São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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QUESTÃO AGRÁRIA
Movimento cobra "pedágio" de dinheiro de programa do governo federal enviado para assentamentos
MST desvia dinheiro da reforma agrária

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O MST está desviando dinheiro da reforma agrária. Apuração realizada pela Folha nos últimos 20 dias demonstra que o movimento montou um esquema para retirar parte do seu sustento financeiro dos cofres do governo. Por vezes, os recursos são interceptados antes mesmo de chegar às mãos dos assentados.
O "pedágio financeiro" do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) recolhe 3% do dinheiro enviado aos assentamentos controlados pelo movimento. Curiosamente, o esquema se serve de uma estrutura montada pelo próprio governo.
Todos os assentamentos do país dispõem de funcionários públicos contratados para prestar assistência técnica aos agricultores. Esses técnicos podem ser da Emater ou do Projeto Lumiar, idealizado por Brasília.
Nos seus assentamentos, o MST dá preferência ao pessoal do Lumiar. Eles são profissionais autônomos, pagos pelo Incra, em convênios com bancos oficiais. Mas é o MST quem os indica. E são eles, na maior parte dos casos, que abrem os cofres do Tesouro Nacional para o movimento dos sem-terra. O esquema funciona assim:
1) cada assentado tem direito a crédito oficial de até R$ 9.500;
2) a maior parte do empréstimo é liberada mediante apresentação de notas fiscais, na boca do caixa de três bancos oficiais: Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste;
3) os bancos só realizam o pagamento se a nota trouxer o visto do técnico da Emater ou do Lumiar;
4) os profissionais indicados pelo MST condicionam a liberação das notas ao pagamento do pedágio de 3%;
5) muitas vezes, os técnicos recolhem, eles mesmos, o pedágio, ora das mãos dos assentados, ora dos empresários escolhidos para fornecer máquinas, equipamentos e insumos para os assentamentos.
Lideranças do movimento costumam afirmar que o pedágio é fruto de contribuição voluntária. Há, de fato, agricultores que repassam o dinheiro de bom grado. Mas há também os que se recusam a fazê-lo.
Foi o que aconteceu, por exemplo, há poucas semanas, no município de Bituruna, no interior do Paraná. Um grupo de agricultores ousou negar dinheiro ao MST. E sentiu a mão forte do movimento.
Os técnicos destacados para dar assistência àquele grupo negavam-se a assinar as notas dos recalcitrantes que, em consequência, não conseguiam retirar no banco o dinheiro que lhes fora destinado pelo governo.
A notícia chegou aos ouvidos da direção do Incra em Curitiba. Fez-se uma primeira investigação. As suspeitas levantadas revelam métodos de um MST ainda desconhecido da opinião pública. Alguns exemplos:
1) segundo depoimentos dos assentados, além de não vistar as notas daqueles que se negassem a pagar os 3%, os técnicos exigiam que as compras de fertilizantes e implementos agrícolas fossem feitas junto a empresas que topassem incluir no preço dos produtos o pedágio do MST;
2) os técnicos assinaram recibos que podem ser frios. Os documentos se referem a despesas com a roçada do terreno. Percebe-se pela caligrafia que muitos foram escritos pela mesma pessoa. Alguns assentados disseram ao Incra que, na verdade, o dinheiro serviu para comprar alimentos e, de novo, para pagar o pedágio de 3% do MST;
3) uma empresa chamada F.S. Engel & Cia Ltda, de São José dos Pinhais, vendeu aos assentados carroças, arados, plantadeiras e arames farpados. Mas as notas fiscais são de prestação de serviços. Para piorar, boa parte do material, já faturada e paga, não foi entregue;
4) outra empresa, a Cotracam -Comércio de Tratores e Caminhões Ltda, de União da Vitória, vendeu tratores usados aos assentados. Como o projeto de assentamento não previa a compra de tratores, a empresa anotou nas notas fiscais os produtos cuja compra havia sido aprovada pelo Incra.
A Folha localizou um dos sócios da Cotracam, Pascoal Lissone. "Por que vocês venderam tratores aos assentados e nas notas colocaram outros tipos de produtos?" Pascoal responde: "Não estou entendendo. Você me pega de calça curta".
A reportagem insiste na pergunta. E Pascoal: "Tudo o que consta das notas fiscais nós comercializamos. O que estava no projeto e foi transformado em tratores foi feito com a anuência do MST. Isso foi um benefício para os assentados".
O diálogo, todo ele gravado, prossegue: "Outro ponto mencionado na sindicância é o fato de vocês terem incluído no preço o repasse de 3% para o MST. Por que isso foi feito?". O sócio da Cotracam titubeia: "Olha, isso aí... E aí no, no, no repasse do MST de 3, 3, 3%... Olha, isso aí não... Só um minuto que eu quero ver isso aqui".
Passado um minuto e 30 segundos, Pascoal retorna ao telefone: "Você falou em repasse de 3%? Não, não. Nós aqui damos desconto. E esse desconto foi dado. Foi dado um desconto de 3% e em algumas coisas até foi dado um desconto maior. Eles fizeram negócios excelentes aqui. Agora, se isso foi transformado em... como é que você falou, repasse? Eu não repassei nada a ninguém".
A Folha obteve cópias das notas fiscais da Cotracam. A empresa anota em todas elas: "Desconto: 0,00".

