São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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ELIO GASPARI

Ciro comprou o Risco Kaldor

A reforma tributária é um estimulante da má consciência do gênero humano. Todo mundo é a favor, desde que com ela pague menos impostos, mas ninguém tem paciência para ler a seu respeito. Para quem tiver pelo menos um pouco, vale a pena acompanhar a proposta defendida pelo candidato Ciro Gomes.
Ele defende a substituição dos dez grandes impostos existentes no Brasil por cinco tributos, liderados por uma taxação geral do consumo. Atualmente, quando o cidadão compra um aparelho de televisão, paga IPI, ICMS, CPMF, PIS, Pasep, Cofins. Grosseiramente, se a mercadoria custou R$ 400, deixou pelo menos R$ 200 em impostos. Como vem tudo embutido no preço, não percebe a mordida.
Ciro propõe que a televisão seja oferecida pelo seu preço efetivo (R$ 200) e a esse valor seja adicionado, na boca do caixa, o imposto de consumo. O candidato ainda não detalhou o ponto essencial de sua proposta: o tamanho da alíquota que seria cobrada na loja. Num cálculo radical, que não é dele, se alguém quisesse preservar a carga tributária de 35% em relação ao PIB, desonerando taxação da poupança e transferindo a conta para o consumo, a alíquota média deveria ficar em 43%. Em seu programa de governo, Ciro também não detalhou o sistema de fiscalização capaz de fazer com que o imposto seja arrecadado na última ponta da transação, o ato da compra. Fica a critério de cada um imaginar o preço de uma máquina capaz de garantir esse tipo de arrecadação e o montante das vendas por fora. Qualquer alíquota de dois dígitos na boca do caixa é um estímulo à sonegação e sonho da malandragem da corrupção.
A idéia da taxação do consumo é velha e boa. Além disso, de certa forma é a vigente no Brasil. Pode-se estimar que mais de dois terços da carga tributária estejam nessa ponta da atividade econômica, sempre embutida no preço final. O governo aborreceu-se com a Embratel porque ela informa aos consumidores o custo de todos os impostos que são pendurados nas suas contas. Um DDD de R$ 6 obriga o contribuinte a pingar mais R$ 2,40 para a Fazenda.
Ciro oferece também, para o futuro, um tributo "que incida especialmente sobre o consumo supérfluo ou o alto padrão de vida (imposto Kaldor), gravando, em escala altamente progressiva, a diferença entre a renda de cada contribuinte e sua poupança investida".
Kaldor, a quem Ciro se refere, não é um analgésico. Trata-se de Nicholas, lord Kaldor, economista húngaro, par do reino da Grã-Bretanha, amigo de lord Keynes e destacado pensador do grupo da Universidade de Cambridge. Morreu em 1986, aos 88 anos, era um sujeito muito divertido e conta a lenda que uma vez disse que suas idéias eram brilhantes, pena que os governos que as adotaram deram-se mal.
Nos anos 50, os governos da Índia e do Sri Lanka aceitaram suas propostas de reformas tributárias, nas quais a supertaxação do consumo era um dos ingredientes. Deram com as vacas n'água e abandonaram os projetos. Na Índia a arrecadação caiu. Há dois anos, quando seu nome entrou na roda de um debate na Câmara dos Comuns, o deputado Oliver Letwin lembrou que Kaldor assessorou as reformas tributárias de quatro países africanos "e em cada um deles deu-se um golpe em menos de seis meses". Um amigo de Kaldor reclamou, dizendo que ele foi um dos maiores economistas dos últimos 50 anos, Letwin respondeu: "O senhor está inteiramente certo. Lord Kaldor foi um grande economista. Estava errado a respeito de quase tudo que disse, mas era um grande economista".

-A proposta de reforma tributária de Ciro Gomes está no seguinte endereço, com uma janela para debate: http://www.ciro23.com.br/23/noticias/vernoticia.asp?id=293

