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São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 2003

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ARTIGO

Obra clássica analisa persistência na mudança

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

É trivial, hoje, afirmar a grandeza e a importância da obra de Raymundo Faoro. Mais difícil é demonstrar a sua especificidade, aquilo que a torna inconfundível.
Em primeira aproximação isso parece residir na peculiar combinação que nela se encontra, entre a reflexão sobre a sociedade, mais precisamente sobre o poder, que dissecou em todas as suas dimensões, neste ponto talvez mais do que em qualquer outro, sendo nas horas certas leitor atento de Max Weber, e a intervenção direta nela. Isso, associado ao entrelaçamento na fase madura da sua vida da condição de outsider com a de insider, sempre desconfiado em relação a ambas, imprimiu ao seu olhar de analista e participante dos processos de poder uma inflexão muito pessoal.
O olhar penetrante de Faoro sempre ia ao centro da questão que lhe importava; mas ele próprio mantinha-se descentrado, à parte, crítico, mas não indiferente. No momento, contudo, em que ocupou posição próxima ao centro, como ocorreu na sua presidência da OAB, em plena ditadura a sua visão voltou-se para fora, para a sociedade excluída do círculo do poder. Sua mirada atravessava os meandros do poder sempre a contrapelo, jamais amoldando-se ao seu ritmo.
Ritmo. Talvez seja esse o termo mais apropriado para caracterizar a peculiaridade da contribuição de Faoro ao pensamento brasileiro. Pois peculiar ela é: ninguém mais escreveu como Faoro, combinando como ele uma erudição esmagadora com a capacidade de acompanhar o seu tema nos seus mais intricados meandros, entremeando o movimento coleante das longas sentenças com julgamentos fulminantes sobre episódios, personagens e processos históricos inteiros. O segredo, parece, consistia em captar o ritmo dos movimentos na sociedade sem sujeitar-se a eles, para traduzi-los no ritmo muito próprio da sua escrita, voltada para captar não as sincronias, mas os descompassos, não a topografia bem medida dos lugares corretos, mas o deslocamento, o desvio.
Onde outros veriam o tempo certo, ele via o passo em falso; onde veriam a aberração passageira, ele enxergava os arranjos de uma estrutura. Esse homem que soube captar o grande tema do pensamento social brasileiro na segunda metade dos anos 50, o tema da formação, revelava-se com isso no compasso do seu tempo. Ao seu modo, porém, pois via o Brasil e escrevia sobre sua constituição histórica nos confins do Sul, distante do centro, condenado a ser criativo e crítico sob pena de jamais ser ouvido. Sua grande obra de historiografia e sociologia política, "Os Donos do Poder", encontrou poucos leitores na sua primeira edição, em 1958. Mas penetrou, sem alarde, no debate já no início dos anos 60 (na USP ele já estava presente) e foi deixando marcas até consolidar sua presença no último quarto de século.
No que consiste essa obra capital? A julgar pelo seu subtítulo (que originalmente era o título; atribui-se a Érico Veríssimo, na Editora Globo, o achado do título que a consagraria), trata-se do exame da "formação do patronato político brasileiro". Mas a obra não se esgota na reconstrução do modo como se forma essa camada social decisiva, que mais adiante recebe denominação mais precisa: "estamento burocrático". Está em jogo algo mais do que o exame da sua constituição e da sua existência. O tema central é o da sua persistência. É nesse sentido que se deve entender o termo "formação", que, ao longo do texto, vai-se despojando da dinâmica temporal a que normalmente está associada.
É precisamente nesse congelamento do tema da formação que reside a força da análise. De início, isso permite a Faoro recuar até a formação da metrópole portuguesa, para mostrar que sua marca própria é o anacronismo, ou, mais precisamente, a assincronia. Portugal é moderno quando ninguém mais o é, e se recusa a sê-lo quando todos os demais o são. Sua solidez advém de uma camada social que se mantém indiferente à constituição e aos abalos das demais e dela retira substância para consolidar-se. É a persistência do núcleo formador dessa camada que constitui propriamente o problema para a análise de Faoro, política até a medula. E é essa busca do que teimosamente persiste sob toda a agitação de superfície que torna essa obra de Faoro tão provocativa, também teimosamente atual. Não nos esqueçamos de que ele a escreveu quando tudo parecia mudar em compasso rápido; e de que ele queria mais mudança, não menos. Daí, talvez, um dos principais pontos da importância do pensamento de Faoro no momento presente: sem deixar-se iludir pela agitação de superfície, fazer a aposta em mudanças mais fundas pelo viés de apontar o que, lá no fundo, estruturalmente se apõe a elas.


Gabriel Cohn, 64, é professor no Departamento de Ciência Política da USP e editor da revista Lua Nova, do Cedec. É autor de "Crítica e Resignação - Fundamentos da Sociologia de Max Weber" (1979).


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