São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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ELIO GASPARI

O governo de FFHH é ruim, mas não tanto


A pesquisa do Ibope que deu um índice de impopularidade de 52% a FFHH não é nada. Ele já viu outra, na qual chegou a 56%. Isso significa que faltam apenas oito pontos percentuais para que empate com a rejeição a Fernando Collor às vésperas de seu impedimento.
É o tasca. Diante de tamanha raiva, quem não gosta do governo, ri. Quem gosta, finge que não vê. Tudo bem, mas cabe uma pergunta: Fernando Henrique Cardoso é Fernando Collor? O Plano Real é a mesma coisa que aquela coisa da dona Zélia Cardoso de Mello?
Parece maluquice dizer que há exagero na avaliação do governo, mas há algo de esquisito nessa impopularidade. Algo de injusto.
As pessoas que acham FFHH ruim ou péssimo chegam a 56%, mas aquelas que estão satisfeitas com a vida que levam estão em 60%. A tradição ensinava que havia uma relação direta entre a satisfação com a própria vida e o julgamento do presidente. FFHH privatizou a satisfação pessoal e estatizou a impopularidade pública.
O presidente é um democrata como político e um tolerante como pessoa. Quase todos os seus ministros podem ser convidados para jantar e se alguns devem ser evitados é porque são ególatras chatos. FFHH retirou a tensão da vida nacional. Na mediocridade de sua administração, até as crises políticas são irrelevantes. As denúncias de corrupção, na maioria dos casos, relacionavam-se com lambanças da inépcia. (É quase certo que o caso do grampo do BNDES esteja nessa categoria.) É um governo ruim, mas não é a desgraça que parece.
Um bom pedaço de sua impopularidade está no desrespeito e na soberba com que tanto o monarca quanto os seus mandarins tratam a patuléia. Em vez de explicarem ao povo o que fazem (são pagos para isso), explicam por que o povo não os entende.
O doutor Pedro Parente, chefe do Gabinete Civil da Presidência, por exemplo, diz que "estamos vivendo hoje um quadro de pessimismo e de mau humor, um quadro de um certo desagrado geral, que, no meu modo de ver, não tem nada a ver com a realidade desse país". Tradução: A patuléia não nos entende.
Parente tem uma explicação para o mau humor: "Em parte decorre diretamente de que em janeiro o governo foi obrigado a aceitar uma mudança numa coisa que era absolutamente simbólica para a população em geral, que era um valor que era dado ao real. Todo mundo raciocinava mais ou menos que um real valia um dólar".
Maravilha. O governo foi obrigado por quem, cara-pálida? Pelo Lula do PT? Foi obrigado pelo mercado. E por quê? Porque o real estava sobrevalorizado. E quem o sobrevalorizou? A ekipekonômica na qual estava aninhado o doutor Parente.
O governo inventa uma cotação artificial para a moeda, arruína a produção, fracassa e sai-se com psicologia de botequim. A escumalha, na sua ignorância, teria atribuído ao real um valor simbólico que não tinha. Agora, está de mau humor. A ralé dá valor simbólico a coisas que realmente valem, como a ala das baianas da Mangueira e a noite de Ano Novo na praia. Dinheiro, para ela, é coisa tangível, usada para encher a geladeira e pagar as contas. Quem deu valor simbólico (e errado) ao real, foi a ekipekonômica.
Foi FFHH quem passou esse tom de superioridade divina aos seus baronetes. Está recebendo o troco. É um troco alto e, vale repetir, injusto, porque nem ele nem sua Corte são tão ruins assim.
Se os sábios conseguirem se comportar com mais humildade, é possível que a administração continue na mediocridade em que está, mas as pessoas terão menos motivos para ficar com raiva.