O mundo silencioso dos grandes maestros

Para quem vive perseguido pela sensação de saber pouco a respeito da vida dos grandes maestros da música mundial e já passou pelo constrangimento de ficar calado num intervalo de concerto por não ter o que dizer, saiu no Brasil um livro redentor. É "O Mito do Maestro - Grandes Regentes em Busca do Poder", do jornalista Norman Lebrecht, do The Daily Telegraph.
Mostra um mundo onde o egocentrismo é necessidade. Nele, poucas dezenas de regentes dominaram a cena, num processo que acabou por corrompê-la. Resumindo-o: "Hoje em dia, regendo, é possível enganar todo mundo o tempo todo".
Lebrecht conta essa história com grandes lances. Arturo Toscanini, megalomaníaco e tirano, reescrevia partituras e, quando mexeu numa sinfonia de Beethoven, justificou-se lembrando que o compositor era surdo. Implica com o "Maestro", pendendo para o alemão Wilhelm Furtwangler, capaz de reger uma orquestra e incapaz de dirigir um automóvel (confundia o pedal do freio com o do acelerador). Leva o leitor ao mundo de grandes almas, como Hans Richter, que regeu um movimento da "Patética" de Tchaikovski com as sobrancelhas.
Numa das grandes dúvidas da história das intimidades, sugere que Leopold Stokowsky e Greta Garbo nunca tiveram um caso. Nenhum dos dois praticava na vida privada o gênero apresentado em público. O mitômano Stokowsky era inglês e filho de marceneiro, mas dizia que seu pai era um paleontólogo polonês. "Tudo nele era falso, a idade, o sotaque, a sexualidade -tudo, menos o conhecimento musical."
Devasta Herbert Karajannis, conhecido como Von Karajan. Registra a opinião de um crítico que via na sua música a "lógica mortífera do hi-fi". Argentário, nazista, ingrato, bajulava políticos poderosos apresentando-lhes jovens cantoras. Estima-se que, ao morrer, em 1989, tivesse uma fortuna de US$ 300 milhões. Lebrecht suspeita que ele fosse sócio secreto das gravadoras.
Karajan, que tinha seu próprio jato, foi o precursor de uma geração de regentes sem orquestra. Vivem correndo pelo mundo e não cuidam de seus músicos. Gustav Mahler regeu 111 vezes numa temporada de Viena. Claudio Abbado, no mesmo cargo, fez 20 apresentações.
Depois de falar tão mal da vida alheia, Lebrecht traça um magnífico perfil do audacioso e alegre Leonard Bernstein, que transformou o ninho de cobras da Filarmônica de Nova York numa grande orquestra. Como Karajan, era vaidoso, narcisista e cosmopolita. À sua diferença, era humilde, amava a vida e os outros. Um alistou-se no Partido Nacional Socialista. O outro, na Anistia Internacional.
Falta música no livro de Lebrecht e fica mal explicado como uma gente tão esquisita pode ter feito coisas tão bonitas. Mesmo assim, num fim de férias, é melhor saber que os maestros tornaram-se caixas registradoras (Kurt Masur levou US$ 700 mil por 30 concertos) do que ler o depoimento do empresário que levava R$ 100 mil para a caixinha da prefeitura petista de $anto André.
Segundo o jornalista, a espécie dos "Maestros" está em extinção. Os tiranos dos novos tempos são burocratas e denominam-se diretores musicais.

Crise evitada

Faltou pouco, muito pouco, para que o governador cearense, Tasso Jereissati, rompesse com o governo pública e estrepitosamente. Documentado com uma derrama de verbas do Departamento Nacional de Obras contra as Secas em municípios onde os prefeitos apóiam candidatos do PMDB, Tasso fez chegar um recado a Brasília. O deputado Pimenta da Veiga entrou no circuito, apagou o incêndio e comprometeu-se a conter o surto de esquisitíssimos investimentos pré-eleitorais.

Desrespeito

O doutor José Renato Corrêa de Lima, diretor da Caixa Econômica Federal, disse que não há o que fazer diante das filas de oito horas que a patuléia é obrigada a aguentar para receber de volta o que o Estado lhe tungou nas contas do FGTS. Informou também que o sítio da Caixa na internet foi congestionado com 3.000 acessos num só dia. Justificou a demanda atribuindo-a ao fato de haver muita gente que vai buscar menos de R$ 1.000.
É possível acabar com essas filas. Basta que se crie uma escala de atendimento, num só guichê da Caixa.
Na segunda-feira, vai para o balcão o professor Pedro Malan e para o fim da fila o doutor Valdery Frota de Albuquerque, presidente da Caixa.
Na quarta, o doutor Pedro Parente vai para a fila e Corrêa de Lima encara um guichê.
Na sexta, o diretor de ativos de terceiros da Caixa, Wilson Risolia Rodrigues, vai para a caixa, e o ministro do Trabalho, Paulo Jobim, vai para a fila. Lá explica novamente aos colegas de infortúnio que não tem nada a ver com esse desrespeito aos cidadãos.

