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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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ENTREVISTA

Para cientista político, ruptura com bases do PT pode empurrar presidente a aliança com setores não-organizados

Lula tende ao bonapartismo, diz Leôncio

FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O cientista político Leôncio Martins Rodrigues, 69, acha que o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, poderá "tentar se fortalecer entre os segmentos não-organizados, entre os pobres e também entre as camadas empresariais e classes médias".
Será uma forma de Lula compensar o desgaste que as reformas constitucionais causarão na sua imagem, sobretudo as mudanças na Previdência pública.
Essa busca de apoio em categorias menos propensas a ficarem com o PT, segundo Leôncio, "não é impossível nem contraditória" com a história de Lula.
"Na América Latina aconteceu muitas vezes. O nosso Getúlio [Vargas] é um exemplo. Nesse caso, a tendência para o bonapartismo será grande", observa Leôncio, que é professor titular de ciência política da Unicamp.
Estudioso da política partidária e do sindicalismo, comunista de orientação trotskista na juventude, Leôncio foi um eleitor confesso de Fernando Henrique Cardoso. Acha que as críticas de intelectuais a Lula vêm de quem "não tem experiência de atuação política concreta num contexto de competição democrática".
Esses críticos, sustenta o professor, "têm pouca importância: alinharam-se o tempo todo contra FHC que conseguiu vencer duas eleições presidenciais no primeiro turno".
No início deste ano, Leôncio foi um dos primeiros a apontar o "descompasso" entre a "capacidade teatral" e a "capacidade de execução" de Lula. Hoje, ainda crítico, enxerga mais habilidades na administração petista.
""O governo está optando (sem trocadilhos) por ganhar o apoio da massa de eleitores, mesmo às custas do rompimento com os setores sociais organizados", diz. Leia a seguir trechos da entrevista:
 

Folha - Por que Lula e o PT nunca fizeram uma autocrítica completa a respeito de suas convicções? Teria impedido a sua eleição?
Leôncio Martins Rodrigues -
Porque nunca houve necessidade de uma autocrítica. O partido só tivera experiência de administrações municipais e estaduais. Certas questões de princípio não eram muito importantes. Por outro lado, não havia muito lugar para os temas que se referissem aos rumos da economia e da sociedade brasileira.
Além disso, embora sempre um ethos socializante (estatizante, corporativo, populista, nacionalista, antiamericano, terceiro-mundista, intervencionista, antidemocracia liberal) tivesse permanecido como o fundamento ideológico legítimo do partido, havia muita confusão quanto à teoria. O PT nunca foi monolítico ideologicamente. Nem poderia em razão da profusão de tendências existentes no seu interior.
Nas conjunturas eleitorais, notadamente nas disputas majoritárias, as posições mais radicais, de tipo socialista, eram colocadas em surdina, mas isso não provocava grandes protestos da militância. Mas lembremos que em cada disputa presidencial o PT caminhava um pouco mais para a direita. Na última, Lula e o núcleo do partido se deram conta de que o radicalismo juvenil os levaria a ficarem encerrados no gueto da esquerda caso não acontecesse uma improvável radicalização do eleitorado.

Folha - É correto dizer que o PT está traindo antigas convicções?
Leôncio -
Traição é uma palavra muito pesada. Lula, quando no apogeu de sua liderança sindical, declarava que era a favor de um Estado mínimo. Depois, deixou de falar sobre isso. Significa que posteriormente "traiu" suas convicções ou que, agora, está voltando a elas?
Mas o PT não é o Lula. E é certo que o partido, desde sua formação, falava em governos de trabalhadores. Mas a cada campanha punha essa e outras palavras de ordem de lado. Naquele momento, nenhuma liderança importante do partido falou em traição.
Agora, tudo ficou mais complicado, porque a responsabilidade de ser governo exige medidas impopulares que ferem os interesses das bases tradicionais do partido e alianças com antigos adversários. Mas as críticas dos radicais não podem ficar num terreno abstrato. Cumpre ver as alternativas que os opositores, dentro e fora do PT, têm para as propostas do governo e se a economia brasileira andaria melhor se se pusesse de lado, definitivamente, a idéia de reformas, a começar pela previdenciária. É claro que os que estão contra a reforma da Previdência alegam que estão contra alguns pontos, mas, na verdade, não querem reforma alguma porque, de um jeito ou de outro, afetam seus interesses corporativos.

