mobilização.
Stedile
- O governo criou uma ilusão de que iria melhorar as condições de vida da população e não o fez, e isso é o que explica o fato de ele insistir na propaganda e não melhorar os índices de popularidade. As pessoas vêem a propaganda, mas constatam que falta dinheiro no final do mês.
O governo, é verdade, pode até melhorar os índices macroeconômicos, mas isso não vai, necessariamente, representar aumento na taxa de emprego. E, se representar, vai ser de quem já tem o segundo grau completo, de quem já tem formação e conhece computadores. A grande massa já está fora desse mercado. É o modelo que está errado. É claro que os 15% do Brasil que estão ganhando dinheiro me acham uma besta, um dinossauro atrasado. Mas e o resto do povo?

Folha - Mas o modelo que o MST propõe, de levar o homem ao campo, aos assentamentos, não é de fato um modelo ultrapassado? O sr. pode até dar uma agricultura de subsistência para essa massa de desempregados, mas, dentro do modelo macroeconômico, isso não funciona. O sr. não concorda?
Stedile
- Concordo. Mas esse modelo está ultrapassado para os países desenvolvidos, que já resolveram seus problemas básicos, o que não é o caso do Brasil. E o modelo do Primeiro Mundo não serve para resolver nossos problemas. Por isso é que temos de criar um projeto nacional nosso.
Mas você tem razão na outra parte da pergunta. E esse é o nosso dilema. É por isso que o movimento sem terra se politizou neste sentido. E, vou te confessar, nós acreditávamos que, para resolver o problema da pobreza, bastava ocupar latifúndios. Havia uma consciência ingênua da nossa parte de achar que com terra era possível resolver tudo. Acontece agora que, com este novo modelo, que só atende às grandes agroindústrias, a agricultura está inviabilizada.

Folha - E o que o sr. pretende fazer com o povo agora?
Stedile
- Aí entra o nosso projeto. Defendemos uma reestruturação da economia brasileira. Temos de parar de mandar dinheiro para fora. No ano passado, o Brasil pagou US$ 50 bilhões somando juros, amortizações e remessas de lucros. Se esse dinheiro fosse reaplicado na economia nacional, em outros setores produtivos, de bens de massa, nós resolveríamos os problemas.
Qual é o nosso modelo? Em vez de produzir bens de consumo de luxo, Mitsubishis e não sei mais o quê, vamos produzir bens de consumo de massa. Nosso povo está precisando de calçado, de roupa, de casa. Se a gente se meter a produzir as 10 milhões de moradias de pessoas que moram em barracos, imagine o que vai ser preciso de cimento, vidros, luz elétrica. Será um "boom" de desenvolvimento.
E, nesse modelo, tem de ter distribuição de renda. Tem de ter salário maior. Se tiver mais renda, principalmente nas grandes cidades, isso vai viabilizar uma agricultura familiar que vai dar mais trabalho a milhões de brasileiros. Hoje a gente produz leite e não tem quem compre.

Folha - Mas o que o sr. está dizendo então é que a atual demanda do MST, que é terra para a reforma agrária, não vai resolver nada. Que é preciso primeiro resolver o problema dos salários nas cidades para que a reforma agrária seja feita depois, não é isso?
Stedile
- É concomitante.

Folha - Mas o sr. disse que, para ter a produção no campo, primeiro é precisa ter o mercado na cidade, certo?
Stedile
- Certo.

Folha - Então hoje vocês estão usando o movimento apenas politicamente, correto?
Stedile
- Não senhor. Há duas etapas nesta nossa luta contra o governo...

Folha - Então por que vocês não começam pela etapa que vai gerar a demanda pela produção no campo? Não faz sentido o que o sr. está dizendo. Vocês não estão com o foco errado?
Stedile
- Não.

Folha - Vocês não estão querendo terra?
Stedile
- Sim.

Folha - Terra para produzir para quem, já que o sr. acaba de dizer que dentro das cidades as pessoas não têm dinheiro para comprar o que vai ser produzido nessa terra?
Stedile
- A nossa pauta e o nosso processo de negociação com o governo se dá em duas etapas. A primeira é que nós temos de resolver imediatamente os problemas que temos: assentar quem está acampado nas estradas e viabilizar quem já tem terra.
Agora, quem politizou o movimento foi o modelo econômico do governo. Nós nos demos conta que só a terra e o crédito não resolvem o progresso econômico e o desenvolvimento do meio rural, pois o modelo exclui a agricultura. A segunda etapa da nossa pauta, então, não é com o governo, mas com a sociedade. A sociedade tem de entender que nós só vamos resolver os problemas se mudarmos o modelo.

Folha - A maior parte dos assentamentos vive de crédito e não é auto-sustentável, certo?
Stedile
- Não é.