Foi o outro

A respeito da tentativa de sequestro dos recursos do Fust que deveriam ir para a informatização das redes de saúde e escolas públicas e por pouco não foram para a caixa das empresas de telefonia fixa, o ministro do Planejamento, Guilherme Dias, que certamente discorda dessa visão do problema, solicita que se esclareça:
"Coube ao Ministério do Planejamento encaminhar ao Congresso pedido de crédito especial, exatamente nos termos técnicos propostos pelo Ministério das Comunicações. Não nos cabe, nem tivemos, qualquer ingerência nos critérios de aplicação dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações [Fust]";
"Destaco que, nos meus 18 anos de servidor público, nunca participei de "negócios" entre o setor público e o setor privado. A minha relação com as empresas do sistema de telefonia se resume à singela condição de usuário".
Fica assim entendido que a proposta foi uma iniciativa do Ministério das Comunicações, cujo titular é o doutor Juarez Quadros.

ENTREVISTA

Carlos Lessa

(66 anos, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro)

-Jamais um reitor recebeu a UFRJ no estado de degradação em que o senhor acaba de recebê-la. Como pretende sair dessa?
-Deu-se uma mudança no Rio de Janeiro. A sociedade aproximou-se da UFRJ, orgulhando-se dela, como os paulistas se orgulham da USP. Começa a prosperar, não só aqui, um novo tipo de pensamento em relação à universidade. Aquele mundo ideal do neoliberalismo, em que se acreditava que tudo cabia num balanço contábil, mostrou sua crise. Os balanços da Enron, da Worldcom e da bolha tecnológica estão aí. Nesse mundo, prosperou uma visão economicista da universidade. Ele causou grandes danos ao ensino superior público brasileiro. Na UFRJ, as dificuldades chegaram a situações absurdas. Temos prédios com perigo de incêndio. Ao lado disso, tivemos há pouco um estudante de direito desmaiado numa sala. De fome. Vamos retomar a grande idéia da universidade como fábrica de futuros. É dela que sairão a elite, a contra-elite e até mesmo os grandes ladrões da próxima geração. Ninguém é capaz de estabelecer um valor monetário para um filho. Uma nação não pode ter a arrogância de tabelar o valor de uma geração. Nenhuma nação pode projetar o seu futuro pensando em formar uma nova geração menos qualificada que a presente. O ministro da Educação assegurou a prioridade para os recursos da UFRJ. Posso lhe garantir que todos os candidatos a presidente estão comprometidos com o reerguimento da UFRJ.
-Nos últimos anos, difundiu-se a idéia segundo a qual as universidades privadas substituirão as públicas na formação da elite brasileira. É possível que isso venha a ocorrer?
-Não. O que se pôs em movimento foi um mecanismo de vulgarização do diploma. Dele resulta que o diploma da universidade pública é um passaporte para o emprego e a valorização profissional, enquanto que, na maioria dos casos, os das escolas privadas são ficção. É horroroso. A universidade pública tem que assumir o compromisso de aperfeiçoar os professores do ensino médio, para permitir a melhoria da qualidade da rede pública. A UFRJ tem 7% de estudantes vindos de famílias com renda inferior a três salários mínimos. Uma das minhas primeiras iniciativas será colocar 50% dos recursos extra-orçamentários da reitoria num fundo destinado a bolsas de estudo. Cada bolsa custa pouco mais de R$ 3.000 por ano. Precisamos de 250 por semestre e de 2.000 para cobrir as necessidades de hoje.
-Se 7% dos seus estudantes vêm do andar de baixo, 93% vêm dos andares superiores. Admitamos que nem todos vêm do de cima, mas o que não falta na UFRJ é filho de rico. Por que os pais dos jovens que têm dinheiro não patrocinam os estudantes que precisam?
-Eu gostaria muito de ver a sociedade civil brasileira com esse senso de responsabilidade social. Isso permitiria reduzir a evasão de bons alunos que acabam sendo obrigados a deixar a faculdade no meio do curso. Há alguns anos o Instituto de Economia recebeu um aluno brilhante. Seu nome era Rodrigo Estrela. Vinha de Padre Miguel, de família de muito poucos recursos. Passara no vestibular e teria dificuldades para concluir os estudos. Ganhou uma bolsa, formou-se, fez concurso para o Itamaraty, passou em quarto lugar e diplomou-se em primeiro. Hoje serve em Genebra. Esteja certo de que você ouvirá falar dele. Universidade não é mercadoria. Ela fabrica futuros, sobretudo o futuro de uma elite melhor que a atual.


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