São Paulo, sexta-feira, 16 de abril de 2004

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DIRETAS, 20 ANOS

Pelo menos 400 mil pessoas foram ao vale do Anhangabaú em 16 de abril de 1984

Maior comício pelas diretas parou o centro de São Paulo

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

O dono do box 81, localizado no mercado de Pinheiros, em São Paulo, já sabia: vem comício aí, é melhor preparar a bicharada. Era a manhã de 16 de abril de 1984, e José Guerra, proprietário há 50 anos da avícola que leva seu nome, fatalmente seria procurado.
O cliente era o segurança da cantora Fafá de Belém, encarregada de fechar os comícios das Diretas Já cantando o Hino Nacional e soltando em seguida uma pomba branca. Só que ela era responsável também por prover o animal.
Mas onde achar pombas, vivas e brancas, à venda em São Paulo? Entra em cena o box 81, ainda hoje vendendo as aves, R$ 30 cada uma, com saída de 30 a 40 exemplares por mês, "a maioria para eventos de paz e macumba", segundo contabiliza José Guerra.
"Nem sempre dava certo", lembra Fafá de Belém hoje, 20 anos depois do comício do Anhangabaú, o terceiro em São Paulo e o maior em número de pessoas até então nos eventos oficiais pela volta das eleições diretas.
"Teve uma pomba que, quando chegou ao comício de Maceió [29 de janeiro de 1984], ficou nervosa e teve um desarranjo", conta ela em entrevista por telefone de Luxemburgo, onde está em turnê.
"Já a do comício da Candelária [Rio, 10 de abril] bebeu água da mão do [então governador paranaense, já morto, José] Richa, que tinha uma raquete no lugar da mão, de tão imensa."
Apesar dos episódios folclóricos, o simbolismo em torno da ave casava bem com as manifestações que vinham tomando o país naqueles dias, pois eram manifestações de paz. Diferentemente dos movimentos populares de 20 anos antes, quando a população se polarizara entre esquerda e direita, a maioria agora se mostrava a favor das eleições diretas.
A divisão se dava no âmbito federal, comandado pelo último presidente-general, João Figueiredo (1918-1999). A abertura política, "lenta e gradual", tinha culminado com o fim tanto do bipartidarismo quanto da eleição indireta para governador e senador.
Continuava valendo, porém, o artigo da Constituição de 1967 que previa a eleição indireta para presidente, demais cargos executivos e um terço do Senado. Em março de 1983, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT) apresentou emenda de 15 linhas que propunha a mudança.
Era por essa mudança que a população estava se manifestando, para pressionar o Congresso, que votaria a emenda em 25 de abril. Foram 48 comícios entre 27 de novembro de 1983 e 18 de abril de 84, que levaram milhões às ruas.
"Havia uma determinação muito forte de mudar", recorda o hoje ex-governador Dante de Oliveira, "mas ao mesmo tempo o povo sabia que não podia fazer provocações, pois a ditadura existia."
Ele cita como exemplo uma visão daquele dia 16. Uma Kombi, aparentemente abandonada, atrapalhava a passagem das pessoas no viaduto do Chá -antes do comício houve uma passeata pelo centro, saindo da Sé.
"Pois ninguém relou um dedo naquele veículo, não houve um grito, um xingamento", espanta-se ainda hoje Oliveira. "As pessoas desviavam do carro e seguiam, ordeiras, para o vale."
No final daquela noite, pouco antes de Fafá entoar o hino acompanhada pela Orquestra Sinfônica de Campinas e soltar a ave, o locutor Osmar Santos anunciava: "O Anhangabaú já tem 1,7 milhão de pessoas!" A massa veio abaixo e esse era mesmo o objetivo.
Mas não era a verdade.
Segundo cálculos feitos pelo Datafolha anos depois, a região comportaria no máximo 400 mil pessoas -um número de resto grandioso, seja qual for o critério.
Atribui-se a inflação ao desejo do comando da Polícia Militar, responsável por informar oficialmente a quantidade de pessoas presentes, de agradar o governador Franco Montoro (PMDB), um dos líderes das Diretas.
E quanto à pomba do Anhangabaú? "Estava cansada, com fome e sede, fez um vôo curto e morreu", lembra-se Fafá de Belém. O vôo da democracia seria maior. "Vinte anos depois, temos uma democracia, com todos os seus bônus e ônus. Mas uma democracia."


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