São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997.



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ELEIÇÕES
Tucano afirma que sua candidatura a presidente depende de uma frente mínima, da qual exclui o PT e o PDT
'Não converso com FHC', diz Ciro Gomes

Ciro Gomes conversa com o líder petista Luiz Inácio Lula da Silva

Deve ser horrível para FHC olhar Itamar no olho. Ele deve a Itamar a candidatura


Serra representa a visão elitista. Compreende o país na lógica da grande indústria
KENNEDY ALENCAR
Editor do Painel

RAYMUNDO COSTA
Do Painel, em Brasília


O tucano dissidente Ciro Gomes, 39, que causou nesta semana um alvoroço nos cenários para a eleição presidencial de 98, diz que está rompido com o presidente Fernando Henrique Cardoso e que rejeita a pecha de ser "o novo Collor".
Após classificar como "incompetência sem igual" a manobra do Planalto para oferecer-lhe a candidatura ao governo do Ceará em troca da desistência do vôo presidencial, Ciro ataca: "Tem uma pessoa com quem não converso, Fernando Henrique Cardoso".
Prevê uma crise grave em 99 ou 2000. E diz que sua candidatura depende de uma frente mínima de partidos de centro-esquerda, da qual exclui PT e PDT.
Ministro da Fazenda no período de implantação do Real, Ciro diz saber por que FHC teme enfrentar Itamar em 98. "Uma enorme vergonha pessoal pela dívida moral que ele tem com Itamar, pelas deslealdades de varejo e de atacado."
Sua candidatura a presidente depende de uma frente de centro-esquerda, capitaneada pelo PSB e sem a presença do PT. Ele próprio sabe que será difícil ela virar realidade até o fim do prazo para filiação partidária, em 3 de outubro.
Pela primeira vez, Ciro rebate a história de que tenha sido da juventude arenista. "O Sarney inventou." Para ele, a chapa Lula-Brizola é comemorada no Planalto. Está magoado com o petista Tarso Genro, que o batizou de "novo Collor", marca que atribui "ao preconceito contra um político jovem e do Nordeste".
A seguir, trechos da entrevista concedida anteontem, em Brasília, no apartamento do deputado Leônidas Cristino (PSDB-CE):