Folha - Que poder o funcionalismo exerceu na formação do PT?
Leôncio -
Na formação do PT e depois da CUT, os sindicatos de funcionários não foram importantes. O sindicalismo do setor público, na época, praticamente não existia. Foi a Constituição de 1988 que, entre nós, permitiu um grande avanço do sindicalismo de funcionários. Não foi um fenômeno brasileiro. Os sindicatos de funcionários, em todos os países do mundo ocidental, começaram a crescer a partir da década de 70 enquanto o sindicalismo do setor privado declinava.

Folha - Em que medida a CUT vai permitir o atrelamento da entidade ao governo? É certo pensar em algum tipo de CUT domesticada?
Leôncio -
A CUT já vem mudando de comportamento há certo tempo no sentido de que já vinha passando de um sindicalismo de confronto para um sindicalismo de negociação.
A subordinação da CUT ao governo, por um lado, ou um rompimento, por outro, me parece difícil de acontecer. De todo jeito, é estranho que o presidente da República tenha indicado, quase que formalmente, o presidente da CUT. Mesmo considerando que se trata de um ex-dirigente sindical que chegou à Presidência, a indicação parece um pouco uma nomeação. No caso, não foi um apoio político de um ex-sindicalista na Presidência a outro companheiro operário, mas uma indicação que teve um caráter quase administrativo. Só que o PT não é o dono da CUT, nem é o único partido com influência na entidade. O que parece mais provável é a CUT se manter próxima, mas não atrelada ao governo.

Folha - O fato de a CUT ter de novo um presidente, Luiz Marinho, do meio metalúrgico, tem algum efeito prático para a central?
Leôncio -
O principal efeito é enfraquecer o poder de fogo do sindicalismo do setor público e fortalecer uma liderança menos radical e acostumada a barganhar com o patronato.
Não sofrem de um radicalismo infantil e nem vêem os empresários como um inimigo de classe a ser destruído. Já o sindicalismo do funcionalismo público tem um lado muito conservador, no sentido de que está voltado para o congelamento de vantagens que, nos tempos atuais, aparecem como privilégios. O funcionalismo é mais agressivo, até porque têm muito mais facilidade para fazer greve. Desse modo, acho que, sob a liderança de Luiz Marinho, a CUT deverá se mostrar mais dinâmica e capaz de renovação.

Folha - Quando o PSDB chegou ao poder tentou aniquilar outros partidos e se tornar a maior sigla. Deu-se mal. O PT faz um caminho semelhante, mas usando "partidos-laranja" para exercer a hegemonia no Congresso. Vai dar certo?
Leôncio -
É cedo para dizer se vai dar certo. A tática do PT é diferente da do PSDB. O PT procura se preservar como partido organizado, disciplinado e coeso ideologicamente a fim de continuar não só como a maior legenda no legislativo, mas como o partido-guia. O programa de reformas, especialmente a da Previdência, ameaça seriamente esse projeto por aumentar a tensão interna no Congresso e pela dificuldade de manter a coesão das bancadas.
Acredito que, quando outros projetos governamentais forem apresentados, será difícil manter a unidade petista. Nesse sentido, o projeto de reforma do sistema sindical muito provavelmente será outro foco de tensão.

Folha - A popularidade de Lula está ainda altíssima, num patamar superior se comparado a outros presidentes eleitos pelo voto direto depois de cinco meses de governo. Até quando dura esse fôlego?
Leôncio -
Difícil dizer porque Lula, na arte da sedução da massa de eleitores, é um pós-graduado que não necessita de nenhum professor. É possível que a popularidade do governo venha a cair mais rapidamente do que a do presidente, tendência já indicada por algumas pesquisas.
É possível também que o prestígio de Lula decline mais rapidamente entre os setores organizados dos trabalhadores e empregados do que entre o eleitorado pobre. Se tal acontecer, vejo pressões fortes no sentido de se tentar algum tipo de separação da figura do presidente da figura de alguns ministros, políticos e partidos aliados e de tentar uma comunicação direta com o eleitorado.

