São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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REGIME MILITAR
Documento confidencial de 1975 informa que até junho daquele ano 50 militantes haviam sido mortos
Relatório do Exército revela mortes em SP

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Documento confidencial do Exército, elaborado em 1975, informa que até junho daquele ano 47 militantes políticos presos pelo DOI-Codi de São Paulo e 3 recebidos de outros órgãos haviam sido mortos.
O ""RPI nº 06/75" (""Relatório Periódico de Informações") do 2º Exército não explicita, mas contém indícios de que os presos políticos morreram nas dependências do principal órgão do regime militar (1964-1985) dedicado ao combate a organizações esquerdistas, especialmente as da luta armada.
O relatório, recém-descoberto pelo pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, está no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no acervo que pertencia ao Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), órgão da polícia política paulista extinto em 1983, quando suas atribuições passaram à Polícia Federal.
O pesquisador é neto do dirigente comunista Pedro Pomar, morto pelo DOI na Lapa, em São Paulo, em 1976.
Até agora, os assassinatos nas instalações do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, eram conhecidos fundamentalmente por meio de depoimentos de sobreviventes, o que numa analogia jurídica poderia ser chamado de ""prova testemunhal". Com o ""RPI nº 06/75", há algo semelhante a uma ""prova documental".
Os DOI (Destacamentos de Operações de Informações) e os Codi (Centros de Operações de Defesa Interna) foram criados pelo governo em setembro de 1970.

DOI-Codi
O maior DOI-Codi, o de São Paulo, foi instalado junto ao 36º Distrito Policial, na rua Tutóia. Foi o sucessor da Oban (Operação Bandeirantes), articulação militar e policial para o combate conjunto à guerrilha.
Chefiado por oficiais do Exército, chegou a contar com efetivo de 250 funcionários, de acordo com o livro de memórias do seu comandante de setembro de 1970 a janeiro de 1974, o hoje coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Militantes de esquerda que passaram pelo DOI-Codi afirmam que o órgão era um centro de tortura, morte e desaparecimento de presos políticos.
As Forças Armadas sustentam que os ativistas mortos eram guerrilheiros abatidos em tiroteios. No seu livro, Ustra diz que inexistiam tortura e eliminação física no DOI-Codi.
O oficial reformado não quis falar à Folha sobre o documento agora encontrado.
A lei 9.140, de 1995, reconheceu que estão mortos 136 militantes políticos desaparecidos de 1961 a 1979. A comissão criada pela mesma concluiu haver responsabilidade do Estado na morte de outras 148 pessoas no mesmo período, a maioria sob tortura.

Anistia
Na opinião de juristas consultados pela Folha, a Lei da Anistia, de 1979, impede a punição de integrantes do aparato repressivo e de militantes de esquerda por crimes ocorridos até então.
O ""RPI nº 06/75" relata que, até 30 de junho de 1975, o DOI-Codi do 2º Exército havia prendido 2.355 pessoas, das quais 859 foram encaminhadas para o Deops-SP, 192 foram para outros órgãos, 1.254 foram liberadas, 47 foram mortas e uma fugiu.
Os 47 mortos (não há descrição de nomes e das condições das mortes) são um subitem do item ""presos pelo DOI", e não um item à parte. Pela lógica, foram presos e, depois, mortos.
Houve também 821 presos recebidos de outros órgãos -301 foram mandados para o Deops-SP, 298 para outros órgãos, 214 liberados, 2 fugiram e 3 morreram.
Os três mortos entre os ""recebidos de outros órgãos" reforçam a impressão de que morreram na rua Tutóia, a não ser que o DOI-Codi recebesse cadáveres.
Houve 3.399 que prestaram declarações e foram liberados e 136 que estiveram no DOI e não prestaram declarações, sempre segundo o documento.
A soma dos subitens dos capítulos ""presos pelo DOI" e ""recebidos de outros órgãos" não bate com o total: faltam 5 pessoas. ""Devem ser desaparecidos", diz o jornalista Ivan Seixas, que esteve preso no DOI-Codi.

Indícios
Há três indícios de que o documento encontrado no Arquivo do Estado é verdadeiro:
1) não é peça isolada, mas o quarto de uma sequência que contém relatórios de junho, julho e setembro de 1974 -deve haver mais recentes no acervo;
2) em 23 páginas de ""RPIs" copiadas pela Folha, há a rubrica do ""Gen d'Ávila" (ou ""Gen Ávila"). O general Ednardo d'Ávila Melo era o comandante do 2º Exército. Foi afastado após o assassinato sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. No Exército, é comum o emprego da abreviatura ""gen.", e não ""gal.", para designar um general;
3) duas pessoas, uma delas oficial do Exército, que passaram alguns anos da década de 70 no DOI-Codi disseram que o relatório é mesmo do Exército;
4) em janeiro do ano 2000, o jornal ""O Globo" publicou reportagem sobre uma monografia escrita em 1977, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, pelo então major Freddie Perdigão.
Ao falar sobre o DOI-Codi do 2º Exército, Perdigão, sem se referir a nenhum documento oficial nem descrever suas fontes, citou números semelhantes ao do ""RPI nº 06/75". O depoimento do oficial, que atuava basicamente no Rio, foi mais um testemunho sobre o DOI-Codi paulista.

Mortes
Para o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos criada pela lei 9.140/ 95, ""este documento não alteraria decisões da comissão, mas reforça a tese de que se morria no DOI-Codi. Não se prende morto, não se recebe morto de outros órgãos".
Houve poucos casos em que o governo militar reconheceu mortes no DOI-Codi, como as dos militantes José Ferreira de Almeida (agosto de 1975), Vladimir Herzog (outubro de 1975) e Manoel Fiel Filho (janeiro de 1976), todas após o ""RPI nº 06/75". Nas três vezes, sustentou que eles se suicidaram. Vários testemunhos mostraram que, na verdade, as vítimas morreram devido à tortura.
É impossível saber exatamente quantas pessoas morreram no DOI-Codi do 2º Exército, já que as autoridades encobriam as causas verdadeiras. ""Eram montados teatros, os relatos oficiais falam de mortes em combate", diz o deputado Nilmário Miranda (PT-MG), integrante da comissão dos desaparecidos.
No livro ""Dos filhos deste solo", de autoria de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, são descritos todos os casos analisados pela comissão.
Pelo menos 20 mortes teriam ocorrido no DOI-Codi, inclusive de pessoas cujos corpos nunca foram encontrados pelas famílias. Há dezenas de casos, contudo, sem pista do local onde os militantes morreram.


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