São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NORDESTE
Sem comida, flagelados saqueiam depósitos oficiais, colocam tema na ordem do dia e abalam governo FHC
Na seca de 98, fome mostra a cara do saque

Orlando Brito
Ana Margarida Oliveira, 91, posa com mãos e pés juntos no local onde produz óleo de semente de macaúba, que vende a RÏ 0,30 o litro em Abaira (CE)


ELIO GASPARI
e a Pernambuco


Há secas que mudam a história das secas. A de 1877 cravou o tema na consciência nacional. A de 1915 provocou o envolvimento do governo com suas consequências. A de 1958 gerou a Sudene. A de 1998 transpôs os saques da fome do sertão nordestino para a sala de jantar do Brasil.
Em pouco mais de 60 dias, os saques seculares da seca transtornaram o governo, jogaram o presidente Fernando Henrique Cardoso para uma rota de colisão com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, impulsionaram uma onda de radicalismo oportunista do movimento dos sem-terra e isolaram quatro séculos de empulhação nos municípios pobres do sertão.
Quase todos os prefeitos que tentaram dispersar multidões prometendo comida para a semana seguinte acabaram provocando saques em suas cidades. Nenhum cidadão brasileiro foi ferido por arma de fogo, assim como não se conseguiu manter na cadeia um só saqueador. Isso a despeito da vontade do Ministro da Justiça, Renan Calheiros, que inventou a expressão "indústria do saque".
Nenhum governador nordestino orgulhou-se de ter mandado atacar os saqueadores e quase todos mantiveram a polícia em "banho-maria". O pernambucano Miguel Arraes, que viu flagelados reunidos em campos de concentração durante a seca de 1932, informou: "O saque é um problema social e não policial". O cearense Tasso Jereissati desarmou a tropa de choque da Polícia Militar a caminho da possibilidade de um confronto com a militância do sindicalismo rural.
Sentado numa varanda nos fundos de sua casa em Crateús, horas antes de deixar a diocese que comandou por 34 anos (12 com seca), o bispo dom Antonio Fragoso, 77 anos, mostrava uma ponta de satisfação: "As coisas mudaram. Houve um salto muito bonito. Em 1970, o nordestino morria como o sapo debaixo do pé do boi, sem gritar. Orgulhavam-se da esmola".
Entre 28 de março e o início da semana passada, foram saqueados mais de 50 depósitos de comida do governo e menos de 10 mercados privados. É possível que em 50 cidades os saques tenham sido impedidos por doações semivoluntárias do comércio. Algo como 300 caminhões foram parados por barreiras que lhes tomaram pedágios variáveis: de um saco de laranjas (cinco para cada saqueador) a 23 t de farinha (a carga de uma carreta graneleira). A conta dificilmente ficou em menos de 500 t de alimentos, equivalente a 10% do total da comida armazenada em depósitos oficiais. Começaram porque faltava socorro e parecem ter arrefecido desde os primeiros dias deste mês, quando cestas básicas do governo, peixe dos amazonenses e grãos do Paraná começaram a chegar ao sertão.
Muita coisa mudou no Nordeste. Como diz o poeta Patativa do Assaré, "aumentou a proteção". A seca de 1877 produziu o romance "A Fome", do farmacêutico cearense Rodolfo Teófilo, que percorria os campos de concentração vacinando flagelados. Era uma época em que as frentes de trabalho continham equipes de sepultamento.
A de 1915 resultou num clássico de Rachel de Queiroz e as seguintes criaram as vidas secas de Fabiano e sua cadela Baleia, de Graciliano Ramos. Todos giraram em torno da figura de um flagelado (fazendeiro para Teófilo, agregado para Rachel e sem-terra para Graciliano). Eles deixam suas roças esturricadas e caminham para Fortaleza, ou para uma terra desconhecida. Esses personagens, saídos do cotidiano de todas as secas, caminhavam em torno de 20 km por dia e cruzavam com a morte debaixo do sol. Eles não existem mais. Vão para a estrada, pedem carona aos caminhões e, antes do fim do dia seguinte, chegam a qualquer ponto do litoral. Até agora, o fluxo de migrantes para as capitais foi irrelevante, mas a seca só acaba (quando acaba) em outubro.
