São Paulo, domingo, 14 de maio de 2000


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QUESTÃO INDÍGENA
Tremembés pedem terra na Justiça
Conflito de 300 anos opõe índios a brancos no Ceará

KAMILA FERNANDES
DA AGÊNCIA FOLHA, EM ITAREMA

PAULO MOTA
DA AGÊNCIA FOLHA

Um vilarejo à beira-mar no Ceará registra um conflito entre índios e brancos que completou 300 anos. A história, que começou com sangue e hoje corre nos tribunais, teve uma trégua de 43 anos, quando as areias de uma duna móvel cobriram a igreja do povoado de Almofala, erguida pelos tremembés no século 18.
O reaparecimento da igreja reavivou a rivalidade entre índios e os outros moradores da comunidade, localizada em Itarema (220 km a noroeste de Fortaleza). Tremembés e portugueses passaram a ser rivais desde a ocupação da região por ibéricos e bandeirantes, no final do século 17.
Entre 1898 e 1941, período em que a igreja e boa parte do vilarejo estiveram cobertos por uma gigantesca duna móvel, os conflitos foram esquecidos. Para os índios, a igreja é um símbolo do seu direito sobre as terras do lugarejo.
Nos anos 40, porém, com o reaparecimento da igreja de Nossa Senhora da Conceição, única construção do vilarejo que resistiu à ação do tempo e da areia, os tremembés decidiram voltar a lutar por aquilo que haviam perdido. A luta, hoje, é judicial.
Uma profecia declamada, segundo a tradição, por um antigo líder tremembé é relembrada pelos índios: "Isso tudo acabou, mas vai chegar o tempo em que tudo vai recomeçar".
Raimunda Venâncio, 29, mãe de seis filhos e professora da escolinha tremembé, que vai até a 3ª série do ensino fundamental (ela mesma completou apenas a 4ª série), repete a frase com orgulho. Foi um ascendente de sua família, José Miguel Ferreira, o responsável pelo vaticínio. "Ele falou durante o ritual sagrado, o "torém", e levamos isso a sério, porque temos certeza de que a terra voltará a ser nossa."
Há todo um mistério em torno da igreja em estilo barroco, construída pelos próprios índios convertidos ao cristianismo após a chamada "guerra dos bárbaros", entre 1706 e 1712.
Não se sabe ao certo o número de tremembés que viviam na região quando chegaram os portugueses. Sabe-se apenas que, pela área que habitavam (do Rio Grande do Norte ao Maranhão), eram nômades e muito numerosos. Hoje, os descendentes dos tremembés são cerca de 3.500.
O que os índios contam é que houve um grande massacre com a chegada dos estrangeiros e que eles quase foram extintos. Os moradores mais antigos do vilarejo afirmam que encontraram diversas covas no chão da igreja, onde supostamente estariam enterrados índios mortos durante a conquista da região de Almofala.
"Eu era bem pequena, mas comecei a mexer no chão da igreja e vi que, no meio de umas valas, existiam uns ossos bem amarelos, que, se você pegasse, desmanchavam na mão, de tão velhos", disse Maria José Santos Souza, 64, uma das líderes tremembés do vilarejo.
O historiador Francisco José Pinheiro, do departamento de história da Universidade Federal do Ceará, diz que os conflitos foram gerados por causa da terra.
"Portugueses que recebiam legados de terras contratavam bandeirantes para combater os índios e tomar posse da região para a pecuária. A idéia era garantir a liberdade do gado."
Os habitantes do vilarejo que não são índios discordam da revolta. "Nem índios eles são mais! Só falam que são para roubar a terra dos outros", diz Maria Amália do Nascimento, 72. Ela e o marido Luiz Nascimento, 100, admitem ter ascendência indígena, mas se recusam a ser chamados de tremembés. "Ninguém tem cara de índio, não."
Os conflitos pela terra fizeram com que cinco tremembés fossem presos em março último, depois de agredirem outra índia, casada com um homem que não pertence à comunidade. Depois de três dias na cadeia, eles foram soltos.
A Funai apóia a reivindicação dos tremembés e reconhece que a área deve ser demarcada -a delimitação do terreno a ser entregue aos índios foi oficializada em 1993. Desde então, o processo está correndo na Justiça e parou no Superior Tribunal de Justiça, onde aguarda a decisão final.
A angústia dos moradores cresce com a ação do mar, que está invadindo a região, destruindo coqueirais e boa parte da paisagem: "É a profecia se cumprindo. Tudo se acabando. Mas tudo vai voltar a ser nosso", afirma Venâncio.


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