São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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ARTIGO

Arraes e o malogro da centro-esquerda nordestina

MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Miguel Arraes foi um político de sucesso em Pernambuco. Passou pela secretaria da Fazenda, foi deputado estadual três vezes e, aos 43 anos, chegou à Prefeitura de Recife. Três anos depois, em 1962, venceu uma das eleições mais disputadas do Brasil, a de governador de Pernambuco. Próximo dos comunistas, que estavam na ilegalidade, adotou medidas reformistas, como o apoio ao programa de alfabetização idealizado pelo educador Paulo Freire e a defesa da reforma agrária, e acabou por simbolizar a esquerda administrativa de então.
Arraes tentou ter um papel expressivo nas articulações que precederam o golpe militar, participou do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, mas não conseguiu ocupar espaço político próprio. As duas candidaturas presidenciais mais fortes para 1965, de Juscelino Kubitschek e de Carlos Lacerda, não o queriam como vice. João Goulart e Leonel Brizola, que não poderiam ser candidatos por um impedimento constitucional, não o colocavam como alternativa. Sair candidato à Presidência seria uma temeridade. Era, na verdade, cortejado por Magalhães Pinto, também pré-candidato à Presidência da República e que gostaria de ter um vice do Nordeste e mais à esquerda, dando um tom reformista à sua chapa.
Tudo acabou em 2 de abril, com a destituição de João Goulart e a prisão de Arraes, que, dignamente, se recusou a renunciar pela força das armas ao governo do Estado. Foi levado preso do Palácio das Princesas para Fernando de Noronha. Lá permaneceu detido por um ano. Libertado por um habeas corpus, acabou sendo obrigado a pedir asilo à embaixada da Argélia. Logo depois, ele partiu para o exílio. Permaneceu 14 anos na Argélia, onde se transformou em um próspero empresário, favorecido que foi pelo ditador Houari Boumedienne. Nesses anos, ele teve uma atuação política discreta e tentou manter, mesmo à distância, sua influência em Pernambuco.
De regresso ao Brasil, após a Lei de Anistia, em 1979, Arraes encontrou o espaço político pernambucano de centro-esquerda ocupado pelo MDB: de um lado, os mais conservadores, liderados por Tales Ramalho, de outro, os autênticos, capitaneados por Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos e Fernando Lyra. Era como se Ulisses, depois de enfrentar tantos desafios, retornasse a Ítaca e encontrasse Penélope com outro marido. E, pior: feliz.
Buscou articular com a direção nacional do partido e fazer parte do sucedâneo do MDB, o PMDB. Conseguiu ser eleito para o comando nacional, mas não tinha condições de influenciar decisivamente os rumos do partido, tanto que nem sequer conseguiu ser candidato ao governo de Pernambuco em 1982, perdendo a indicação para o senador Marcos Freire. Arraes não se esforçou em apoiar Freire, que foi derrotado por Marco Maciel.
Eleito deputado federal, aproveitou para ir tecendo as alianças para a eleição de 1986, retomando os contatos com as lideranças do sertão e do agreste e aparando as arestas com os conservadores do Estado. A estratégia deu resultado, tanto que venceu as eleições sem esquecer que foi favorecido pelo Plano Cruzado, assim como os outros candidatos do PMDB em outros Estados.
Vinte e três anos depois, retornou ao Palácio das Princesas. Não era mais o "incendiário" de 1963. E o Brasil também era outro. A presidência de Sarney se arrastava e tinha como principal alvo o mandato de cinco anos. O socialismo real vivia a sua crise terminal. Em Pernambuco, o reformador Arraes foi substituído pelo Arraes conciliador, pouco ousado, mais preocupado em ter algum papel na cena política nacional do que na gestão da coisa pública regional. Acabou perdendo a eleição para a prefeitura de Recife, em 1988, para Joaquim Francisco, do PFL -isso quando historicamente a esquerda sempre vencia as eleições na cidade.
Em 1989, tal como nos idos de 64, Arraes não conseguiu sair candidato ou influenciar o processo eleitoral, momento crucial da história política brasileira após o fim da ditadura militar. Começou apoiando Ulysses Guimarães, passou depois para o campo de Leonel Brizola e acabou, no segundo turno, apoiando Lula. Perdeu nas três vezes. E voltou a ser derrotado no ano seguinte, quando novamente Joaquim Francisco venceu as eleições para o governo estadual enfrentando o seu candidato, agora já no PSB, pois tinha abandonado o PMDB.
Na mesma eleição, foi eleito deputado federal. Como da vez anterior, Arraes teve uma passagem pouco expressiva, mesmo em uma conjuntura tão delicada como a do impeachment de Fernando Collor de Mello. Como um político matreiro, porém, no Congresso Nacional dava mais atenção à vida política da província diversamente do que fazia quando governava o Estado.
Novamente, saiu candidato a governador em 1994 e venceu o PFL. Se o primeiro governo foi um marco na história regional, o segundo foi cinzento e o terceiro foi um desastre. Idoso, ultra-centralista, desatualizado em relação ao funcionamento da administração pública, arrastou os quatro anos de governo em meio a greves do funcionalismo público, até mesmo da Polícia Militar, invasões de terras lideradas pelo MST, além de ter sido denunciado no escândalo dos precatórios, que envolveu lideranças conservadoras do Sudeste, como Paulo Maluf, ex-prefeito de São Paulo. Tentou a todo custo transferir sua liderança regional para Eduardo Campos, mas, até hoje, seu neto se revelou um político sem a mesma sagacidade do avô.
Dos políticos expressivos do pré-64, Miguel Arraes era o último que se mantinha na vida pública. Diferentemente de Leonel Brizola, não deixou nenhuma marca política, como a enfática defesa da educação feita pelo caudilho gaúcho, mas tal qual Brizola, vivia o ocaso político. Nunca passou de um político regional e fracassou quando tentou ter um papel expressivo na esfera nacional, tanto antes do golpe militar, como após o retorno do exílio até a presidência de Lula. Pode ser que o seu malogro não seja pessoal, mas o da centro-esquerda nordestina, que não conseguiu se libertar das relações coronelísticas e construir um projeto próprio para a região e para o Brasil. Resta maldizer a sorte, atacar a elite política sulista e solicitar mais verbas públicas.


Marco Antonio Villa, 49, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)", da editora Globo.

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