|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Arraes e o malogro da centro-esquerda nordestina
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Miguel Arraes foi um político de
sucesso em Pernambuco. Passou
pela secretaria da Fazenda, foi deputado estadual três vezes e, aos
43 anos, chegou à Prefeitura de
Recife. Três anos depois, em 1962,
venceu uma das eleições mais disputadas do Brasil, a de governador de Pernambuco. Próximo dos
comunistas, que estavam na ilegalidade, adotou medidas reformistas, como o apoio ao programa de
alfabetização idealizado pelo educador Paulo Freire e a defesa da
reforma agrária, e acabou por
simbolizar a esquerda administrativa de então.
Arraes tentou ter um papel expressivo nas articulações que precederam o golpe militar, participou do comício da Central do
Brasil, em 13 de março de 1964,
mas não conseguiu ocupar espaço político próprio. As duas candidaturas presidenciais mais fortes para 1965, de Juscelino Kubitschek e de Carlos Lacerda, não o
queriam como vice. João Goulart
e Leonel Brizola, que não poderiam ser candidatos por um impedimento constitucional, não o
colocavam como alternativa. Sair
candidato à Presidência seria uma
temeridade. Era, na verdade, cortejado por Magalhães Pinto, também pré-candidato à Presidência
da República e que gostaria de ter
um vice do Nordeste e mais à esquerda, dando um tom reformista à sua chapa.
Tudo acabou em 2 de abril, com
a destituição de João Goulart e a
prisão de Arraes, que, dignamente, se recusou a renunciar pela força das armas ao governo do Estado. Foi levado preso do Palácio
das Princesas para Fernando de
Noronha. Lá permaneceu detido
por um ano. Libertado por um
habeas corpus, acabou sendo
obrigado a pedir asilo à embaixada da Argélia. Logo depois, ele
partiu para o exílio. Permaneceu
14 anos na Argélia, onde se transformou em um próspero empresário, favorecido que foi pelo ditador Houari Boumedienne. Nesses
anos, ele teve uma atuação política discreta e tentou manter, mesmo à distância, sua influência em
Pernambuco.
De regresso ao Brasil, após a Lei
de Anistia, em 1979, Arraes encontrou o espaço político pernambucano de centro-esquerda
ocupado pelo MDB: de um lado,
os mais conservadores, liderados
por Tales Ramalho, de outro, os
autênticos, capitaneados por
Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos e Fernando Lyra. Era como se
Ulisses, depois de enfrentar tantos desafios, retornasse a Ítaca e
encontrasse Penélope com outro
marido. E, pior: feliz.
Buscou articular com a direção
nacional do partido e fazer parte
do sucedâneo do MDB, o PMDB.
Conseguiu ser eleito para o comando nacional, mas não tinha
condições de influenciar decisivamente os rumos do partido, tanto
que nem sequer conseguiu ser
candidato ao governo de Pernambuco em 1982, perdendo a indicação para o senador Marcos Freire.
Arraes não se esforçou em apoiar
Freire, que foi derrotado por Marco Maciel.
Eleito deputado federal, aproveitou para ir tecendo as alianças
para a eleição de 1986, retomando
os contatos com as lideranças do
sertão e do agreste e aparando as
arestas com os conservadores do
Estado. A estratégia deu resultado, tanto que venceu as eleições
sem esquecer que foi favorecido
pelo Plano Cruzado, assim como
os outros candidatos do PMDB
em outros Estados.
Vinte e três anos depois, retornou ao Palácio das Princesas. Não
era mais o "incendiário" de 1963.
E o Brasil também era outro. A
presidência de Sarney se arrastava
e tinha como principal alvo o
mandato de cinco anos. O socialismo real vivia a sua crise terminal. Em Pernambuco, o reformador Arraes foi substituído pelo
Arraes conciliador, pouco ousado, mais preocupado em ter algum papel na cena política nacional do que na gestão da coisa pública regional. Acabou perdendo
a eleição para a prefeitura de Recife, em 1988, para Joaquim Francisco, do PFL -isso quando historicamente a esquerda sempre
vencia as eleições na cidade.
Em 1989, tal como nos idos de
64, Arraes não conseguiu sair candidato ou influenciar o processo
eleitoral, momento crucial da história política brasileira após o fim
da ditadura militar. Começou
apoiando Ulysses Guimarães,
passou depois para o campo de
Leonel Brizola e acabou, no segundo turno, apoiando Lula. Perdeu nas três vezes. E voltou a ser
derrotado no ano seguinte, quando novamente Joaquim Francisco
venceu as eleições para o governo
estadual enfrentando o seu candidato, agora já no PSB, pois tinha
abandonado o PMDB.
Na mesma eleição, foi eleito deputado federal. Como da vez anterior, Arraes teve uma passagem
pouco expressiva, mesmo em
uma conjuntura tão delicada como a do impeachment de Fernando Collor de Mello. Como um político matreiro, porém, no Congresso Nacional dava mais atenção à vida política da província diversamente do que fazia quando
governava o Estado.
Novamente, saiu candidato a
governador em 1994 e venceu o
PFL. Se o primeiro governo foi
um marco na história regional, o
segundo foi cinzento e o terceiro
foi um desastre. Idoso, ultra-centralista, desatualizado em relação
ao funcionamento da administração pública, arrastou os quatro
anos de governo em meio a greves
do funcionalismo público, até
mesmo da Polícia Militar, invasões de terras lideradas pelo MST,
além de ter sido denunciado no
escândalo dos precatórios, que
envolveu lideranças conservadoras do Sudeste, como Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo. Tentou a todo custo transferir sua liderança regional para Eduardo
Campos, mas, até hoje, seu neto se
revelou um político sem a mesma
sagacidade do avô.
Dos políticos expressivos do
pré-64, Miguel Arraes era o último que se mantinha na vida pública. Diferentemente de Leonel
Brizola, não deixou nenhuma
marca política, como a enfática
defesa da educação feita pelo caudilho gaúcho, mas tal qual Brizola, vivia o ocaso político. Nunca
passou de um político regional e
fracassou quando tentou ter um
papel expressivo na esfera nacional, tanto antes do golpe militar,
como após o retorno do exílio até
a presidência de Lula. Pode ser
que o seu malogro não seja pessoal, mas o da centro-esquerda
nordestina, que não conseguiu se
libertar das relações coronelísticas e construir um projeto próprio para a região e para o Brasil.
Resta maldizer a sorte, atacar a
elite política sulista e solicitar
mais verbas públicas.
Marco Antonio Villa, 49, é professor de
história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil
(1945-1964)", da editora Globo.
Texto Anterior: Memória: Ícone da velha esquerda, Arraes morre aos 88 Próximo Texto: Lutas populares perdem líder, afirma Lula Índice
|