Folha - Então, o sr. não concorda que esta demanda por assentamentos, por dinheiro colocado ali, também não vai levar ao desenvolvimento?
Stedile
- Se não mudar o modelo, não leva. E mesmo que seja só para manter a sobrevivência já vale. A agricultura no mundo todo só se sustenta com subsídio.

Folha - Mas, se é para manter a sobrevivência, não seria melhor e mais barato dar cestas básicas?
Stedile
- A cesta básica é mendicância. É humilhação.

Folha - Também não é humilhação um assentado ficar em uma terra sem perspectivas sobrevivendo à custa de créditos? Não é assistencialismo do mesmo jeito?
Stedile
- Há um subsídio embutido no crédito, que é o que nós queremos, mas esse dinheiro não é de graça. O cara não fica lá sentado, fumando. Ele pega esse dinheiro e compra umas vaquinhas, melhora o galpão dele. O problema é que na hora de vender o leite, o preço está tão baixo que ele não consegue pagar o crédito. Então, a sociedade acaba transferindo um subsídio social para ele continuar com as suas vaquinhas de leite.
Isso não é mendicância. A cesta básica é humilhante. As pessoas precisam trabalhar. E, em todo lugar do mundo, a agricultura tem subsídio.

Folha - Levando em conta esses dois pilares que o sr. mencionou para o seu projeto, campo e cidade, o MST tem a intenção de levar o movimento para dentro dos grandes centros urbanos?
Stedile
- Isso não é verdade. Nos acusam disso, mas não é verdade.

Folha - Mas os grandes problemas não estão nas cidades? O sr. mesmo disse. E, se for factível mesmo algum tipo de mobilização, não é dentro das cidades que ela vai começar a existir? Vocês não estão com o enfoque errado?
Stedile
- Eu não tenho a fórmula para tudo. O que eu estou propondo é que a sociedade discuta outro projeto. Uma das saídas é ter indústrias de consumo de massa que dêem muito emprego, como é a indústria de alimentos, de vestuário e a construção civil. Mas essa indústria só vai ter demanda se houver distribuição de renda. Por isso proponho que a sociedade discuta outro projeto.

Folha - Para isso teremos eleições daqui a dois anos. Como é que os srs. vão se comportar e que discurso pretendem adotar?
Stedile
- Nosso discurso será este que acabo de dizer. A crise é tão grave que precisamos discutir projeto. Recomendo às pessoas que se organizem e discutam projetos.

Folha - E façam o que depois?
Stedile
- Que passem às ruas para dizer para a sociedade e para o governo quais as mudanças que querem.

Folha - O sr. pregaria algo mais incisivo? Por exemplo: o MST invade prédios. O sr. acha que a sociedade deveria fazer a mesma coisa?
Stedile
- Quanto maior for a mobilização, mais pacífica será a manifestação. Se botarmos 5 milhões na avenida Paulista pedindo para o (Celso) Pitta ir embora, você não acha que ele sai?

Folha - Sim. Mas o sr. não vê que esses 5 milhões não aparecem?
Stedile
- Reconheço que não é fácil as pessoas se mobilizarem, mas isso não quer dizer que elas nunca mais vão se mobilizar. Dentro de alguns anos você vai ver. Nós agora estamos no refluxo, eu reconheço, estamos na maré baixa. Mas eu tenho certeza de que a Lua vai mudar.

Folha - O MST vai apoiar o Lula em 2002?
Stedile
- Se ele for candidato, achamos que ainda é o melhor candidato, com maior potencial eleitoral na esquerda. Mas, antes de votar no Lula, é preciso que a sociedade brasileira se mobilize e discuta projetos. É o que eu estava falando antes.

Folha - Mas o sr. acha que essa Lua muda em dois anos?
Stedile
- Muda.

Folha - Mesmo com o país crescendo? Não é uma aposta de risco? O MST e a esquerda, o sr. mesmo admite, estão em um momento de maré baixa, e a expectativa é que o país cresça um pouco. Vocês não vão perder o bonde de novo?
Stedile
- Estamos fazendo futurologia. Eu expus a nossa tese e não quero ser dono da verdade. Cobrem-nos daqui a cinco anos.

Folha - E como o sr. avalia movimentos como o zapatismo no México e as Farc na Colômbia? É uma saída para o Brasil?
Stedile
- Cada realidade produz a sua forma de luta. Não existe modelo. Não acho que exista espaço no Brasil para um movimento armado. Isso é tudo invenção contra nós. Há 15 anos estão falando que estamos formando um movimento maoísta no Brasil. Isso é uma estupidez. Estamos fora. Nossa linha é conscientizar as pessoas, organizar os pobres e dizer que eles têm o direito à luta.


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