Um exemplo de gogologia tucana

Aqui vai um bom exemplo do metabolismo do governo no seu exercício da opção preferencial pelo gogó.
Depois de ter negado a gravidade do desemprego e de tê-lo atribuído à desqualificação dos desempregados, pela primeira vez em quase dois anos a ekipekonômica viu-se diante de um número saudável. Entre abril e maio passados, a taxa de desemprego nas seis grandes regiões metropolitanas do país caiu de 8,02% para 7,7%. Melhor: criaram-se 170 mil postos de trabalho, dois terços dos quais no mercado formal.
Começou-se a construir uma teoria da retomada da produção. Um sábio chegou a montar dois "modelos econométricos de séries temporais". Num, em dezembro, a taxa de desemprego cairia a 6,2%. No outro, ficaria em 5,6%. O professor Edward Amadeo, pai da teoria da inempregabilidade do desempregado, anunciou que o jogo tinha virado. (Amadeo foi capaz de perder dois empregos sem conseguir ficar desempregado em Brasília. Hoje ele é secretário de Acompanhamento Econômico, tendo sido secretário do Planejamento e ministro do Trabalho.)
As previsões otimistas ainda estavam frescas quando veio o índice de desemprego de junho. Num modelo econométrico, ele fora fixado em 7,6%. No outro, em 7,5%. A escumalha desocupada produziu um número diferente: 7,84%. Número ruim, sem dúvida.
Mesmo assim, as tabelas do IBGE tinham uma boa novidade para o governo. Em junho, foram criados 164 mil novos postos de trabalho. Coisa inédita nesse mês. Havia o que comemorar, mas como se deveria fazer isso?
Aparece o doutor Clóvis Carvalho, ministro do Desenvolvimento, e informa que um dos indicadores de recuperação nos primeiros sete meses do ano é o seguinte: "A economia gerou 375 mil empregos contra 35 mil no ano passado".
De onde ele tirou esses dois números, não se sabe. Nos primeiros seis meses, a economia das seis grandes regiões metropolitanas gerou 69 mil empregos, contra 22 mil em 1998. Um saldo de 47 mil, coisa como 8 mil em cada grande cidade.
A ekipekonômica parece ter uma política original: a da desmoralização dos crédulos. Acreditar no que ela diz é um perigo. O sujeito que acreditou nas fanfarras de maio passou por bobo. Aquele que planejar sua vida com os números de Carvalho vai acabar de mau humor.
O pior é que fazem tudo isso com números bons. O desemprego efetivamente caiu em maio. Junho, de fato, bateu recordes de criação de postos de trabalho. É pouco? Sem dúvida, mas sem esse pouco não se chega ao muito. É provável que os indicadores econômicos melhorem. Nada custa ao governo mostrá-los como são.
Seria uma forma de tornar respeitáveis as pessoas que nele acreditam.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música. Ela defende a estabilidade do idioma e acaba de conceder mais uma de suas bolsas de estudo ao doutor Lauro Ramos, da diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada, o Ipea. Num trabalho sobre a evolução do desemprego, ele escreveu o seguinte:
"Em que pese o potencial início do processo de recuperação da demanda por trabalho, a menor pressão do lado da oferta continua sendo o principal fator responsável pela manutenção das taxas de desemprego em níveis similares aos observados em 1998".
Ele gostaria de ter dito o seguinte: "O número de empregos disponíveis continua menor que o número de pessoas querendo trabalhar".

O resgate do professor Kissinger

Está chegando à praça um grande livro, produto de uma louvável penitência da Editora Francisco Alves. É "Diplomacia", de Henry Kissinger, publicado em 1997, quando o ex-secretário de Estado americano visitou o Brasil (sob o patrocínio do Banco Marka, de Salvatore Cacciola, mas deixa pra lá). Por mal traduzido, era ilegível.
"Diplomacia" é a mais reflexiva das obras de Kissinger. Associa o conhecimento acadêmico ao saber do diplomata que ajudou a rearrumar o mundo. Conta a história do poder neste século. Seu valor está na exposição da teoria segundo a qual os Estados Unidos se tornaram única potência mundial combinando a fé na liberdade à defesa daquilo que consideram ser os seus interesses nacionais. Ao mesmo tempo, cruzados e diretores de vendas.
Suas duas referências ao Brasil são um exemplo dessa patriótica busca do interesse nacional pelos americanos. Primeiro ele informa que os EUA eram um país tão introvertido que, no final do século 19, sua marinha era menor que a brasileira. Depois, falando de outros assunto, refere-se à crise dos anos 80 e diz: "Falida por endividamentos insensatos, a América Latina submeteu-se à disciplina financeira". Em 1971, quando a insensatez da dívida externa (junto a bancos americanos) estava começando, Kissinger trabalhava na Casa Branca quando o presidente Richard Nixon jogava confete na ditadura brasileira. Ele disse ao presidente Médici que "para onde for o Brasil, para lá irá a América Latina". Foram à breca.
A Francisco Alves reeditou "Diplomacia" revendo a tradução desastrosa, onde se dizia, entre outras barbaridades, que as tropas aliadas haviam "aterrissado" na Normandia. (O verbo "to land", da língua inglesa, tanto significa aterrissar quanto desembarcar, mas se o general Eisenhower tivesse planejado descer de avião na França, a Segunda Guerra Mundial ainda não teria terminado.) A obra de Kissinger foi resgatada graças ao trabalho de Heitor Ferreira, tradutor de sua primeira obra editada em português ("O Mundo Restaurado").