Folha - O sr. imaginava que iria ver Lula ser comparado a Fernando Collor por servidores com menos de seis meses de mandato? A manifestação dos servidores em Brasília, de certa forma, sela a ruptura do governo petista com uma de suas bases sociais mais características? Esse caminho tem volta?
Leôncio -
Poucos imaginariam o Lula comparado com o Collor. É claro que são personalidades muito diferentes. A comparação tem um objetivo intimidador para fazer o governo recuar.
Quanto à outra parte de sua pergunta: mais provavelmente, o rompimento do governo com suas bases no sindicalismo de funcionários não tem retorno. Isso não significa acreditar que o governo ficará no ar.
O presidente pode, como eu disse antes, tentar se fortalecer entre os segmentos não-organizados, entre os pobres e também entre as camadas empresariais e setores das classes médias. Isso não é impossível nem contraditório. Especialmente na América Latina aconteceu muitas vezes. O nosso Getúlio é um exemplo. Nesse caso, a tendência para o bonapartismo do presidente será grande.

Folha - Falou-se muito a respeito de Fernando Henrique Cardoso, que ele havia quebrado a espinha dorsal do sindicalismo no início do seu mandato, quando reagiu de forma vigorosa à greve dos petroleiros. O que Lula está fazendo ou ajudando a fazer com o sindicalismo? O que sobrou da CUT daqui em diante?
Leôncio -
As situações são diferentes. Na greve dos petroleiros, a intenção do sindicato influenciado pelo PT era torpedear, logo de início, o governo de FHC. Esse não teve outra saída senão enfrentar os petroleiros, o que significa dizer enfrentar a esquerda.
Lembremos que essa estava disposta, com vaias e pedras, a impedir o presidente de sair do Palácio. Depois houve o "fora FHC" e a idéia maluca de pedir o impeachment do presidente eleito no primeiro turno. Agora, não creio que Lula tente quebrar o movimento sindical e a esquerda. O que acontece é que Lula precisa realizar um bom governo, o que não será conseguido se a cartilha dos radicais for seguida.
Assim, o governo está optando (sem trocadilhos) por ganhar o apoio da massa de eleitores, mesmo às custas do rompimento com os setores sociais organizados.

Folha - O que o sr. pensa dos discursos de Lula, do recurso às metáforas e de um certo tom palanqueiro, típico de campanhas eleitorais? O contato direto com a população lembra populismo? Por quê?
Leôncio -
De fato, a semelhança com o discurso e a prática populista é grande. Ela vem mais do jeito de ser do presidente. Mas o contexto tem algumas diferenças. No populismo latino-americano falta um partido. No relacionamento com as massas desorganizadas, o contato é direto.
No caso atual, o PT é um partido forte, com relações estreitas com o sindicalismo e outros movimentos sociais. Mas o aspecto populista, como citei, pode se fortalecer no caso de o governo perder sua base de apoio tradicional.

Folha - O sr. acompanha a desilusão de intelectuais simpáticos ao PT nesse início de governo? Alguns já romperam e decretaram o fim da esperança. Outros permanecem entre atônitos e esperançosos de que alguma mudança mais brusca virá. O que pensar deste quadro?
Leôncio -
A maioria desses intelectuais não tem experiência de atuação política concreta num contexto de competição democrática. Politicamente têm pouca importância: alinharam-se o tempo todo contra FHC, que conseguiu vencer duas eleições presidenciais no primeiro turno.
Podem fazer muitas reuniões em algumas unidades da universidade e cutucar o governo. Mas, no rol dos problemas e adversários que qualquer governo tem que enfrentar, a intelectualidade radical das academias é pouco perigosa, apesar da capacidade de vocalização.


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