Cobrança
Em contato com Cláudia Cisotto, a técnica que o Incra contratou para trabalhar em assentamentos de Bituruna, a Folha descobriu que o empresário Pascoal Lissone mente. Cláudia recebeu, sim, cheque da empresa Cotracam com o pedágio de 3% destinado ao MST.
Leia abaixo trecho do diálogo que a reportagem manteve com a técnica Cláudia Cisotto:

Folha - As empresas também contribuíram com os 3% para o MST?
Cláudia -
Isso eu não poderia afirmar.

Folha - Mas você não acompanhou as compras?
Cláudia -
A gente acompanha as liberações. E teve empresas que contribuíram.

Folha - Com 3%?
Cláudia -
Sim, teve empresas que contribuíram (...) Teve empresas que o pessoal foi fazer a cobran..., pedir a contribuição, e o pessoal efetuou o pagamento pra mim, enquanto tesoureira. Por um lado eu sou técnica, mas por outro lado eu também tenho a responsabilidade da tesouraria da associação dos assentados.
(...)

Folha - Eu conversei com um dos sócios da empresa Cotracam. Ele informa que não fez repasse nenhum para o MST. Apenas deu descontos nas notas fiscais. Se isso virou comissão de 3%, ele diz não saber. Isso é diferente de dar uma contribuição espontânea, não?
Cláudia -
(...) As contribuições quem faz é o assentado. As fontes, se é da venda do feijão, do milho, da venda de erva-mate, não sei.

Folha - Mas você me disse que recebe as contribuições. Como pode não saber de onde vem o dinheiro? Você recebeu um cheque da Cotracam, por exemplo?
Cláudia -
Cotracaaaaam... Foi um dirigente que me repassou um cheque (...) Foi depositado direto na conta.

Folha - Em que conta?
Cláudia -
Ahn?

Folha - Na conta de quem?
Cláudia -
Ahn?

Folha - Foi depositado direto na conta de quem?
Cláudia -
Esse cheque?

Folha - Exatamente.
Cláudia -
Bom, como a gente tá com uma pendência do registro...

Folha - Que registro?
Cláudia -
Registro da última ata da associação, para abertura da conta, então foi depositado na minha conta e repassado depois para o caixa da região.
A conversa com Cláudia também foi gravada. Ela nega que a "contribuição", como se refere ao pedágio, seja compulsória. E informa que o dinheiro é utilizado em despesas do MST, tais como pagamento de combustível e financiamento de manifestações públicas.
Os detalhes da sindicância feita em Bituruna foram discutidos por nove pessoas, em reunião realizada na última segunda-feira, no número 1.220 da rua Dr. Favre, no centro de Curitiba, onde funciona a superintendência do Incra.
Tomaram parte do encontro cinco funcionários do próprio Incra, um do Banco do Brasil, um do governo do Paraná e outro de um sindicato de agricultores. Convidado, o MST não enviou representante.
Decidiu-se encaminhar o resultado da apuração preliminar para a Polícia Federal, para o Ministério Público e para as receitas estadual e federal.

Incra
O presidente do Incra, Orlando Muniz, sai em defesa do Projeto Lumiar. Diz que os desvios devem ser combatidos. Mas argumenta que o programa visa aproximar os técnicos das comunidades dos assentamentos.
A reportagem da Folha foi ao Paraná depois de ter sido informada de que é naquele Estado que o MST possui uma de suas mais bem azeitadas engrenagens de captação de recursos.
O esquema montado em Bituruna é amador se comparado a outro implantado no município de Laranjeiras do Sul, também no Paraná. Ali, o MST controla uma cooperativa com porte de média empresa.
Chama-se Coagri (Cooperativa de Trabalhadores Rurais e Reforma Agrária do Centro Oeste do Paraná Ltda). É administrada por 11 diretores, todos provenientes dos quadros do movimento dos sem-terra.
Análise feita pela Embrapa do Paraná demonstra que a Coagri está quebrada. Ainda assim, a cooperativa continua recebendo praticamente todo o dinheiro que o governo destina para os assentamentos daquela região.
Não é pouco dinheiro. Cada safra dos assentados no centro-oeste paranaense movimenta algo que oscila entre R$ 4 milhões e R$ 6 milhões. Só entre os dias 9 de novembro e o 1º de dezembro de 99, a Coagri recebeu dos cofres públicos, via Banco do Brasil, R$ 3,8 milhões.
O dinheiro deveria ser integralmente usado nos assentamentos. Mas parte dele escoa para o MST. A própria Coagri retém o pedágio de 3%.
A exemplo do que ocorre em Bituruna, o esquema do MST no centro-oeste paranaense se apóia nos agentes do Projeto Lumiar, pagos pelo Incra. Só no assentamento chamado Ireno Alves, em Rio Bonito do Iguaçu, há 11 técnicos, dos quais 4 trabalham dentro da cooperativa.
Além da Coagri, o MST controla no Paraná outras sete cooperativas. Em todo o país, o movimento opera pouco mais de 60 organizações do gênero, todas envolvidas no esquema de coleta do pedágio. Elas estão reunidas na Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda).
Há ainda a Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola). Criada em 86, ela recebe em nome do MST doações dentro e fora do país, celebra convênios e ajuda a pagar as contas.
No mais, a contabilidade do MST é clandestina e descentralizada. Há responsáveis pelas finanças do movimento em níveis municipal e estadual.


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