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ARTIGO
Obra clássica analisa persistência na mudança
GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA
É trivial, hoje, afirmar a grandeza e a importância da obra de
Raymundo Faoro. Mais difícil é
demonstrar a sua especificidade,
aquilo que a torna inconfundível.
Em primeira aproximação isso
parece residir na peculiar combinação que nela se encontra, entre
a reflexão sobre a sociedade, mais
precisamente sobre o poder, que
dissecou em todas as suas dimensões, neste ponto talvez mais do
que em qualquer outro, sendo nas
horas certas leitor atento de Max
Weber, e a intervenção direta nela. Isso, associado ao entrelaçamento na fase madura da sua vida
da condição de outsider com a de
insider, sempre desconfiado em
relação a ambas, imprimiu ao seu
olhar de analista e participante
dos processos de poder uma inflexão muito pessoal.
O olhar penetrante de Faoro
sempre ia ao centro da questão
que lhe importava; mas ele próprio mantinha-se descentrado, à
parte, crítico, mas não indiferente. No momento, contudo, em
que ocupou posição próxima ao
centro, como ocorreu na sua presidência da OAB, em plena ditadura a sua visão voltou-se para fora, para a sociedade excluída do
círculo do poder. Sua mirada
atravessava os meandros do poder sempre a contrapelo, jamais
amoldando-se ao seu ritmo.
Ritmo. Talvez seja esse o termo
mais apropriado para caracterizar
a peculiaridade da contribuição
de Faoro ao pensamento brasileiro. Pois peculiar ela é: ninguém
mais escreveu como Faoro, combinando como ele uma erudição
esmagadora com a capacidade de
acompanhar o seu tema nos seus
mais intricados meandros, entremeando o movimento coleante
das longas sentenças com julgamentos fulminantes sobre episódios, personagens e processos históricos inteiros. O segredo, parece, consistia em captar o ritmo
dos movimentos na sociedade
sem sujeitar-se a eles, para traduzi-los no ritmo muito próprio da
sua escrita, voltada para captar
não as sincronias, mas os descompassos, não a topografia bem
medida dos lugares corretos, mas
o deslocamento, o desvio.
Onde outros veriam o tempo
certo, ele via o passo em falso; onde veriam a aberração passageira,
ele enxergava os arranjos de uma
estrutura. Esse homem que soube
captar o grande tema do pensamento social brasileiro na segunda metade dos anos 50, o tema da
formação, revelava-se com isso
no compasso do seu tempo. Ao
seu modo, porém, pois via o Brasil e escrevia sobre sua constituição histórica nos confins do Sul,
distante do centro, condenado a
ser criativo e crítico sob pena de
jamais ser ouvido. Sua grande
obra de historiografia e sociologia
política, "Os Donos do Poder",
encontrou poucos leitores na sua
primeira edição, em 1958. Mas penetrou, sem alarde, no debate já
no início dos anos 60 (na USP ele
já estava presente) e foi deixando
marcas até consolidar sua presença no último quarto de século.
No que consiste essa obra capital? A julgar pelo seu subtítulo
(que originalmente era o título;
atribui-se a Érico Veríssimo, na
Editora Globo, o achado do título
que a consagraria), trata-se do
exame da "formação do patronato político brasileiro". Mas a obra
não se esgota na reconstrução do
modo como se forma essa camada social decisiva, que mais adiante recebe denominação mais precisa: "estamento burocrático". Está em jogo algo mais do que o exame da sua constituição e da sua
existência. O tema central é o da
sua persistência. É nesse sentido
que se deve entender o termo
"formação", que, ao longo do texto, vai-se despojando da dinâmica
temporal a que normalmente está
associada.
É precisamente nesse congelamento do tema da formação que
reside a força da análise. De início,
isso permite a Faoro recuar até a
formação da metrópole portuguesa, para mostrar que sua marca própria é o anacronismo, ou,
mais precisamente, a assincronia.
Portugal é moderno quando ninguém mais o é, e se recusa a sê-lo
quando todos os demais o são.
Sua solidez advém de uma camada social que se mantém indiferente à constituição e aos abalos
das demais e dela retira substância para consolidar-se. É a persistência do núcleo formador dessa
camada que constitui propriamente o problema para a análise
de Faoro, política até a medula. E
é essa busca do que teimosamente
persiste sob toda a agitação de superfície que torna essa obra de
Faoro tão provocativa, também
teimosamente atual. Não nos esqueçamos de que ele a escreveu
quando tudo parecia mudar em
compasso rápido; e de que ele
queria mais mudança, não menos. Daí, talvez, um dos principais
pontos da importância do pensamento de Faoro no momento
presente: sem deixar-se iludir pela
agitação de superfície, fazer a
aposta em mudanças mais fundas
pelo viés de apontar o que, lá no
fundo, estruturalmente se apõe a
elas.
Gabriel Cohn, 64, é professor no Departamento de Ciência Política da USP e editor da revista Lua Nova, do Cedec. É autor de "Crítica e Resignação - Fundamentos da Sociologia de Max Weber" (1979).
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