Folha - O sr. acha que dá para vencer FHC em 98?
Ciro -
Dá, mas é difícil.
Folha - Qual a sua receita?
Ciro -
Convergir uma aliança ampla de centro-esquerda ao redor de uma plataforma clara, que substitua a lógica financeira especulativa pela lógica produtivista e do trabalho. Como político, desmascarar essa mistificação de que o Real depende da presença física do Fernando Henrique no poder.
Ordenar a queixa generalizada dos setores excluídos, setores médios, pobres, dos trabalhadores, do mundo produtivo, da indústria, da agricultura de base familiar, dos violentados pela competição internacional. Organizar essa coisa que hoje é caótica. Propor uma alternativa prática.
Como é que a gente pode ser um Fernando Henrique mais um. Um Real mais um. Mais que isso: um Real mais um, dois, três.
Folha - O sr. diz que não foi convidado, mas o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, falou que as portas do PSB estavam abertas para a sua filiação.
Ciro -
Foi essa a expressão dele.
Folha - Isso é um convite.
Ciro -
Não propriamente. Convite é a possibilidade de eu recusar e fazer a ele um distrato. Ou eu pedir e ser recusado. Disse que não era candidato, que não pretendia ser, mas que me animava a formação da frente de centro-esquerda.
Sei que o itinerário que está aí é de uma enorme crise. Que só não explodirá no colo de quem suceder FHC se for antes ajuizada junto à população, que deverá estar prevenida para o que temos que fazer para evitar ou tratar a crise.
Folha - Quando virá essa crise?
Ciro -
O ciclo de privatização se exaure em 98. Em 99, ainda entram investimentos que vão complementar a imensa demanda por telecomunicações e eletricidade, de maneira que mitiga ainda a crise. Mas em 99, 2000, não tem jeito.
Folha - O sr. vai para o PSB?
Ciro -
Só saio do PSDB para participar de uma coisa melhor do que ele. E essa coisa, a meu juízo, está com desenho feito. É a frente.
Folha - Com quais partidos?
Ciro -
Idealmente, PT, PSB, PPS, PV, PC do B, PDT, frações do PMDB, frações do PSDB. Mais atores sociais outros. O mínimo é PSB, PPS, PV, PC do B, frações do PSDB e frações do PMDB.
Folha - O sr. não inclui o PDT?
Ciro -
Nesse mínimo, não. Idealmente, sim. Agora, o PSB, eu respeito, aceitou um apelo dramático na semana passada. Plantaram que eu ia me filiar e anunciar candidatura na quinta, pura plantação para forçar o PT a andar, a ser mais rápido...
Folha - Plantação de quem?
Ciro -
De competentes do PSB. Eu admirei. Funcionou, saíram a viajar o país. O PT pediu para adiar o que estava marcado, e o PSB concordou em adiar o que eu sei que não estava marcado (sua filiação). No final, ficou assim. O pessoal do PSB iria conversar com o Brizola, com o PC do B e com o PV. O PPS já está resolvido. E voltaremos a conversar a qualquer momento, em edição extraordinária.
Folha - FHC julga as eventuais candidaturas do sr. e de Itamar como desconfortáveis. Por quê?
Ciro -
Eu, eu não sei. Mas o Itamar, sei o que é. Uma enorme vergonha pessoal pela dívida moral que ele tem com Itamar, pelas deslealdades de varejo e de atacado. Deve ser horrível para ele olhar Itamar no olho. Simplesmente, ele deve a candidatura dele ao Itamar.
Folha - Qual é a deslealdade?
Ciro -
Essa desmoralização a que o Itamar é cercado. Animada por amigos de FHC. E Itamar sabe.
Folha - Em que medida FHC deve a candidatura dele a Itamar?
Ciro -
Em tudo. A eleição deve ao povo, por isso não precisava fazer concessões a ninguém. A oportunidade de ser ministro da Fazenda e candidato a presidente foi imposta por Itamar contra a vontade dele (FHC). Comigo não vou falar.
Folha - Por que não?
Ciro -
Por que iria dizer dos deveres morais dele comigo? Não fica bem na minha boca.
Folha - Mas ele tem deveres morais com o sr.?
Ciro -
Acho que ele nem sabe o que isso significa. Isso é uma coisa de político do interior do Nordeste que valoriza lealdade, gratidão, respeito, atenções. Comigo não é que ele tenha sido leal ou desleal. Não quero é falar.
Folha - Houve articulação palaciana para oferecer ao sr. a candidatura ao governo do Ceará...
Ciro -
Só a vileza e a incompetência política admitiria a idéia de que eu poderia mexer com o mundo, tendo 60% de preferência no Ceará e sendo amigo do principal líder cearense, que é o Tasso (Jereissati, atual governador).