Também não existem os velhos abandonados, morrendo em casebres. Pelo menos 2 milhões de pessoas com mais de 60 anos que vivem no semi-árido nordestino recebem um salário mínimo por mês da Previdência Social (aquela que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, responsabiliza pela vulnerabilidade do real). Nos municípios com menos de 100 mil habitantes, no coração da seca, sobre o escudo de rochas cristalinas da região, vivem cerca de 9 milhões de pessoas. O dinheiro dos aposentados representa mais de 20% da renda monetária do pedaço. Isso significa que há miséria na região, mas reduz a vulnerabilidade dos anciãos. "Me dão R$ 117,50. É um garrote. Tem garrote a R$ 75. Sem isso, eu não escapava", explica Teofilo de Freitas, vivendo numa casa de pau-a-pique construída sobre terra do DNER, entre Morada Nova e Ibicuintinga, no Ceará. Ele criou os filhos e hoje sustenta uma neta de 19 anos. Seu vizinho, Francisco Ferreira da Silva, 75 anos, vai mais longe: "Para os mais velhos está bom. Para os jovens está ruim e é por isso que eles bebem cachaça."
Não há uma Etiópia no sertão nordestino, mas o que lá há está mais próximo da Etiópia do que do mundo encantado que a máquina de propaganda do tucanato criou. Enquanto a gente magra pede comida e trabalho ao governo, uma imobiliária de Fortaleza lançou um edifício no bairro gordo da Aldeota oferecendo os seguintes aditivos: elevador social com gerador de energia própria, poço exclusivo e guarita de segurança.
Nessa sociedade onde o andar de baixo pede socorro ao Estado e o de cima procura se afastar até mesmo de seus serviços de água, eletricidade e segurança, é fácil perceber quem vive melhor, mas não chega a ser difícil entender quem resolveu viver um equívoco. (A título de ilustração geocreditícia, o bairro da Aldeota está no Polígono das Secas, habilita-se a receber recursos da Sudene e, se deixarem, a indústria da construção civil de Fortaleza descola um dinheirinho barato da Caixa Econômica por conta da seca.)
Há mais saúde pública. É difícil achar um hospital sem leitos vagos. O bispo dom Adélio Tomasin, um vêneto de 67 anos com mãos de bárbaro e olhos de artista de cinema, construiu um hospital-maternidade com 175 leitos. Tem cinco anos de existência, nunca lotou nem teve infecção hospitalar. Desde 1996 não registra morte de mãe. Mesmo numa noite de sábado, há vagas, médicos (três) e bom atendimento no Hospital Pronto-Socorro Infantil, no velho bairro de Urubu, na periferia de Fortaleza. Debaixo de seu chão, a areia das dunas da Lagoa Funda guarda um segredo: era ali que se enterravam os mortos da varíola na seca de 1877.
Nesses hospitais, e em vários outros, nenhum médico terminou um plantão sem ver o serviço da fome. "Estou aqui há 20 anos, não houve dia em que não visse um desnutrido. Hoje mesmo internei dois. John, um menino de Maracanaú, com diarréia, 9 anos e 20 kg, quando deveria ter 26 kg, e Brana, de 2 anos, com pneumonia e 10 kg, quando devia ter 14 kg", informa o médico Valdery Vieira de Paula, filho de um sapateiro com uma lavadeira, educado na rede pública de ensino.
Se a miséria mudou, mudou também a cabeça dos miseráveis. Em primeiro lugar, já têm para onde correr. Quando a PM desbaratou a pequena multidão que obstruía a BR-116, em meados de abril, o padre Francisco Marques correu para a igreja e dobrou o sino, chamando o povo e oferecendo-lhe abrigo. Mesmo d. Tomasin, um bispo mais interessado em realizações do que em teologias libertárias ("Em geral, teólogo que sabe tudo não acredita em Deus"), reclama quando ouve a palavra saque: "Eu gostaria que FHC viesse aqui me explicar o que é que essa gente deve fazer. Esperar a morte? Deveriam vir ele, a mulher e os filhos. Ele diz que tem fome e vai à prefeitura. O prefeito vai dizer que é mentira. Uma mãe de 35 anos me disse que vai dormir pensando em morrer para não ver mais suas crianças chorando. Esta seca é diferente, porque talvez o Brasil já não aguente mais".
