São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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ENTREVISTA DA 2ª

Segundo cientista político da UnB, alavanca tucana em 94 e 98 não foi FHC, mas o Plano Real

Lula supera Getúlio como puxador de votos

Sergio Lima/Folha Imagem
David Fleischer, cientista político norte-americano naturalizado brasileiro, professor da UnB


FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ao promover o Partido dos Trabalhadores ao posto de maior detentor de deputados federais (91) e de deputados estaduais (147) do Brasil, o presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva superou Getúlio Vargas como grande puxador de votos. Essa é a avaliação do cientista político norte-americano naturalizado brasileiro David Fleischer, 61, professor da UnB (Universidade de Brasília).
Em 1950, Getúlio Vargas foi eleito presidente da República e o PTB, seu partido, obteve 1,389 milhão de votos -o que representou 18,1%. Neste ano, o PT recebeu 16,092 milhões de votos para deputado federal, ou 18,4% do total dado aos candidatos.
Há 30 anos em Brasília, Fleischer é um observador da política nacional por dever de ofício. É também membro-fundador da Transparência Brasil, uma organização não-governamental cujo objetivo é o combate à corrupção.
Fleischer (pronuncia-se "Fléi-chêr") avalia que outras eleições recentes no Brasil não podem ser comparadas ao pleito deste ano. "Antes do Plano Real, você teve o Plano Cruzado, que puxou muito voto também. Mas não dá para dizer que foram o presidente José Sarney e o presidente Fernando Henrique Cardoso que representaram, sozinhos, a votação de seus partidos. Foram casos diferentes", afirma.
Para o cientista político da UnB, Lula ou José Serra (PSDB) devem conseguir construir uma maioria no Congresso, embora não tão ampla numericamente como a de FHC. Mas ele próprio faz uma ressalva. Dizendo que o presidente tucano nunca teve, na prática, os votos que eram em tese contabilizados pelo Palácio do Planalto.
A seguir, trechos da entrevista de David Fleischer à Folha.
 
Folha - Qual é a sua avaliação do resultado global da eleição?
David Fleischer -
O mais surpreendente é o PT ter eleito a maior bancada na Câmara dos Deputados.

Folha - Por que ninguém conseguiu prever que o PT elegeria a maior bancada?
Fleischer -
Acho que ninguém percebeu a vinculação da votação de Lula com a dos candidatos a deputado federal e estadual. Aquilo que os americanos chamam de "coat tail", literalmente, rabo de casaco ou casaca.

Folha - O que é isso?
Fleischer -
É uma imagem da política nos Estados Unidos, uma metáfora. É como se o candidato fosse andando com um casaco com um rabo comprido, bem grande, e os candidatos fossem sendo levados ao se agarrarem a esse rabo [as abas".
O "coat tail" puxa votos para a legenda. Todos nós estávamos prevendo que o Lula teria de 40% a 50% dos votos. Mas erramos, eu também, ao não imaginar que o Lula teria tanta força para puxar os candidatos do PT nos Estados, tanto para cargos no Legislativo como aos governos estaduais.
Nas outras eleições nunca houve um candidato a presidente que puxasse sozinho tantos votos.

Folha - E as eleições de Fernando Henrique Cardoso, com o aumento de deputados do PSDB e de governadores tucanos?
Fleischer -
Foi um fenômeno diferente. O grande puxador de votos foi o Plano Real. Não se tratou de um fenômeno partidário.

Folha - Mas não existe na história do Brasil algum caso de candidato a presidente que tenha puxado votos para o seu partido como Lula, elegendo grandes bancadas de deputados e governadores?
Fleischer -
Não, não existe. Antes do Plano Real, você teve o Plano Cruzado, que puxou muito voto também. Mas não dá para dizer que foram o presidente José Sarney (1985-1990) e o presidente Fernando Henrique Cardoso [eleito em 1994 e reeleito em 1998" que representaram, sozinhos, a votação de seus partidos. Foram casos diferentes.