Mexer com Lula, Brizola, Célio de Castro (do PSB, prefeito de Belo Horizonte) para chegar agora e voltar com a indignidade de ter barganhado o governo do Ceará. Ele não tem isso para me dar. É um idiota quem aconselhou isso ao presidente. Sabe o resultado? Eu, que sou um homem educado, que nunca me recusei nem me recusaria a falar com ninguém, tem uma pessoa com quem não converso: Fernando Henrique Cardoso.
Folha - O sr. está rompido com o presidente?
Ciro -
Não é manha pessoal. Ele criou isso, por tratar as pessoas mesquinhamente e por não respeitar a atitude moral dos outros. Ou por ver os outros como se vê. Ele imaginou, ou alguém dele -há sempre um fofoqueiro: "Ah, o Ciro a gente resolve. Chame ele aqui. Diz para ficar quieto, que vai ser governador". Se podia admitir ser governador, hoje não admito.
Folha - Uma crítica que tem sido feita é que o sr. desencadeou essas articulações de olho em 2002.
Ciro -
Não é. Se fosse, seria legítimo. É um direito inerente à cidadania pensar no futuro. Teria outros projetos para 98: governador do Ceará, Câmara e Senado. Só o que não pode me faltar é a boa gente do Ceará. Mas a cultura convencional diz você não pode ficar sem mandato. Quero correr o risco.
Dizem que FHC se ofende com essa. Daqui a 20 anos, vou ter cinco a menos do que ele tem hoje. Essa é uma tragédia da vida. Dizem que com essa ele se ofendeu, mas não pretendo ofendê-lo com isso.
Folha - O que o sr. acha da candidatura de Itamar a presidente?
Ciro -
Tem todos os dotes para ser o intérprete, no meu lugar ou no de outro, dessa frente de centro-esquerda. Desde que assuma um compromisso programático.
Folha - Quais as qualidades e defeitos de Itamar?
Ciro -
Não falarei dos seus defeitos. Sou tão amigo e lhe quero tanto bem que só falarei das virtudes. Acho um homem simples, em contraposição à arrogância do governo FHC. É só ele (FHC) que sabe a verdade, e isso dá uma deformação na vida pública, que é se cercar de gente medíocre. O Itamar é tão simples que gosta de se cercar de gente de grande qualidade intelectual, como foi o caso do FHC. Sem ciúme. Quando é o contrário, a tendência é se cercar de vassalos, de quem só diz amém, e isso deforma a vida pública.
Folha - É o que aconteceu com o presidente Fernando Henrique?
Ciro -
Claramente. Ele é uma pessoa boa. Conheço FHC há dez anos. É honesto. Se meus eleitores da esquerda ficarem com raiva, por favor, fiquem com raiva. Não mudo de opinião por apetite de conjuntura. Não faço como amigos, que estão me ofendendo. Acho FHC um homem de boa-fé. Só é incapaz de confrontar desafios por um problema de personalidade.
Folha - Como o sr. julga alguém desleal e separa boa-fé de má-fé?
Ciro -
Má-fé é outra coisa. É dizer "vamos ferrar o Brasil, entregar aos estrangeiros", como certa crítica da oposição. Isso não é verdade. Ele faz uma coisa de conveniência menor que é adiar o confronto dos problemas. Uma coisa ruim e criticável com toda a contundência como estou fazendo, mas acreditar que FHC é um agente do imperialismo metido aqui para fazer mal à nação, não dá.
Folha - O que o sr. acha de uma eventual candidatura Lula?
Ciro -
Acho Lula um grande cara. Um menino que sai de Pernambuco, escapa da mortalidade infantil, vem num pau-de-arara, pega um torno mecânico, perde um dedo, arruma uma namorada, a engravida, fica assustado se não vai poder encarar isso, vence isso. É de uma dignidade e de uma exemplaridade para a sociedade pobre.
Pelo simbólico e não pelos deméritos que o Lula tenha, se nos rearmarmos na condição plebiscitária: FHC-Real e Lula-Caos do passado, baseado em um imaginário popular equivocado, ganha o FHC no primeiro turno.
Folha - E Tarso Genro?
Ciro -
Esse me trata pessoalmente com a maior cortesia e não sei por qual tipo de oportunismo fez crítica que muito me ofendeu. De que eu era um novo Collor. Me cheirou a uma rasteira, que arranha o conceito que faço dele.
Mas acho que por ter uma administração bem-sucedida, por ser uma pessoa que transita nos setores médios sem esse medo que simbolicamente o Lula provoca, por injustiça, sempre registre, teria potencial maior. De se apresentar como a novidade, sendo esse candidato de centro-esquerda.
Folha - E sobre Sarney?
Ciro -
Nada.
Folha - Nada?
Ciro -
Representaria um apelo ao passado que jamais voltará.
Folha - E da chapa Lula-Brizola? O pedetista disse que não teria problema em coadjuvar o Lula.
