São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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FOLCLORE POLÍTICO / JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

O biriba de dr. Arraes

Em 1964, o governador Miguel Arraes foi cassado pela redentora. Foi também preso, em Fernando de Noronha. E acabou exilado em Argel, a "Princesa da África francesa". Lá ocupou uma ampla casa de dois pavimentos, no Bd. Franklyn Roosevelt, dentro dos muros do próprio Palácio do Governo. Chegou em 64 mesmo, pelas mãos do presidente Ben Bella -um ex-jogador de futebol populista que, num arroubo, chegou a estatizar os salões de barbeiro do país. Mas viveu seus dias de maior prestígio depois que um golpe militar colocou, na chefia do governo, Houari Boumediene, até então seu ministro da Defesa.
Havia um clima de conspiração entre os brasileiros que moravam na cidade. Dr. Arraes, segundo se dizia, comandava um Movimento Popular de Libertação -que teria 200 homens em armas, no Brasil. Ninguém nunca viu nada disso. Melhor esquecer.
O coronel Jéferson Cardin, e mais alguns companheiros, esperava apoio de Cuba para invadir a Amazônia. Mas Fidel ficou só na promessa. Quando era grande a saudade, vestia coturno e farda do Exército brasileiro e passeava assim, todo paramentado, pelo cashbar de Argel.
Mas o melhor, naquele tempo, era mesmo o bom e velho biriba. Carteado rolando, periodicamente, no Bd. Telemly -em duas mesas, de dois apartamentos com salas contíguas. Num moravam o deputado federal cassado Maurílio (e Ana Angélica) Ferreira Lima e o engenheiro Aécio (e Walkíria) Gomes de Matos.
No outro, o arquiteto Lopes (e dona Mimi), portugueses naturalizados brasileiros, que trabalhavam com Niemeyer na construção da Universidade de Constatine, às bordas do Saara argelino.
Noite de 4 de novembro de 69. O biriba estava animado. Ana Angélica descarta um 3 de copas. Dr. Arraes põe a mão na carta. Mas o rádio interrompeu sua jogada. Anunciando o assassinato, em São Paulo, do grande Carlos Marighela. Todos ficam hirtos.
Dr. Arraes então eleva pouco a pouco o olhar, até fixar um ponto impreciso da parede. E, com a voz embargada com que (se supõe) são ditas as frases históricas, sentencia: "Alguém deve voltar logo ao Brasil, para comandar a guerrilha revolucionária que vai redimir o povo brasileiro". Silêncio sepulcral. Foi quando Maurílio se virou para ele e disse: "Acabou, dr. Arraes? Então joga". E seguiu a vida ali, naquele quase fim de mundo, em sua trilha perversa de ilusões perdidas e esperanças vãs.
O povo brasileiro esperaria um pouquinho mais. Dr. Arraes pegou o 3 de copas, riu baixinho e disse: "Bati".


JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 54, advogado no Recife, escreve às segundas-feiras nesta coluna


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