São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FOLCLORE POLÍTICO /FERNANDO MORAIS

D. Lucas, ACM e o pároco baiano

Ninguém poderá dizer que tenham sido calorosos os laços que ligaram Antonio Carlos Magalhães ao recém falecido cardeal Lucas Moreira Neves. Jamais se viu ou ouviu algo indicasse um arranhão público na relação entre eles, mas os dois jamais se bicaram. A esgrima praticada pelos dois, no entanto, em nada lembrava a proverbial truculência das nossas pelejas políticas. Eram estocadas certeiras, mas discretas, florentinas. Embora fossem ambos conservadores, a explicação talvez fosse simples: a Bahia era pequena demais para dois egos tão grandes.
Dom Lucas clamava por políticas públicas "mais humanas" do governo? Entrava em atrito com os candomblés, impedindo filhas-de-santo de lavarem as sacrossantas escadarias do Bonfim? Pois Magalhães respondia à sua moda: todo dia 16 de setembro, por exemplo, quando os baianos se enfileiravam na porta do Palácio Episcopal para beijar o anel cardinalício do aniversariante ilustre, ACM cabulava o compromisso protocolar e aparecia em Santo Amaro da Purificação, festejando outra entidade, que faz anos na mesma data: dona Canô, a mãe de Caetano Veloso e Maria Betânia.
O choque frontal entre os dois pareceu inevitável em meados de 1996, quando dom Lucas decidiu aposentar o pároco da igreja de Nossa Senhora da Vitória, padre Gaspar Sadock, que acabara de completar 80 anos. Ocorre que monsenhor Sadock não era apenas um mero vigário de paróquia, mas parte integrante da paisagem baiana. Negro vigoroso, orador inflamado, capelão honorário do Esporte Clube Vitória, nome de rua em Salvador, o religioso era identificado não apenas por suas peregrinas virtudes cristãs, mas também por ser um apaixonado carlista como são chamados na Bahia os seguidores de ACM. O chefe da Igreja parecia decidido a trombar com o chefe da política.
Às voltas com as eleições municipais, nas quais pretendia retomar da oposição a prefeitura de Salvador, o senador sabia que perder monsenhor Sadock em plena batalha seria uma derrota política. Coincidia o pleito municipal, porém, com outra eleição, que se desenrolava a milhares de quilômetros da Bahia: a disputa, na Academia Brasileira de Letras, pela cadeira número 12, vaga que era pretendida por ninguém menos que dom Lucas Moreira Neves.
Foram necessários poucos dias para chegar a dom Lucas a preciosa informação: ancorado em seu prestígio político, Antonio Carlos Magalhães tinha condições de influenciar o voto de pelo menos 20 acadêmicos da ABL. Se tocasse em um só fio de cabelo da gaforinha branca de monsenhor Sadock, o cardeal podia sepultar para sempre o sonho de converter-se em um imortal.
Se forem indagados a respeito desse episódio, é possível que tanto o ex-senador como monsenhor Sadock neguem de mãos juntas que ele tenha acontecido. Mas a verdade é que dom Lucas se elegeu para a ABL, Antonio Carlos Magalhães ganhou as eleições de Salvador no primeiro turno e monsenhor Sadock, quase nonagenário, continua rezando missas em Nossa Senhora da Vitória.


FERNANDO MORAIS, 56, escritor e jornalista, escreve aos domingos nesta seção

Texto Anterior: Mídia: Entre os "com-telefone", Lula sobe 4 pontos e vai a 40%
Próximo Texto: Ceará: Políticos 'financiam' romeiros na festa de Juazeiro do Norte
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.