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OPINIÃO
O constrangimento do silêncio
É preocupante que militares se arroguem como censores da linguagem de um decreto presidencial e exijam modificação do texto a seu comandante em chefe
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
NÃO FAZ PARTE da tradição política brasileira restaurar a verdade
do passado. Depois da ditadura
do Estado Novo, na Constituinte de 1946, por iniciativa do deputado e general Euclydes Figueiredo, foi criada uma comissão sobre os presos políticos de
1934 a 1945, mas não funcionou
por falta de quorum. Quebrando essa tradição do silêncio, em
1985 o "Brasil Nunca Mais" documentava o uso que a ditadura
militar fizera dos aparatos policiais e de estrutura militar do
Estado para a repressão das
dissidências entre 1964 e 1985.
Se havia alguma dúvida sobre a
responsabilidade do Estado
brasileiro pelos crimes cometidos nessa repressão, essa se dissipou. Ficou patente a responsabilidade incontestável do Estado brasileiro pelas violações
de direitos humanos perpetrados pela ditadura militar, que
afinal foi reconhecida pela lei
9.140/95, a lei dos desaparecidos.
Não deixa de ser patético
que, 15 anos depois desse reconhecimento legal, um decreto
sobre a Comissão Nacional da
Verdade não possa utilizar a expressão "repressão política".
No processo de consolidação da
democracia brasileira é preocupante que comandantes militares se arroguem como censores da linguagem de um decreto presidencial e exijam modificação do texto a seu comandante em chefe, aos quais devem hierarquicamente obediência. Se os comandantes militares em 1995 tivessem sido
consultados a respeito da decisão do Executivo de criar um
processo de reparação aos atingidos pelo governo militar, possivelmente até hoje não haveria
o reconhecimento dos desaparecidos políticos.
Em nenhuma democracia
consolidada militares opinam
sobre decisões do governo ou se
manifestam contra atos do governo ameaçando se demitir,
gesto meio ridículo, pois nem
ministros são e mesmos os ministros sabem que são demissíveis ad nutum, por um simples
aceno de cabeça do governante.
Entre todos os exércitos saídos
fortalecidos na democracia depois de ditaduras, como na Grécia, na Espanha, em Portugal,
na Argentina, no Chile, no Uruguai, os militares não se solidarizam com seus antecessores
que perpetraram torturas e crimes contra a humanidade.
A formulação do novo decreto ao alterar a caracterização
precisa do "esclarecimento público das violações de direitos
humanos praticadas no contexto da repressão política" por
"examinar as violações de direitos humanos" retrocede em
relação ao reconhecimento da
responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura então
em vigor. Em vez de se "esclarecer" agora vai se "examinar"
(poderia haver verbo mais asséptico?) num período indeterminado entre 1946 e 1988, fazendo desaparecer a periodização do regime militar definida
na legislação sobre os desaparecimentos, 1961 a 1988. Agora
as violações de direitos humanos pelo Estado da ditadura
militar perdem toda sua especificidade, exorcizando qualquer
risco que os crimes dos torturadores sejam reconstituídos
-pois disso se trata, nenhuma
comissão da verdade processa
ou julga ninguém-, os autores,
identificados e a linha de comando, desvendada.
Suavemente ainda abre-se
"sotto voce" a porta para examinar o "outro lado" (as vítimas, as organizações não estatais armadas e as dissidências)
claramente anistiado, inclusive
por manifestação na época da
Lei da Anistia pelo Superior
Tribunal Militar. Esses do "outro lado", que nos centros de
detenção das Forças Armadas
eram inicialmente sequestrados, interrogados e torturados
e depois processados e julgados
pela legalidade autoritária
construída pelos atos institucionais e pela legislação de segurança nacional. Entre 1964 e
1979, 2.828 réus civis foram
condenados pela justiça de exceção dos tribunais militares
regionais, recebendo penas entre quatro e dez anos.
Finalmente, ao se renunciar
a propor um projeto claro e definido de Comissão da Verdade,
substituindo-a por um grupo
de trabalho para formatar um
projeto para o Congresso Nacional, corre-se o risco de não
se ter Comissão da Verdade alguma. É improvável que a presente legislatura, tão desgastada, num ano eleitoral, vá queimar cartuchos votando tal comissão. Ou então, para não incomodar os comandantes militares, o projeto será tão aguado
que a comissão não terá nenhum efeito em curto prazo,
seja na reconstituição da verdade ou para a reconciliação, seja
para trazer a paz e a justiça para
os familiares dos desaparecidos
políticos que lutam pela verdade faz 30 anos. E o Brasil continuará na rabeira de todos nossos vizinhos do Cone Sul que
reconstituíram a história dos
horrores e já se livraram das
trevas das ditaduras. Que baita
constrangimento.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor-adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA) e ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos.
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