Ciro -
É um gesto de grandeza. É outro homem, equivocadamente ou não, que deu a vida inteira à causa pública. Agora, essa chapa é comemorada no Planalto.
Folha - São apontadas semelhanças entre o sr. e o Collor, como a origem na Arena...
Ciro -
Nunca comentei e é uma boa ocasião para responder. O Sarney inventou isso. É curioso ele, que foi presidente da Arena no regime militar, dizer que o outro está desqualificado porque na garotice, onde você tem direito de errar mais, eu teria sido da Arena. Nunca fui, nem da juventude arenista.
Em 64, eu tinha 7 anos e jogava bolinha de gude. Com 15 anos, em 72, quando veio a repressão, eu ia ao Correio e tinha lá uns cartazes, provavelmente estivesse lá o Zé Dirceu (hoje presidente do PT). Eu achava mesmo que era um bando de terroristas. Qual o defeito da minha personalidade? Eu era um garoto do interior do Ceará, sem compreensão de qualquer coisa.
Folha - O sr. foi do PDS.
Ciro -
Fui. Não tenho nenhuma vergonha. Meu pai, que era de uma dignidade irreparável, era prefeito de Sobral (CE) por uma sublegenda do PDS. No Ceará, não havia oposição. Era PDS 1, PDS 2, PDS 3. O próprio MDB era consentido.
Em 75, fui para Fortaleza. Entrei na faculdade e comecei a tomar consciência dos problemas. Fui militante do movimento estudantil, na juventude católica. Fizemos uma greve. Depois, fui organizar greve em Belém, São Luís. Saí candidato a vice-presidente da UNE.
Nossa chapa era acusada pelo PC do B de ser de direita. Mas defendia a reforma agrária e a social-democracia. Na época, tudo do ponto de vista do PC do B, estava à direita. Em 82 veio a eleição. Não existia Arena, mas PDS. Meu pai resolveu que eu devia ser candidato a deputado estadual. Estava em vigência o Pacote de Abril, que vinculava os votos de vereador a governador.
Folha - Voltando ao Collor, o sr. também faz um discurso radical na forma e que, dirigido às massas, meio na linha dos descamisados...
Ciro -
Acredito em certas idéias e as defendo com ênfase. A radicalidade nas convicções é essencial. Collor é outra coisa. Montou um discurso marketólogo, não havia convicção naquilo. A elite brasileira o desconheceu porque quis. Sempre tomei posição contra ele.
Folha - Há alguma semelhança com Collor?
Ciro -
No estereótipo e no preconceito contra o jovem político, o nordestino, o político afirmativo.
Folha - Qual sua divergência com o senador José Serra (PSDB-SP)?
Ciro -
É recente. Acho que Serra representa uma visão elitista do Brasil. Prefere compreender o país a partir da lógica da grande indústria paulista. Depois, tem coisas menos nobres. O Serra tem um estilo que eu detesto. É o oposto do meu. Ao invés do confronto leal. Ah, como eu gosto do Antonio Carlos (Magalhães)! Está marcado o duelo ao meio-dia, quem for melhor vence, quem for pior morre.
O Serra é a futrica, a rasteirinha, a intriga. Não suporto isso. Isso não me impede de reconhecer que é um quadro da política acima da média e outro homem honesto.
Folha - Qual sua crítica ao PSDB?
Ciro -
Tenho duas queixas. A passividade em relação aos descaminhos do governo e o ter se vulnerado ao adesismo fisiológico descaracterizador, inclusive no plano moral, da proposta original. Nós todos saímos do PMDB incomodados com suas contradições. Não temos o direito de fazer o mesmo itinerário. Mesmo que o argumento seja o pragmatismo a qualquer preço do governo FHC.
Folha - O sr. é a favor do financiamento público das eleições?
Ciro -
No meu livro, defendo isso pioneiramente. Escrevi em 95...
Folha - FHC apresentou, antes do sr., um projeto no Senado em 89...
Ciro -
Isso é fundamental para aprimorar as práticas políticas brasileiras. A origem de toda a safadeza está na relação promíscua entre poder econômico e político.
Folha - ACM argumenta que faltará dinheiro para outras áreas, como saúde e educação.
Ciro -
A eleição é até mais importante. Bem feita é meio para que haja saúde e educação.
Folha - Então o ACM, de quem o sr. gosta, está errado?
Ciro -
Tá, completamente. Também nisso.
Folha - E em que mais?
Ciro -
Em tudo, na visão de país. Gosto muito dele. No dia do aniversário, liguei para ele. Ele disse: "Que beleza! Lembrou de mim. Gosto muito de você, mais gosto que admiro". Gosto e admiro o lado dele de lutar pela Bahia.




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