Além de uma igreja mudada (o vigário de "A Fome" era gordo, inacessível e demófobo), há hoje no Nordeste 1.800 sindicatos de trabalhadores rurais, com mais de 1 milhão de sindicalizados no semi-árido. Muitos deles estão nas mãos de pelegos, mas, desde os anos 70, quando nasceram, foram raros os casos nos quais essa espécie, uma vez desalojada, tenha conseguido retornar.
A seca de 98 incorporou ao vocabulário duas expressões tão fortes quanto exageradas: invasão e saque. Ambas têm pelo menos 50 anos e servem para definir situações específicas, porém carregam uma ponta de medo do andar de baixo. É provável que haja nelas um acordo secreto entre esquerda e direita. Para a esquerda, é emocionante dizer que as cidades estão sendo invadidas ou saqueadas, pois isso pode prenunciar o dia da redenção social. Para a direita, é conveniente dizer que se está a um passo do fim do mundo, com os miseráveis saqueando o Nordeste.
Uma cidade adquire o estatuto de invadida quando algo como 500 habitantes da zona rural, dizendo-se famintos, acampam na prefeitura ou vagam pela ruas pedindo comida. Brasília já recebeu comitivas bem maiores de prefeitos, funcionários públicos, operários e empresários. Jamais se disse que foi invadida. Ademais, os invasores, em geral, são habitantes do município. Diferem os lavradores nordestinos dos invasores de Brasília num ponto essencial: querem o seu à vista, de preferência em alimentos não perecíveis. Geralmente são mandados de volta com alguns quilos de comida. Custam muito menos.
O mesmo sucede com os saques. Em 1527, Roma foi saqueada pelos alemães e um "bestalhão" chegou a gravar um grafite num afresco de Rafael no Vaticano. O Rio de Janeiro foi saqueado em 1711 pelo corsário Duguay-Troyn (nome de uma fragata da atual República Francesa). Ele levou o que quis e cobrou duro resgate. Desde 1879, quando d. Pedro 2º começou a se queixar dos atentados contra a propriedade provocados pela seca, não se conhecem casos de cidades saqueadas dessa maneira. Em geral, retiram-se alimentos de depósitos públicos e varejam-se feiras e mercadinhos. Sua ocorrência independe do tipo de regime vigente no país. Em 1970, durante a ditadura militar, quando muito deputado governista (hoje no PFL, sempre governista) seria capaz de fugir de um telefonema do professor aposentado Fernando Henrique Cardoso, diversas feiras foram saqueadas.
"Chamar isso de saque é um desrespeito ao saque", reclama dom Antonio Fragoso. Saque é tomar as terras dos índios, o ouro e o açúcar. Saque é o roubo na Previdência. Saque são os grupos de pressão que funcionam no Senado. "Nordestino não saqueia coisa alguma", reclama d. Fragoso.
Seria muito bom se fosse assim, mas o movimento dos sem-terra alterou a fisiologia dos saques. Com bases no centro-oeste de Pernambuco, seus líderes incorporaram os métodos da bandidagem da rodovia BR-116, também conhecida como "Transmaconheira". Resolveram obstruir a estrada no trecho que liga as cidades de Cabrobó e Orocó e, nas palavras de um dos seus dirigentes, fracassaram. Numa dessas ocasiões, um sem-terra morreu depois de ter as pernas esmagadas por uma carreta que rompeu o bloqueio. Tentaram um novo modo: em vez de parar o caminhão, sequestram-no, ameaçando a integridade física do motorista. Levam-no para um acampamento, a alguns quilômetros da estrada e depenam-no. Valendo-se dessa técnica, é provável que o MST, tendo organizado menos de 2 em cada 10 saques, ficou com algo próximo da metade da tonelagem saqueada. É um indicador inquietante, mas, antes que sirva para prenunciar o fim do mundo, vale lembrar que em 1997 foram saqueadas as cargas de 1.069 veículos só em São Paulo. (Nada a ver com sem-alguma coisa, bandidagem mesmo, às vezes em condomínio com a polícia.)
O Brasil já foi governado por um filho de flagelado. O ex-presidente José Sarney ouviu de seu pai a frase "eu vi a cara da fome na seca de 21". Em 1998, o Brasil viu a cara do saque.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.