Folha - O Lula é então o primeiro caso de um personagem político que incorpora a responsabilidade de ter puxado os votos na eleição de 2002?
Fleischer -
É necessário dizer que esta é apenas a terceira vez, depois da redemocratização [1985", que houve uma eleição presidencial casada com a de governadores, deputados e senadores.
Antes disso, só Getúlio Vargas em 1950. Getúlio puxou bastante votos em 1950. Ajudou o PTB, mas esse fenômeno Lula supera Getúlio Vargas em 1950.
Ainda assim, foi um outro tipo de onda. Em 1950 não tinha televisão, só havia rádio. O eleitorado era muito pequeno. Só 15% da população votava. As mulheres tinham sido recém-emancipadas.

Folha - Se a eleição presidencial de 1989 tivesse sido casada com a de governadores, deputados e senadores, o eleito à época, Fernando Collor, não teria tido um desempenho igual ao de Lula hoje?
Fleischer -
Nunca saberemos. Mas é também possível dizer que, se a eleição de 1989 tivesse sido casada, talvez o Collor também não conseguisse ser eleito. Havia governadores fortes de vários partidos que poderiam exercer influência contra ele.

Folha - Qual é a sua avaliação sobre avanço das esquerdas? O PT chegou perto de cem deputados federais. A impressão que se tem é que há sempre espaço na Câmara para quatro siglas terem aproximadamente cem deputados. É isso mesmo? Existe esse teto?
Fleischer -
É verdade, todos os três maiores governistas já bateram lá, o PFL, o PMDB e o PSDB. Só passou bem da marca dos cem deputados o PMDB, em 1986, por causa do Plano Cruzado. Agora, chegou a vez de o PT crescer. É possível que esse patamar de aproximadamente cem deputados para cada uma das quatro siglas continue a existir até que um dia alguns desses partidos se unam em alguma fusão.

Folha - O sr. falou da influência do presidenciável Lula na eleição de grandes bancadas do PT. E qual influência teve o presidente Fernando Henrique neste pleito?
Fleischer -
Esta eleição também funcionou como um referendo negativo do governo FHC. Os três grandes partidos de apoio ao presidente -o PFL, o PMDB e o PSDB- caíram. O PFL se salvou no Senado, mas os outros dois se deram mal nas duas Casas do Congresso Nacional.

Folha - Por que o sr. acha que o eleitor brasileiro não enxergou, ou não quis enxergar, pontos positivos no governo FHC?
Fleischer -
É um fenômeno de final de mandato, de desgaste do governo.

Folha - Mas houve alguns avanços. A inflação acabou. O país tem uma democracia estável. Enfim, é possível relacionar alguns fatos positivos.
Fleischer -
Mais no primeiro mandato. O problema é que o eleitor tem memória curta. Não se lembra muito bem do que aconteceu há quatro anos.
Mas tem vivo em seu cotidiano os problemas do segundo mandato. Teve o apagão, o desemprego aumentou muito, a violência cresceu muito mais que no primeiro mandato de Fernando Henrique.
Também tivemos nos últimos anos mais acusações de corrupção. Enfim, o eleitor não se lembra do período de oito anos como um todo. Ele sempre se recorda mais da história recente. Isso é visível nos níveis de aprovação e desaprovação do governo.

Folha - Como o sr. explica o fenômeno da candidatura a deputado federal de Enéas Carneiro, pelo Prona de São Paulo?
Fleischer -
O Enéas usou a lei. Acertou na mosca ao largar a corrida presidencial. Em 1994, teve mais votos do que Orestes Quércia [PMDB" e Leonel Brizola [PDT". Mas não fez bancada federal. Seus cerca de 5 milhões de votos não serviram para quase nada. Em 98, a votação dele diminuiu.
Ao se candidatar para deputado agora, ele enxergou uma demanda pelo voto mais conservador e conseguiu preenchê-la. É um nicho antigo que existe em São Paulo, de opinião bastante nacionalista e ultraconservadora.
Nos anos 60 e 70, São Paulo foi a sede da TFP [Tradição, Família e Propriedade", do [integralista" Plínio Salgado, que teve muitos votos no passado.