Boas notícias

Uma pesquisa do Ibope revelou que nos últimos quatro meses o número de brasileiros ligados à Internet aumentou em 30%.
A Anatel está negociando com a concessionárias de serviços telefônicos a ligação, por cabo, de todas as escolas públicas e postos de saúde do país.
Ainda não há prazos e falta definir quem pagará a conta.
As empresas telefônicas gastam fortunas fazendo propaganda institucional de suas marcas. Seria uma beleza se elas competissem disputando benemerência e rapidez para que pelo menos dois terços das salas de aula do Brasil estivessem ligadas à rede mundial de computadores.

Entrevista: João Marcos Weguelin

http://www.alternex.com.br/~solidario/rj.html

(35, anos, jornalista, autor da página "O Rio de Janeiro Através dos Jornais - 1888-1969")
- O senhor colocou na Internet uma coleção incrível. São 50 títulos com a cobertura que os jornais deram a acontecimentos relevantes da vida nacional. Vai da assinatura da Lei Áurea ao sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. O senhor copiou o equivalente a um livro de 300 páginas. O que o levou a ter uma trabalheira dessas?
- O gosto pela história e o interesse de publicar um livro com esses textos. Ofereci o manuscrito a diversas editoras, mas até agora ninguém se interessou. Foram dois anos de trabalho, consultando coleções de 62 jornais na Biblioteca Nacional. Aprendi muito. Pude perceber a excelente qualidade da imprensa no início do século. Eram textos narrativos, com cuidado literário. A inauguração da avenida Central, hoje Rio Branco, em 1905 e a morte de Olavo Bilac, em 1918, são exemplos de um bom estilo e de curiosidade. A última frase do poeta, por exemplo: "Dêem-me Café! Quero Escrever!". Depois desse trabalho todo, entre ficar com o texto na gaveta e compartilhá-lo com quem quiser lê-lo, achei melhor colocá-lo na Internet. Em pouco mais de um ano ele foi consultado 14.886 vezes.
- Quais são os episódios que mais lhe impressionaram, cuja leitura o senhor recomenda?
- A cobertura da Passeata dos 100 mil, de 1968, é um bom documento. Gosto muito do noticiário da derrota do Brasil na Copa de 1950, pela emoção e pela dramaticidade. Um clima de fim de mundo. Pela precisão, é um prazer a leitura do primeiro vôo São Paulo-Rio, pelo piloto Edu Chaves, em 1914. Ao longo de toda a seleção há também uma amostra da maneira como a imprensa enterra os mortos famosos. Do barão do Rio Branco a Vargas, passando pelo bandido Mineirinho, assassinado em 1952. É interessante ver como as reportagens narraram a morte de um bandido famoso, mostrando que, na realidade, mataram-no quando estava encurralado atrás de um ônibus.
- O senhor recebeu alguma ajuda? Aceita anexar textos ao seu arquivo?
- Fiz tudo sozinho. Meu interesse foi divulgar o livro que gostaria de publicar. Seria boa idéia se outras pessoas quisessem transmitir outras reportagens. É um material muito rico, de consulta difícil, pois são poucas as bibliotecas que guardam coleções de jornais. Em muitos casos, sobrevivem num estado que torna difícil a consulta. Se algum professor estiver interessado no projeto, é só escrever. Mando o disquete de graça. Fiz essa oferta a 80 colégios do Rio e só um professor se interessou. Era do Veiga de Almeida, na Barra. Eu fui lá entregar o disquete pessoalmente.


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