Folha - O sr. considera bom o sistema eleitoral que permite casos como esse de Enéas, que elegeu cinco deputados, junto com ele, com votações muito pequenas?
Fleischer -
É importante dizer que estão falando muito desse problema agora porque o eleito foi uma pessoa como o Enéas, que não faz parte do "establishment".
Mas esse tipo de situação já ocorreu várias vezes em outros Estados. Um radialista no Rio Grande do Sul já elegeu muitos candidatos de seu partido porque era popular.
O Brizola em 1962 foi campeão nacional de votos na Guanabara. Recebeu uns 300 mil votos. Naquela época, uma estrondosa votação. Levou para a Câmara mais uns três ou quatro também do PTB do Rio. Quer dizer, esse negócio do Enéas é um fenômeno que vem desde os anos 50, é muito antigo.
Essa "gritaria" toda ocorre porque foi o Enéas [o eleito". Mas é possível que essas reclamações sirvam de pressão para que o Congresso mude a legislação.

Folha - O sr. acha que esse sistema de voto no partido é bom ou ruim?
Fleischer -
O voto proporcional é bom porque permite a eleição de várias correntes de opinião. O Enéas não deixa de representar uma corrente.
Mas eu sou favorável a fechar a lista. Os partidos decidem quais são os candidatos, fazem uma lista e o eleitor vota só na legenda sabendo que elegerá o primeiro da lista, o segundo, e assim por diante, dependendo de quantos votos a sigla receber.
Se quiserem manter as coligações partidárias para as eleições legislativas, tudo bem. É possível então fazer como na Argentina e no Uruguai. Eles adotam a sublegenda. Cada partido participante de uma coligação tira exatamente o que contribui com votos.

Folha - Há quem seja contra listas fechadas porque os partidos no Brasil não têm participação popular. As listas ficariam nas mãos de uns poucos. O sistema se tornaria ainda pior do que o atual. O sr. concorda?
Fleischer -
Esse é o argumento do ovo e da galinha. Os partidos são fracos e dominados por oligarquias. Não podemos então dar mais poder a eles. E tudo fica como está.
Como mudar isso? Alterando o sistema eleitoral. Os nomes nas listas fechadas ficarão claros para o eleitor. Como só se votará no partido, as siglas que não funcionarem bem por um tempo são fadadas a desaparecer. Até porque os partidos mais inteligentes vão compor as suas listas fazendo uma prévia entre os filiados ou fazendo grandes convenções estaduais. Os mais espertos evoluiriam para as prévias.

Folha - Como ficará a composição da base governista num eventual governo Lula ou Serra?
Fleischer -
Nenhum dos eleitos terá uma bancada tão estrondosa quanto a do Fernando Henrique. Porém, ambos terão minimamente os três quintos, em torno de 300 e poucos deputados.
Também é necessário lembrar que o presidente Fernando Henrique tinha uma maioria numérica. Mas, na hora de votar, essa bancada sofria muito por causa da ausência. Houve casos em que 70 a 80 deputados da chamada base aliada sumiam.
É possível que, com o poder da caneta em janeiro, o novo presidente, seja quem for, promova um grande troca-troca ou migração partidária, como queira.
Por quê? Se for um governo Lula, certamente haverá muitos parlamentares do PPB e do PFL que desejarão migrar para a base governista, mas não poderão ir para o PT, é claro.
Esse pessoal vai para o PL ou para o PTB. Num governo Lula, o PL está esperando dobrar sua bancada eleita de 26 deputados.
Já os progressistas vão para o PST [Partido Social Trabalhista" ou para o PDT, que não têm tantos critérios no troca-troca quanto o PT. Eu acredito que vá ter bastante troca-troca.
Se Serra for eleito vai ter muita mudança de partido também. Mas Lula, com a caneta na mão, ajudado pela mão de José Dirceu, poderá causar uma grande modificação no quadro partidário.

Folha - O sr. acredita que o PT, por ser a maior bancada, terá condições de eventualmente montar um bloco partidário grande para presidir a Câmara?
Fleischer -
Sim.

Folha - Com um deputado do PT?
Fleischer -
Numa Presidência do Lula, sim. Numa Presidência do Serra, duvido.



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